Educação & Cultura
Gestão escolar: como lidar com comportamentos inadequados na internet?
Entenda o papel da escola, como prevenir e o que fazer quando ocorre um caso de cyberbullying, disseminação de notícias falsas, vazamento de imagens íntimas, entre outras situações
Segundo dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil, aumentou o número de crianças e jovens entre 9 e 17 anos de idade que estão na internet. Nessa faixa etária, 80% utiliza para navegar nas redes sociais, sendo o WhatsApp o aplicativo mais popular (78%), seguido pelo Instagram (64%), pelo TikTok (60%) e pelo Facebook (47%).
Se por um lado essas ferramentas tem um potencial de conexão de pessoas e pode oferecer conteúdo relevantes (e até de cunho educativo), por outro está repleto de discursos de ódio, cyberbullying, disseminação de notícias falsas, desafios que podem causar mal aos participantes, entre outros perigos.
Nesse cenário, cabe às famílias, com apoio da escola, discutir os riscos e estimular que as crianças e adolescentes adotem comportamentos seguros e éticos na internet. “Alguns dos principais pontos de atenção, são: ensinar habilidades digitais básicas, como discernimento de informações, pensamento crítico e verificação de fontes, proteção de dados pessoais, além do cuidado para manter informações pessoais privadas e proteger a intimidade online”, comenta Bianca Orrico, psicóloga na SaferNet Brasil, organização que atua pelo uso responsável e seguro da internet.
“A escola é um espaço riquíssimo para se propor essas discussões e possibilitar o que chamamos de cidadania digital. Na sala de aula conseguimos proporcionar um ambiente onde os estudantes confrontam suas ideias e analisam fenômenos com um viés crítico e reflexivo”, complementa Raul Alves de Souza, doutor em Educação Escolar e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM).
Mini Glossário
Entenda melhor alguns termos utilizados nesta reportagem
Cyberbullying
É modalidade online do bullying, o qual se caracteriza por agressões intencionais e repetitivas entre pares. Quando essa violência acontece na internet, não estar cara a cara (ou até a possibilidade de ser feito de forma anônima) pode aumentar a crueldade das mensagens.
Vazamento de nudes
Refere-se ao compartilhamento online de material íntimo (com conteúdo de nudez), sem consentimento da pessoa. Muitas vezes é motivado por vingança ou desejo de humilhar, expor a vítima.
Desafios e trends
São vídeos publicados em redes sociais e comunidades que tem por objetivo fazer com que as pessoas sejam desafiadas a copiar a ação, gravá-la e a publicar. Vão desde danças, pregar peças até atos perigosos – como foi o caso popular do jogo Baleia Azul, em 2017.
O que fazer quando ocorre um comportamento online inadequado
Ainda que as ações aconteçam fora do ambiente escolar, os casos impactam os estudantes e, consequentemente, respinga na escola e no clima escolar. “Devemos entender quais estratégias de intervenção devem ser pensadas e planejadas coletivamente e que elas devem levar em consideração a complexidade do fenômeno. Não teremos resoluções simples para problemas complexos. Suspensões e/ou advertências não resolverão os problemas, como também podem piorar ainda mais a situação”, salienta Raul.
Ao identificar, o primeiro passo é registrar todas as mensagens e imagens ofensivas recebidas, bloquear o perfil que fez a postagem e denunciar as plataformas onde esses conteúdos foram publicados.
Para estar preparado, os especialistas sugerem criar um protocolo de como a escola lida quando acontece um episódio de comportamento online inadequado – a seguir listamos algumas sugestões que podem ser incluídas. Esse plano de ação pode ser construído coletivamente e revisitado periodicamente.
Identificar os envolvidos e excluir o conteúdo
A exclusão do conteúdo é uma ação importante para evitar o compartilhamento e o prolongamento da situação à vítima. Porém, ela apenas pode ser realizada após a identificação do autor. No caso de não ser possível fazer esse reconhecimento, o caso pode ser comunicado ao Conselho Tutelar, ao Ministério Público ou à polícia para que possa ocorrer uma investigação mais aprofundada – em casos mais graves, também.
Em caso de problemas para derrubar a publicação, é preciso recorrer a denúncias nas plataformas. Se necessário, realizar uma denúncia formal aos órgãos público para conseguir a ordem.
Abordar os envolvidos
Outra ação inicial, que pode ser simultânea à anterior, é a conversa com os envolvidos: agressor, vítima e, quando necessário, à plateia (quem testemunha, assiste a agressão) – e suas famílias.
- Com as famílias: por se tratar de menores de idade, os responsáveis também devem ser acionados. “No início, as famílias tendem a justificar a ação do aluno, mas ao final da conversa, percebem a gravidade do ato. Acho que no íntimo se culpam pelas atitudes, pois muitos não têm controle sobre os filhos”, diz a professora Cláudia. Por isso, os especialistas sugerem utilizar uma comunicação clara, cuidadosa e descritiva, para não colocar juízos de valor nas ações, evitando que as famílias se sintam atacadas ou julgadas.
- Com a vítima: recomenda-se começar com o acolhimento. Faça uma escuta sem julgamentos e reforce que se trata de um espaço seguro, em que pode compartilhar seus sentimentos, experiências e pensamentos. Também é importante saber o que a vítima gostaria que fosse feito para que se sentisse mais protegida. Também coloque-se à disposição caso ela queira conversar novamente.
- Com o agressor: durante a conversa, não utilize uma linguagem acusativa ou faça juízos de valor. Evidencie que compartilhar conteúdos inapropriados ou ofensas no ambiente da internet também é uma forma de violência. Pode questioná-lo sobre quais possibilidades ele vê que podem reparar a situação.
Vale destacar que somente a punição, como a suspensão da escola, não gera a reflexão. É importante buscar um processo restaurativo e formativo.
- Com a plateia: esse grupo tem um papel de “validação” da agressão e, muitas vezes, são responsáveis por repercutir uma postagem inadequada. Por isso, visibilize que o comportamento é equivocado e promova uma reflexão que possibilite prevenir novos casos.
Realizar ações contínuas de sensibilização, combate e prevenção
Após o momento de conscientização e de restauração entre agressor e vítima, é necessário criar um espaço formativo contínuo, entre educadores, famílias e estudantes. O assunto deve ser tratado de forma sistemática dentro das aulas. “Promover espaços de debate [com participação das famílias] ajuda a prevenir quadros de violência, desenvolver respeito mútuo entre os estudantes. Além da implementação de políticas que incentivem um comportamento adequado online e offline”, compartilha Bianca.
Durante esses momentos, a recomendação é trazer casos externos ou hipotéticos, nunca abordar situações que aconteceram na escola para evitar expor ainda mais os envolvidos.
Para construir relações saudáveis na escola, uma boa estratégia a longo prazo é criar um plano de convivência que contemple normas de boa conduta no ambiente online e offline.
Além disso, é muito importante que a pauta da convivência virtual esteja presente em sala de aula, como menciona Raul. “Eventos pontuais, como palestras, não são suficientes para que haja mudança de concepção e de comportamento”, diz. “Isso significa que devemos, de maneira sistemática e intencional, promover espaços de debates, escuta e reflexão sobre o tema.”
Experiências práticas de quem já enfrentou essas situações
Casos que envolvem o comportamento inadequado na internet não são situações raras na realidade das escolas.
Elineide Alves, diretora da EREF Evandro Ferreira do Santos, em Cabrobó (PE), e coordenadora do núcleo da Conectando Saberes na cidade, já passou por algumas situações. “Um estudante publicou a fotografia em preto e branco de um colega com uma mensagem dando a entender que esse menino havia falecido. Isso gerou pânico na escola. Precisei entrar em contato com a família para verificar a veracidade da postagem. Quando questionado, o estudante disse que não se passava de uma trollagem.”
Claudia Sosinho, coordenadora do núcleo da Conectando Saberes no Rio de Janeiro (RJ) e na época gestora da Escola Estadual Chico Anísio, lembra-se de um episódio de cyberbullying contra uma aluna com deficiência. “Ela gosta muito de dançar e alguns estudantes enviaram uma foto dela dançando no recreio no grupo de WhatsApp. Alguns alunos fizeram comentários pejorativos. Outros se indignaram e vieram denunciar.”
Ambas gestoras optaram por conversar com os estudantes, junto às famílias, e explicar por que a publicação era prejudicial, seja pelo compartilhamento de notícias falsas ou pelas ofensas contra uma colega. “No meu caso, a mãe da estudante [que foi vítima] participou da conversa com os estudantes e explicou para eles a rotina dela e as suas dificuldades. Isso fez com que caísse a ficha [dos alunos que participaram] e eles se desculparam”, conta Claudia.
No Colégio Arcoverde, em Valença (RJ), o programa de convivência ética inclui ações formativas para os educadores lidarem com casos de bullying e cyberbullying. Para os professores, o foco é nas relações interpessoais. “A gente percebe que muitos professores acham que seu papel é apenas dar aula de Matemática ou Língua Portuguesa, mas vai muito além, sua atuação influencia muito no clima escolar”, conta Ana Luiza Matos, coordenadora dessa iniciativa.
Esses espaços formativos acontecem mensalmente e estão auxiliando na construção de um plano de convivência escolar, no qual todas essas ações já realizadas serão sistematizadas.
Um programa parecido também é vivenciado pelos estudantes da EMEF Elysário Del’Alamo, em Artur Nogueira (SP), desde 2021. A gestão escolar realiza um trabalho contínuo focado no desenvolvimento das competências socioemocionais e de combate ao bullying.
Carolina Wallauer Nemésio, coordenadora pedagógica da escola, conta que o objetivo dessa iniciativa, além de amenizar os conflitos, é preparar os estudantes para o mundo e formar cidadãos que conseguem lidar com as suas emoções e possam lidar com as adversidades ao longo da vida.
Para dar início ao trabalho, realizou-se uma sensibilização do corpo docente para levar o assunto da Educação Infantil aos Anos Finais do Fundamental. O processo formativo é permanente. A gestão recebe orientações e formações da Secretaria Municipal de Educação e os aprendizados são replicados na escola. “Nós apresentamos livros sobre a temática pelo menos uma vez por mês, mostramos as possibilidades e realizamos atividades com eles. Depois disso, eles pensam como levar para sala de aula”, comenta Carolina.
Ainda que seja um projeto institucional, os professores têm autonomia para planejar as atividades conforme a realidade e necessidades de cada turma. “A realização de tudo isso só é possível porque o corpo docente trabalha em sala de aula. As ações do projeto modificaram o ambiente escolar. A forma como as inspetoras vão abordar os alunos no recreio já mudou, os estudantes já sentem maior liberdade para falar com a direção sobre situações que estão acontecendo e pedir intervenções”, conta Carolina.
Questões ligadas ao cyberbullying e o comportamento online já foram pautas no componente de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Os alunos aprenderam como usar as redes sociais e como participar de forma respeitosa e que não contribui negativamente para o ambiente virtual. Além de desenvolver filtros críticos do que é certo e errado.
Todas essas atividades são compartilhadas com as famílias e isso cria uma relação de confiança em relação à forma que a escola lida com as situações. “Quando acontece algo procuramos entender o que gerou aquilo e como vamos resolver, tudo de forma coletiva com a ajuda de cada um e sem trazer punições”, explica a gestora escolar.
Fonte: Nova Escola