Educação & Cultura
Estratégias para aplicar a lei nº 10.639 em sala de aula
Entenda como é possível abordar conteúdos das relações étnico-raciais de maneira alinhada à BNCC e ao que é ensinado em cada componente
Discutir sobre a questão racial nas escolas é um terreno delicado, pois envolve nossas representações, nossos sentidos e valores. Por isso, a professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva afirma que leis que regulam a Educação são difíceis de serem aplicadas, porque mexem com a estrutura e com o projeto social do país.
Historicamente, a sociedade brasileira foi forjada em um mito que afirmava haver democracia racial, criando-se a crença, no senso comum, de não haver racismo no Brasil. Por isso, bell hooks afirma que aqueles que querem debater os problemas do racismo vão, primeiramente, demandar elevada energia para convencer a sua existência.
Calma professor, não quero te desanimar! Quero apenas trazer a realidade que é trabalhar com as relações raciais e ajudá-lo a refletir sobre algumas estratégias de atuação.
Em toda minha trajetória, enquanto professora, tenho testemunhado a necessidade urgente de se criar um ambiente de aprendizagem que respeite e valorize a diversidade. Apesar disso, vejo que professores não possuem formação acadêmica adequada para trabalhar com as temáticas da Educação para as Relações Étnico-raciais (ERER), das histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas e isso é um sério problema estrutural do nosso sistema de educação universitária, que precisa de solução.
Porém, essa questão não pode ser um entrave para a aplicação da Lei n. 10.639/2003. Aprendi com a professora Dra. Nilma Lino Gomes, que trarei em outros momentos desta coluna, que educar para as relações raciais é, antes de tudo, uma questão de posicionamento, envolvimento e compreensão. “(…) falar sobre diversidade e diferença implica, também, posicionar-se contra processos de colonização e dominação. Implica compreender e lidar com relações de poder. Para tal, é importante perceber como, nos diferentes contextos históricos, políticos, sociais e culturais, algumas diferenças foram naturalizadas e inferiorizadas tratadas de forma desigual e discriminatória. Trata-se, portanto, de um campo político por excelência”. (GOMES, 2007, p.31).
O que a professora Nilma quer nos dizer é que, para concretizarmos uma educação em prol da diversidade, é preciso privilegiar temáticas conectadas aos sujeitos históricos. Assim, ao levar para sala de aula conteúdos sobre desigualdade, discriminação e racismo, não se está apenas evidenciando a existência desse problema social por meio do assunto ensinado ou trazendo a realidade na qual se inserem os sujeitos sociais, como também está promovendo a existência em si dos sujeitos históricos que vivenciam tais realidades.
E, professor, não se preocupe se, em uma aula em que a temática discutida for o racismo, milhares de dúvidas forem apresentadas. Não se preocupe, também, se não tiver resposta para todas elas. Em vez de ter todas as respostas, por que não promover a pesquisa coletiva em que professores e alunos aprendem juntos?
Precisamos de um currículo mais expansivo e menos conservador. A professora Nilma diz que, para que isso aconteça, faz-se necessário o rompimento com a postura de neutralidade diante da falta de diversidade, que ainda se encontra nos currículos e em várias iniciativas de políticas educacionais, as quais tendem a se omitir, negar e silenciar. Ou seja, precisamos de um currículo que contenha abordagens da história e cultura dos segmentos sociais e raciais desprestigiados em nossa sociedade. Esses grupos lutaram e ainda lutam por direitos.
No entanto, vocês podem estar se perguntando: e se não tivermos esse currículo? O professor Dr. Gustavo Gomes da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) tem um pensamento que, pra mim, responde bem a essa pergunta. Ele diz que os professores são subjetividades curricularizadas, isto é, nós somos autoridade de cátedra, intelectuais mediadores do conhecimento que transita no chão da escola. Podemos criar, mediar, questionar, produzir, reconfigurar o conhecimento a ser trabalhado por nossos alunos (GOMES, 2020).
Então, professor, não espere a mudança curricular. Seja você mesmo a mudança! Para te incentivar a ser um dispositivo educacional antirracista no chão da escola, apresento aqui o principal ponto trabalhado pela professora Eliane Cavalleiro sobre a prática da Educação Antirracista:
- A primeira ação de um professor antirracista é reconhecer o problema do racismo e suas formas de ação. O racismo nem sempre age sozinho, ele possui aliados. Nesse caso, é importante falar das interseccionalidades, e trazer as diferenças econômicas, de gênero, o patriarcalismo, o sexismo e outras problemáticas que atuam com o racismo, ou seja, diversos marcadores de opressão que operam de forma combinada.
Um bom exemplo prático seria criar uma aula com a temática Raça e Racismo. Comece assim: por que é importante criar uma aula com essa temática?
As relações raciais têm uma demanda de provocar afetos a favor ou contra. Há os defensores fervorosos da ERER, mas há aqueles que dizem não ter como interceder a favor dos assuntos abordados por não terem habilidade ou competência de seu componente escolar. Veja, professor, educar para as relações raciais é, não só atender às competências e habilidades dos componentes curriculares, mas criar espaço de conscientização da contribuição de todos os grupos raciais que formam nossa sociedade.
Evidenciar a ERER é uma questão de posicionamento, pois se o professor não se identificar com a urgência de superar a péssima qualidade nas relações raciais ele não se movimentará de forma antirracista, porque não enxerga que o racismo exista de maneira estrutural. É preciso entender a importância de se trabalhar esse tema como um caminho de superação das discriminações raciais, pensar aquilo que nos afeta negativamente quando abordamos a presença dos elementos afro-brasileiros – muito embora alguns assuntos das relações raciais sejam tão apagados que nem nos damos conta da sua ausência e do nosso direito de aprender, infelizmente.
Colocando a mão na massa
Apesar das lacunas – e de uma luta paralela para preenchê-las – há um caminho a ser trilhado: o professor precisa introduzir no conteúdo curricular, guiado pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), itens, discussão, assunto que venha evidenciar os princípios e valores das leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008.
Então, professor, você pode me perguntar como trazer a discussão da ERER, Histórias e Culturas Africanas, Afro-brasileiras e Indígenas se não há nenhuma menção em seu currículo para tal debate, não é mesmo?
A primeira impressão que dá é que você dará duas aulas com assuntos diferentes. Ora lecionará sobre ecossistema, equação do 2º Grau, neurônios… ora falará de raça e racismo.
Porém, digo que, sim, é possível trazer conteúdos das relações raciais para a sala de aula por meio de estratégias pedagógicas criativas que unam aquilo que já ensinamos com uma abordagem intencional, de forma alinhada à BNCC.
O fato é que tudo isso ainda depende muito do posicionamento, do querer ver a diversidade transitar no chão da escola, de entender a importância desse trabalho para a sociedade brasileira. Por isso, a primeira ação de um professor antirracista é reconhecer o racismo como um problema e entender o campo educacional como espaço de atuação política, econômica e cultural. E a escola como um locus de atuação em prol de uma sociedade que se queira e se organize de forma mais democrática. O trabalho com a ERER deve ser um trabalho pedagógico em que todos os professores possam contribuir dentro do seus componentes curriculares.
ERER nas aulas de Língua Portuguesa
Monica Aniceto, professora de Língua Portuguesa da Escola Municipal Embaixador Barros Hurtado (GERER – SME-RJ), nos conduz em um caminho possível de utilização dos princípios da Lei n. 10.639/2003 dentro do componente pedagógico do qual leciona.
“Por exemplo, para trabalhar semântica, a BNCC diz que o aluno deve conhecer e perceber os efeitos de sentido nos textos decorrentes de fenômenos léxico-semânticos, tais como aumentativo/diminutivo; sinonímia/antonímia; polissemia ou homonímia; figuras de linguagem; modalizações epistêmicas, deônticas, apreciativas; modos e aspectos verbais. Uma boa opção é levar para a sala de aula a canção A mão da limpeza, de Gilberto Gil”.
A professora Monica explica que “a canção faz um jogo com os substantivos sujeira e limpeza, a partir de um ditado popular racista: Negro quando não suja na entrada/Vai sujar na saída. Dessa forma, é possível falar sobre a importância dos ditados populares e da oralidade, mas também acentuar uma fala sobre a cultura popular racista em nosso país.
Eu, como professora de História, acrescentaria o questionamento do porquê desse ditado, realçando os sentidos de negro construídos em nossa sociedade com intencionalidade negativa, provocando os alunos a refletirem que todo o dilema que o negro sofre está em decorrencia de sua cor, em primeiro lugar, e que não há lógica em direcionar uma interpretação de caráter, comportamento ou outra questão com base na cor da pele de um indivíduo.
Em seguida, a professora Mônica traz a possibilidade de se fazer uma reflexão, com os alunos, sobre o caráter polissêmico das palavras, a partir da intencionalidade discursiva de quem fala. E, com o olhar de historiadora, fiquei pensando o quanto ainda é possível evidenciar a questão do poder de determinados grupos raciais dentro da lógica racista e até questionar o falso “racismo reverso”.
A professora Mônica acrescenta que nessa aula pode-se falar sobre a variação linguística e a substituição da palavra escravo (em desuso) para escravizado, ampliando o olhar de nossos alunos para a naturalização que nossa cultura fez do lugar do negro enquanto escravizado.
Quando eu ensino sobre a escravidão nas sociedades do mundo antigo e afirmo quem eram os escravizados daquele período, percebo o espanto dos alunos em descobrirem que qualquer pessoa, independentemente da cor, poderia ser escravizada, bastava ser prisioneira de guerra ou endividada. Ou seja, a cultura naturalizou o lugar do negro enquanto escravo. Sendo assim, falar da variação linguística e o uso das palavras escravo e escravizado não só trabalha o conteúdo de variação linguística, mas também a ERER, simultaneamente.
Musicalização e relações étnico-raciais
Outro exemplo de como é possível a utilização dos princípios da Lei n. 10.639/2003 dentro do componente pedagógico do qual se leciona é compartilhado por Karen Lamego, professora da Educação Infantil da Escola Projeto Favela Mundo (RJ). É importante destacar que, apesar das leis não atentarem sua aplicabilidade na Educação Infantil, é possível e importantíssimo os professores fazerem valer a inserção desse conhecimento nesta etapa.
A professora Karen faz um trabalho de musicalização e ERER junto às crianças e, segundo ela, é interessante partir do princípio de que o objetivo da musicalização não é ensinar a criança pequena a tocar instrumentos musicais e, sim, o desenvolvimento de habilidades específicas como as motoras, emocionais e cognitivas.
“A musicalização nessa faixa etária (0 a 6 anos) pode ser um recurso para desenvolver habilidades específicas e a ERER, porque o professor ao escolher uma música de origem afro-brasileira e apresentá-la no cotidiano dos pequenos, cria espaço de conscientização da existência da diversidade musical na cultura brasileira, evidenciando outros grupos étnico-raciais, além de auxiliar na construção positiva de aceitação e pertencimento da criança preta com sua identidade racial”, comenta a colega Karen.
Por fim, a professora nos deixa uma dica de atividade prática: “uma boa alternativa pode ser a construção do instrumento musical tambor, usando objetos de fácil manuseio como um balde e fita adesiva grossa. Essa atividade, inclusive, estimula a coordenação motora fina. A construção dos instrumentos é feita de forma coletiva de modo a potencializar as rodas de diálogos já existentes na educação infantil”. Diga-se de passagem, a organização da roda faz parte de um valor civilizatório afro-brasileiro, apresentado ao campo da Educação pela professora Dra. Azoilda Loreto da Trindade. Aliás, caro colega, vale se aprofundar nesses valores e introduzi-los em suas práticas.
A mudança na nossa maneira de vivenciar as relações raciais passa, também, pela transformação do nosso comportamento. Contudo, precisamos primeiro mudar nosso próprio pensamento, que reflete em nossas ações, outrossim não podemos deixar de cobrar políticas públicas a respeito das condições sociais diárias que facilitam as crenças na lógica racista. Faça acontecer, professor. Conte comigo e com a NOVA ESCOLA!
Lavini Castro é educadora antirracista. Doutoranda em História Comparada pelo PPGHC/UFRJ. Mestre em Relações Étnico-Raciais pelo PPRE/CEFET-RJ. Historiadora pela UFRJ. Professora de História do Ensino Fundamental e Ensino Médio das redes pública e particular do estado do Rio de Janeiro. Idealizadora e coordenadora da Rede de Professores Antirracistas. Ganhadora do Prêmio Sim à Igualdade Racial do ID_BR em 2021.
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