AGRICULTURA & PECUÁRIA
Soluções inovadoras impulsionam a transição energética da indústria brasileira
Biomassa e resíduos da agropecuária têm papel fundamental para diminuir a participação de combustíveis fósseis no setor de transportes
Um dos líderes mundiais na produção agropecuária, o Brasil tem grande potencial para ampliar o uso de biomassa e resíduos do campo como fontes produtoras de energia limpa e renovável. A biomassa de cana representou 15,4% da oferta interna de energia no Brasil em 2022. É a maior parcela entre as fontes renováveis de energia que compõem a atual matriz nacional, conforme indica o quadro abaixo. A informação é do Relatório Síntese do Balanço Energético Nacional 2023, da Empresa Nacional de Energia, ligada ao Ministério de Minas e Energias (MME) – disponível on-line aqui,
O entendimento e a aplicação do conceito de circularidade é um dos pilares para se alcançar maior eficácia no processo de transição energética. A ideia básica é diminuir ao máximo a produção de resíduos que, em uma situação ideal, chegaria a zero, ou seja, não geraria lixo ou qualquer material a ser descartado.
No setor agropecuário, a produção do etanol de cana-de-açúcar é um dos exemplos em que esse ideal é quase atingido devido ao alto índice de aproveitamento da biomassa de cana. Originalmente, produz-se etanol e os restos que ficam no campo após a colheita, a palha da cana, em vez de ser descartada, é aproveitada para gerar dois subprodutos comercializáveis: bioinsumos e biocombustíveis de segunda geração O biogás obtido desses resíduos atende, por exemplo, à demanda do setor de transportes por matérias-primas renováveis que diminuam a pegada de carbono do setor automobilístico. E os bioinsumos servem de fertilizantes naturais que incrementam a produtividade da própria cana e de outras culturas agrícolas.
No Brasil, esse é um potencial subaproveitado já que apenas 17% da capacidade instalada no setor sucroenergético está em operação. Para efeitos comparativos, no setor petrolífero, o índice de aproveitamento é quase pleno (97%). “Temos cerca de 60 indústrias que podem produzir 14,6 bilhões de litros de etanol por ano. Mas nossa estimativa é que, até o final de 2023, consigamos produza menos da metade desse montante”, lamenta Donizete Tokarski, diretor-Superintendente da União Brasileira do Biodiesel e Bioquerosene (Ubrabrio). “Precisamos diminuir essa ociosidade para que possamos dar toda a contribuição que está ao nosso alcance nesse processo de transição energética”, destaca.
Para Donizete, a Embrapa tem um papel fundamental como parceira na superação desse e de outros entraves que o segmento ainda enfrenta. Em suas palavras, “por ser uma empresa de excelência reconhecida mundialmente e instituição vinculada ao Estado, a Embrapa tem total capacidade e legitimidade para atuar em favor de políticas públicas necessárias para ampliar a participação do agro brasileiro nesse processo”.
Outras culturas com potencial para produção de biomassa
Além da cana, outras culturas agrícolas, como o milho, a soja e a canola fornecem biomassa como matéria-prima para o etanol e, potencialmente, para a produção de combustíveis verdes. Nos EUA, por exemplo, prevalece o etanol de milho como alternativa aos fósseis. No Brasil, assim como o etanol de cana, substratos de outras culturas agrícolas podem compor a mistura de combustíveis fósseis como elemento redutor da quantidade de gases poluidores emitidos quando usamos gasolina e diesel.
Diminuir a ociosidade da capacidade instalada do segmento sucroenergético por meio da ampliação dos percentuais de etanol permitidos na composição dessa mistura é uma das demandas do setor. Atualmente, o mínimo exigido é 17% e o máximo permitido é 27,5%. E há, neste momento, uma janela de oportunidade para conciliar o atendimento a essa demanda com a necessidade de aceleração do processo de transição energética: o Projeto de Lei Combustível do Futuro que foi apresentado pelo governo federal e está em tramitação no Congresso Nacional. Entre outras medidas, o PL propõe um aumento desses limites para 22% e 30%, respectivamente.
E não é só a cultura da cana que tem um potencial subaproveitado quando se trata da produção de combustíveis verdes a partir de biorenováveis. Restos vegetais agrícolas e rejeitos da criação animal já são usados para a produção de biogás e biometano.
Recorrendo novamente ao paralelo com a indústria de fósseis, reproduz-se na cadeia extratora de biomassa e na obtenção de substratos orgânicos o que já se observa na do petróleo. Dessa matéria-prima original a indústria produz plásticos e combustíveis líquidos e ainda aproveita o gás natural resultante do processo original de extração do óleo. A intervenção logística é necessária apenas para canalizá-lo e assim gerar energia. Nada é desperdiçado, como lembra Amanda Duarte Gondim, coordenadora da Rede Brasileira de Bioquerosene e Hidrocarbonetos Sustentáveis de Aviação (RBQAV).
“Seguindo esse exemplo, temos também que beneficiar a biomassa ao máximo para ter maior índice de aproveitamento e maior valor agregado”, aponta, ao explicar porque a circularidade é fator essencial para que opções conhecidas tornem-se viáveis do ponto de vista econômico. “O aproveitamento de resíduos ajuda a fechar a conta ao baratear os custos de produção”, explica, em fala complementar à do representante do setor sucroenergético. “Somos favoráveis ao diesel verde e ao bioquerosene. Mas são alternativas que custam quase o dobro do biocombustível. Ainda que o melhor seja o diesel verde, ele sai pelo dobro do preço do etanol de cana”, informa Donizete.
O papel da agropecuária no mercado de biorenováveis
Mais um motivo para que a pesquisa agropecuária siga com suas investigações e descobertas. “Vai haver potencialmente uma competição por matéria-prima de origem biorenovável. E se não conseguirmos diversificar seguiremos restritos e sempre dependentes das mesmas culturas agrícolas”, assinala Alexandre Alonso, chefe-geral da Embrapa Agroenergia. E biomassa há de sobra no Brasil. Mas ao pensar nas demandas industriais, a logística é um fator de grande peso.
Pensando na instalação de novas biorrefinarias, por exemplo, é possível planejar para que estejam próximas a regiões produtoras da biomassa adotada industrialmente. Como lembra Alonso, produzir e consumir no mesmo lugar é uma das maneiras de se diminuir custos. “Nem sempre teremos matérias-primas nos locais em que as demandas surgem. Mas os esforços da pesquisa agropecuária se voltam para conhecer e aproveitar ao máximo a diversidade de espécies vegetais do Brasil, considerando, por um lado, a ocorrência natural de algumas delas em determinadas regiões, e, de outro, seus níveis de adaptabilidade a diferentes territórios”, assegura o chefe da Embrapa Agroenergia.
Retomando a ideia de circularidade, a Geo Biogás & Carbon, tornou-se, ela mesma, exemplo aplicado do conceito ao aliar o potencial do setor agropecuário com a geração de gás eficiente. Unidades da empresa usam os subprodutos resultantes da produção do etanol para gerar tanto a energia consumida em suas instalações quanto os biocombustíveis que abastecem seus veículos. “Resíduos da produção de etanol, geram, como subprodutos, biometano e biogás. O biogás é aproveitado para a geração de energia elétrica. E o biometano, para o biocombustível veicular”, detalha Alysson Oliveira, Gerente de Pesquisa e Desenvolvimento da empresa. E, conforme destacou, em casos assim, o campo ganha duas vezes: por um lado, diminui os custos de produção ao comercializar subprodutos a partir de resíduos que seriam descartados.
Por outro lado, incrementa a produtividade da lavoura ao usar restos culturais e resíduos da pecuária para gerar biofertilizantes. “Temos experimentos que comprovam esse incremento de produtividade na lavoura da cana a partir do uso da própria palha residual, fechando perfeitamente o ciclo de sustentabilidade”, informa.
Como mostra o quadro do BNE reproduzido no início desta reportagem, que apresenta a Repartição da Oferta Interna de Energia (OIE) no Brasil em 2022, petróleo e derivados têm a maior participação no mercado interno entre as fontes não renováveis (37,5%).
Transição energética
Hoje, com a contribuição da pesquisa agropecuária, o País tem um modelo bem-sucedido que pode ser replicado para acelerar a transição energética no segmento de combustíveis. Como vimos, o setor sucroenergético é um exemplo consolidado de cadeia produtiva sustentável, eficiente e eficaz para fornecer biomassa como matéria-prima alternativa às derivadas do petróleo. Um caminho acertado para atender a demanda presente e futura do setor de transportes leves. Mas quando observamos o setor de transporte, para a aviação e navegação marítima, que demandam os chamados combustíveis verdes, a realidade é bem mais desafiadora.
Navios e aviões demandam grandes quantidades de combustível líquido. E os combustíveis verdes, como hidrogênio, amônia ou querosene são criados a partir de moléculas que precisam ser liberadas em grandes quantidades para possibilitar uma produção em larga escala. Além disso, diferente de carros de passeios, aeronaves e grandes embarcações têm uma vida útil bem mais longa, de 20 a 25 anos. Assim, está dado que a substituição de combustíveis fósseis por biocombustíveis no transporte de grande porte se dará em ritmo bem mais lento.
Além disso, há outros fatores que tornam a transição energética nesses segmentos mais complexa. É o que explica a coordenadora da Rede Brasileira de Bioquerosene e Hidrocarbonetos Sustentáveis de Aviação (RBQAV), Amanda Duarte Gondim.
“A adoção de bioquerosene para promover a descarbonização desses setores é mais desafiadora porque são indústrias que demandam grandes volumes de um combustível líquido de alta capacidade energética”. Isso envolve questões logísticas, de transporte, armazenamento. E, para a pesquisa agropecuária, segundo Amanda, “o desafio tecnológico é, a partir de uma matéria-prima renovável e sustentável, obter biocombustíveis de alto poder energético”.
Já se sabe que o setor agropecuário tem soluções comprovadamente eficientes, como o biogás composto de metano e CO2 gerado a partir de resíduos do campo. “Esse biogás, ao passar por um processo específico, torna-se um gás de síntese que libera moléculas de metano e de CO2“, explica Alysson Oliveira,. “E a liberação é em grande quantidade, em volume suficiente para produzirmos hidrogênio e metanol verdes”, atesta.
Em geral, a produção de biocombustíveis de alto poder energético, como os necessários para aviões e navios, utiliza processos termoquímicos. “Mas a Embrapa tem uma grande expertise na parte biológica, com trabalhos de fotocatálise e de eletroquímica para a transformação de biomassa em combustíveis verdes”, destaca Amanda Gondim. “Ainda está em desenvolvimento, mas precisamos impulsionar essas áreas para que lá na frente tenhamos uma gama maior e bem diversa de opções”, recomenda. E, por isso, acredita ser essencial haver total apoio à Embrapa em seu trabalho de descobrir mais e melhores fontes de biomassa entre as culturas agrícolas para prover as demandas da indústria por biocombustíveis.
Embora no Brasil ainda existam lacunas, principalmente, em termos de regulamentação e efetividade de normativos, para Alysson Oliveira, “é possível fazer agora escolhas de baixo nível de carbono, pois se trata de um mercado extremamente desenvolvido”. Entre dados de um estudo de 2019 ele cita a seguinte estimativa: a produção potencial de biogás no Brasil, somente a partir de bioresíduos agropecuários, seria suficiente para substituir até 40% da energia elétrica consumida anualmente no país. “E isso considerando apenas resíduos do setor sucroenergético, de agroindústrias e de saneamento. Ou seja, sem competição com as culturas agrícolas fornecedoras de biomassa”.
Brasil tem grande potencial na produção de combustível sustentável
É com base em estimativas como essa que o gerente de PD&I da Geo Biogás & Carbon acredita que o Brasil pode ser um grande provedor de combustível sustentável de aviação para o mundo, contribuindo para superar parte das dificuldades que esse setor enfrenta na busca pela descarbonização. Resíduos da agropecuária são comprovadamente fontes renováveis eficientes para a produção de biogás, como comprovado pelo modelo praticado na empresa onde atua. E são recursos de que o Brasil dispõe em grande quantidade, situação privilegiada e equiparável a de poucos países do mundo.
O Brasil é uma incontestável potência agropecuária mundial. E, como bem lembra o Diretor-Presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (UNICA), Evandro Gussi, “a agricultura é o único setor produtivo que além de sequestrar carbono tem capacidade de gerar soluções para evitar aumento das emissões”. Mais de 12 milhões de produtores estão vinculados à UNICA por meio de 32 associações que a compõem. Juntos, são responsáveis pela produção anual de 57 milhões de toneladas de cana no Brasil. Segundo dados apresentados por Evandro, 40% deste montante estão nas mãos de produtores e 60% na de usinas.
“O desenvolvimento, pela pesquisa, de variedades de cana com melhores teores para a produção de etanol de segunda geração é muito importante para o nosso segmento”, fez questão de destacar. “E o Brasil pode conquistar fatias do mercado internacional ao internacionalizar esse know how científico”, opina.
Painel debate potencial de descarbonização de biocombustíveis
As falas, opiniões, dados e perspectivas dos especialistas e representantes de diferentes segmentos da cadeia produtiva agro energética no Brasil foram apresentados no painel Transição energética e potencial de descarbonização dos biocombustíveis, realizado no dia 25/10, como parte da programação do VII Encontro de Pesquisa e Inovação da Embrapa Agroenergia (VII EnPI). O evento presencial aconteceu em Brasília (DF) ao longo de três dias. É organizado pela Unidade da Embrapa criada exatamente para estabelecer uma ponte para viabilizar o fluxo constante entre a pesquisa agropecuária e a indústria de produção de energia renovável em suas diferentes vertentes.
Entre as soluções resultantes das pesquisas da Embrapa Agroenergia estão exatamente biocombustíveis e bioprodutos, além de modelos para o processamento e beneficiamento de matérias-primas de origem animal e vegetal.
Na carteira de projetos da Unidade, 35% são desenvolvidos em parceria com setor produtivo”, destacou Bruno Galvêas Laviola, chefe-adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Agroenergia, mediador do painel Tecnologias da Embrapa, realizado na mesma tarde do dia 25/11. Inovações tecnológicas desenvolvidas pela empresa com trajetórias mercadológicas bem-sucedidas foram o fio condutor das falas dos palestrantes desse tema.