Judiciário
Indicação de Dino mostra o STF agindo como Poder Moderador. Constituição diz que não deveria
Sem previsão na Constituição de 1988, o Poder Moderador será objeto de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em ação proposta pelo PSOL (ADPF 1.045), recentemente submetida ao plenário pelo ministro Luiz Fux. Na ação, o partido pede que o STF declare inconstitucional a interpretação de que as Forças Armadas constituam Poder Moderador no Brasil.
Contudo, outro órgão vem sendo recorrentemente reivindicado como Poder Moderador, sem que haja previsão de que esta tese constitucional seja levada a julgamento. Trata-se do próprio STF.
A reivindicação do status constitucional de Poder Moderador da República para o STF já foi feita múltiplas vezes por membros do próprio tribunal. O ministro Dias Toffoli, por exemplo, afirmou em 2021, em evento realizado em Lisboa, que o Brasil vivia, na prática, um regime semipresidencialista tendo o STF como Poder Moderador. Deu como exemplo a atuação do tribunal na pandemia de Covid-19.
O ministro Alexandre de Moraes também já defendeu a tese em múltiplas ocasiões; por exemplo, em palestra dada em 31 de março deste ano.
O que é o Poder Moderador?
O Poder Moderador foi idealizado pelo filósofo francês Benjamin Constant (1767-1830), que o chamava de “Poder Real”, porque era a fração de poder que deveria continuar nas mãos dos reis, mesmo após a adoção de constituições escritas.
Conforme Constant, o Poder Real, dado o seu caráter hereditário, se caracterizaria por não prestar contas ao povo, nem a qualquer outro poder – era “inviolável”. Nisso contrastava, por exemplo, com os ministros de Estado, que, ao contrário do rei, tinham “responsabilidade” perante o Legislativo – isto é, podiam ser removidos do cargo.
Em relação aos outros poderes, o Poder Real, nas palavras de Constant, seria “ao mesmo tempo, superior e intermediário”. Superior porque, sempre que julgasse que outro poder tivesse agido mal, teria prerrogativas para intervir e prevalecer sobre ele; e intermediário porque deveria usar essas prerrogativas para resolver conflitos que eventualmente surgissem entre os poderes, restabelecendo a harmonia entre eles.
A teoria de Constant não teve sucesso em se propagar; a grande maioria das constituições adotou a tripartição de poderes – caso, por exemplo, da atual constituição brasileira, que arrola expressamente, em seu artigo 2º, os poderes existentes na República: Legislativo, Executivo e Judiciário.
Mas uma exceção foi a Constituição de 1824 no Brasil, vigente ao longo do Império.
O Poder Moderador não está sujeito a responsabilidade alguma
A Constituição de 1824 tratava do Poder Moderador no seu Título 5º, Capítulo I, como um dos poderes chefiados pelo imperador (sendo o outro o Executivo). É perceptível a influência dos escritos de Benjamin Constant no vocabulário utilizado.
Por exemplo, o artigo 99 dizia: “A pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma”.
Em contraste, no que se refere ao STF, a atual Constituição prevê, sim, responsabilidade dos ministros perante o parlamento, podendo ser removidos do cargo pela via do impeachment: “Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: […] II – processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal […] nos crimes de responsabilidade”.
No entanto, apesar da previsão constitucional, ministros do STF já insinuaram que não acatariam eventual decisão do Senado neste sentido. O ministro Gilmar Mendes, em discurso recente, declarou, a respeito desta possibilidade, que eventuais processos de impeachment contra os ministros “hão de estar submetidos ao crivo judicial” para enterrar “acusações mambembes”.
Ora, a prerrogativa de julgar se uma acusação é “mambembe” ou não foi justamente atribuída pela Constituição, em caráter privativo, ao Senado. É o que está contido no próprio verbo “julgar”. Caso o tribunal possa rever o mérito da decisão, julgando, em última instância, seus próprios membros, isto significará que o STF, como órgão, terá, com efeito, passado a “não estar sujeito a responsabilidade alguma”, exceto pelo seu próprio controle interno, à maneira do Poder Moderador.
O Poder Moderador prevalece sobre os outros poderes
A prerrogativa de sancionar ou deixar de sancionar textos aprovados pelo Legislativo era atribuída, na Constituição de 1824, ao Poder Moderador (art. 101, III). Era uma das formas que Benjamin Constant idealizava como manifestação da supremacia do Poder Real, usada para corrigir erros políticos de outro poder.
Sob a Constituição de 1988, o STF é concebido como um órgão que se limita a comparar os novos textos aprovados com o texto da Constituição para aferir se são compatíveis com ela. Se forem compatíveis, os ministros devem aceitá-los, ainda que os julguem ruins. Isto é, não têm poder de veto político.
No entanto, a existência de conceitos jurídicos indeterminados e o ativismo judicial tornam cada vez menos nítida a distinção entre a análise jurídica da constitucionalidade de uma norma e a análise política, isto é, se deve ou não ser adotada.
Por exemplo, após a recente aprovação em primeiro turno da PEC 8/2021, que tende a reduzir os poderes individuais dos ministros do STF, ministros fizeram discursos sobre a PEC nos quais insinuaram que podem derrubá-la como inconstitucional, se promulgada. O ministro Gilmar Mendes disse, entre outras coisas, que a PEC “não possui qualquer justificativa plausível” – o que é um exemplo de avaliação política, e não jurídica, da proposta. Se a PEC fosse derrubada pelo STF sob este fundamento, seria um ato mais típico de Poder Moderador do que de Poder Judiciário.
Da mesma forma, o STF também pode anular atos do Poder Executivo. Neste sentido, como já dito, o ministro Toffoli afirmou que o tribunal se comportou como Poder Moderador na pandemia de Covid-19. Provavelmente quis dizer que o STF foi além de analisar se os atos de enfrentamento da pandemia eram compatíveis com a lei e a Constituição; em vez disso, o tribunal tomou, por conta própria, decisões políticas sobre os melhores meios de enfrentar a pandemia e fez seu juízo prevalecer sobre o do Executivo.
O Poder Moderador indica, mas não é indicado
A Constituição de 1824 atribuía ao Poder Moderador a prerrogativa de tutelar os outros poderes, nomeando os ocupantes dos seus cargos-chave. No Legislativo, escolhendo, a partir de listas tríplices, os senadores (câmara alta do parlamento). No Executivo, “nomeando, e demitindo livremente, os Ministros de Estado”, isto é, o governo (a partir de 1847, nomeava também para um novo cargo, equivalente ao de primeiro-ministro em outros países).
Inversamente, o Poder Moderador não tinha seu ocupante escolhido por nenhum dos outros poderes. Isso porque a Constituição estabelecia um regime “monarchico hereditario” (não se trata de pleonasmo: algumas monarquias, no passado e atualmente, como a Jordânia, adotam um sistema em que o monarca, vitalício, pode indicar seu próprio sucessor).
No que se refere ao STF, a Constituição de 1988 adotou o caminho inverso: STF indicado, sem indicar. Estabeleceu que os ministros do tribunal seriam nomeados pelo presidente da República, após aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. Isto é, incluiu os dois outros poderes na escolha, mas, notavelmente, deixou excluído do processo o próprio Poder Judiciário – possivelmente para garantir uma forma a mais de controle externo do órgão (além do impeachment); desta vez, prévio.
No entanto, na prática, constitucional brasileira atual, é possível que a situação tenha se invertido.
Neste sentido, a jornalista Ana Flor, da GloboNews, afirmou ter apurado: “tem gente reclamando dentro do governo que tem ministro do Supremo que está indicando para-tudo: está indicando PGR, Supremo”. O jornalista Alisson Mattos, do portal O Bastidor, afirma que a indicação de Flávio Dino ao STF pelo presidente Lula seria resultado de “influência do STF no governo”; afirma também que os ministros do STF teriam sugerido o nome de Simone Tebet como ministra da Justiça, ecoando o Poder Moderador de outrora, que indicava ministros de Estado.
Também no Senado os ministros do STF estariam exercendo influência. A jornalista Eliane Cantanhêde chegou a ler no ar o que afirmava ser mensagem de texto enviada pessoalmente a ela por um ministro não identificado do STF, e na qual o ministro exigia a destituição do atual líder do governo no Senado.