Saúde
Terapias com alucinógenos: Progressos são claros, mas é necessário cautela
Flores do cipó usado na preparação do chá conhecido como Santo Daime, ou ayahuasca, uma das bebidas psicodélicas mais pesquisadas por seus potenciais efeitos terapêuticos.
Uso clínico dos psicodélicos
Os psicodélicos, ou alucinógenos, encontram-se em uma importante encruzilhada na saúde mental, oferecendo a perspectiva de novos caminhos terapêuticos para lidar com várias condições mentais, desde a depressão resistente ao tratamento até o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).
No entanto, as propriedades de alteração da mente apresentados por esses compostos apresentam desafios éticos, clínicos e legais únicos. Por um lado, é importante proteger os pacientes durante esses estados vulneráveis de consciência alterada e, por outro, há uma necessidade urgente de criar estruturas regulatórias e esforços colaborativos para que se possa atingir os potenciais benefícios desse emergente paradigma terapêutico.
O assunto é o tema de um abrangente estudo realizado por cientistas portugueses e publicado pela Nature Medicine. Carolina Seybert e seus colegas analisaram desde os estudos científicos em escala de laboratório até as primeiras práticas terapêuticas em avaliação, além do quadro legal envolvendo o uso dos alucinógenos.
Alucinógenos com uso médico
A busca por terapias alternativas para transtornos de saúde mental difíceis de tratar trouxe à superfície uma série de psicodélicos, como a psilocibina, presente nos “cogumelos mágicos”, e o LSD, substâncias até agora mais associadas a uma contracultura do que à prática clínica. Ao lado de psicodélicos “atípicos”, como a quetamina e a MDMA (metilenodioximetanfetamina), essas substâncias são cada vez mais reconhecidas pelos seus potenciais atributos terapêuticos.
Por exemplo, a psilocibina sintética apresentou resultados promissores no alívio dos sintomas de depressão e ansiedade associados ao diagnóstico de câncer, sendo que a sua eficácia está sendo investigada em condições como o transtorno obsessivo-compulsivo, transtornos alimentares e transtornos por uso de substâncias.
Além disso, embora as experiências subjetivas que provocam possam diferir, tanto os psicodélicos típicos quanto os atípicos são geralmente considerados seguros, com potencial limitado para abuso.
No entanto, a transição dos ensaios clínicos para a prática clínica cotidiana não é de forma alguma garantida. “Até agora, as terapias psicodélicas têm estado largamente confinadas ao domínio da investigação e dos estudos clínicos. Mas isto parece estar prestes a mudar. Já estamos testemunhando o uso sem receita da quetamina, antes vista apenas como anestésico, no tratamento de depressão e perturbações envolvendo o uso de substâncias, apesar da falta de diretrizes claras, aprovação formal por agências reguladoras e recomendações sobre suporte psicológico,” disse o professor Albino Oliveira-Maia, da Fundação Champalimaud (Portugal).
Os efeitos fisiológicos dos psicodélicos estão sendo testados em minicérebros, organoides feitos em laboratório.
Flores do cipó usado na preparação do chá conhecido como Santo Daime, ou ayahuasca, uma das bebidas psicodélicas mais pesquisadas por seus potenciais efeitos terapêuticos.
Psicoterapia mais psicodélicos
Ao contrário da maioria dos tratamentos com medicamentos, os psicodélicos são normalmente associados à psicoterapia para proteger os doentes e potencialmente aumentar a eficácia clínica, ao moldar as experiências subjetivas induzidas pelas drogas. Mas ainda é necessário avaliar a eficácia clínica da intervenção psicológica que acompanha esses tratamentos.
“Se a psicoterapia durante a experiência psicodélica oferece benefícios adicionais substanciais ao paciente, torna-se essencial definir e padronizar os procedimentos terapêuticos ideais para essas sessões de dosagem,” disse Albino. “O nosso objetivo é também garantir que a promessa dos psicodélicos não ocorra às custas da segurança dos doentes”.
Uma das maiores preocupações é que os psicodélicos podem provocar maior sugestionabilidade ou sentimentos de intimidade, o que pode aumentar a vulnerabilidade a possíveis abusos e transgressões de limites na relação terapeuta-paciente. Um alegado exemplo de transgressão desse tipo ocorreu num ensaio clínico canadense de terapia assistida por MDMA para PSPT, onde uma participante e o seu terapeuta não licenciado estiveram envolvidos em um acordo extrajudicial por uma acusação de abuso sexual.
Incidentes desse tipo tornam clara a necessidade de profissionais certificados e treinados, de supervisão regulatória e de procedimentos aprimorados de consentimento informado para abordar o possível uso do toque e a suscetibilidade do paciente durante estados mentais alterados. “Isto vai exigir um esforço coletivo,” disse Ana Matos Pires, do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos (Portugal). “Não envolverá apenas os médicos que prescrevem o tratamento e os psicólogos que o administram, mas também uma série de outras partes interessadas em nível nacional e internacional, desde órgãos reguladores como a FDA (Food and Drug Administration) dos EUA e a EMA (European Medicines Agency), até aos decisores políticos, conselhos de ética, farmacêuticos, enfermeiros e, claro, os próprios doentes”.
Aprovação dos alucinógenos
Existem ainda muitos aspectos que precisam ser esclarecidos sobre o uso terapêutico dos alucinógenos, desde a determinação de dosagens e antipsicóticos adequados para gerir efeitos adversos, até a identificação dos ambientes ideais para o tratamento, sejam ambientes hospitalares tradicionais ou espaços terapêuticos alternativos.
Em alguns países esse processo já está mais adiantado. Recentemente, por exemplo, a Austrália declarou a sua intenção de autorizar o uso terapêutico da MDMA e da psilocibina já a partir de julho de 2023, enquanto a FDA poderá aprovar o uso da MDMA para o tratamento de TEPT (transtorno do estresse pós-traumático) já em 2024.
Os autores deste estudo não concordam com essa agenda. “Estamos de acordo quanto aos potenciais benefícios dos psicodélicos. No entanto, é vital reconhecer os desafios associados e evitar apressar o processo. Dado que os ensaios normalmente combinam psicodélicos com terapia, precisamos de mais investigação para melhor compreender os efeitos individuais da droga e da terapia. É plausível que um se mostre mais eficaz que o outro,” afirma o professor Luís Madeira, da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental.
Um desafio que Luís Madeira destaca é a dificuldade de conduzir estudos randomizados e duplo cego, uma vez que os efeitos psicoativos distintivos tornam óbvio tanto para o participante quanto para o cientista quem recebeu o tratamento ou o placebo. Além disso, surge a questão da acessibilidade no sistema público de saúde, visto que cada experiência psicodélica pode durar 8 horas e geralmente envolve dois terapeutas treinados. “Uma possível solução pode ser a terapia de grupo, permitindo que os terapeutas tratem vários doentes simultaneamente, reduzindo custos e tornando o tratamento mais viável nos sistemas de saúde públicos,” sugeriu Luís Madeira.
“Estes protocolos devem ser flexíveis e dinâmicos à medida que a nossa compreensão sobre essas terapias evolui. Em um campo em rápida mudança como este, no qual a nossa base de conhecimento está em constante atualização, é fundamental que as nossas diretrizes e regulamentos não sejam apenas robustos, mas também adaptáveis. Precisamos de uma estrutura uniforme que possa ser modificada à medida que novas informações chegam. Se deixarmos que este processo resulte da autorregulação individual, a experiência do doente pode variar substancialmente de um caso para outro,” disse Carolina Seybert, do Centro Clínico Champalimaud.