ESTADO
A leitura da Lei de Saneamento pelos estados e a prestação regionalizada: evidente fraude à lei
Sendo curto e direto, isso não passa de uma gambiarra interpretativa que se destina apenas a manter o monopólio das empresas estaduais no setor.
Como noticiado recentemente pelo jornal Valor Econômico, os estados e as suas companhias estaduais de saneamento têm colocado em prática uma solução no mínimo questionável para burlar a exigência de concessão que veio com o novo Marco Legal do Saneamento Básico [1]. A tese é a de que as estatais podem ser contratadas de forma direta nas hipóteses de prestação regionalizada, pois, nesses casos, os estados integrariam a administração do titular dos serviços e, consequentemente, se enquadrariam na exceção prevista no artigo 10 da Lei nº 11.445/07.
Sendo curto e direto, isso não passa de uma gambiarra interpretativa que se destina apenas a manter o monopólio das empresas estaduais no setor.
Segundo o artigo 10 da Lei n. 11.445/07, a prestação dos serviços de saneamento por entidade que não integra a administração do seu titular exige a celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação. Logo, a prestação direta (sem prévia licitação) somente é admitida quando os serviços são prestados por entidade que integra a administração do seu titular. A questão, portanto, é saber na prestação regionalizada o estado pode ser enquadrado no conceito de titular dos serviços, a justificar a prestação direta pela estatal a ele vinculada. E a resposta só pode ser não.
Com todo o respeito, a ideia de que, com a prestação regionalizada, o estado passa a ser o titular dos serviços é absolutamente equivocada. A Lei nº 11.445/07 prevê duas ordens de titularidade: quando o interesse na prestação dos serviços é local, a titularidade é dos municípios (regra); quando o interesse é comum, nos casos de prestação regionalizada, a titularidade é compartilhada entre estado e municípios (incisos I e II do artigo 8º). Veja que o titular não é o estado, não são os municípios, mas ambos, em regime compartilhado. Não existe titularidade do Estado para serviços de saneamento.
Trata-se de regra que está em consonância com o decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 1.842/RJ, onde ficou definido expressamente que a criação de região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião não pode resultar no fim da autonomia política dos municípios. Por isso, nesses casos, conforme fez constar o ministro Joaquim Barbosa em seu voto, “[…] a titularidade do exercício das funções públicas de interesse comum passa para a nova entidade público-territorial-administrativa, de caráter intergovernamental […]”. E a nova entidade, embora integrada pelo estado, não com ele não se confunde.
Ou seja, a tese adotada pelos Estados de que eles são os titulares dos serviços nas hipóteses de prestação regionalizada simplesmente pelo fato de integrarem o ente multifederativo não encontra lastro em lei. E isso por um motivo simples: nos termos da Lei nº 11.445/07 e da jurisprudência do STF, nos casos de prestação regionalizada o estado, isoladamente, não é o titular dos serviços, assim como os municípios também não o são. O titular é o ente coletivo e interfederativo por eles integrado.
E, assim sendo, a prestação dos serviços de forma direta somente poderia ser realizada por uma entidade vinculada à microrregião e por ela controlada. Para a incidência da exceção prevista no artigo 10 da LSBN seria preciso que a estatal fosse organizada e administrada pelos municípios e pelo estado, que, em conjunto, e não isoladamente, são os titulares do serviço. Em outras palavras, o fato de um dos entes que formam o consórcio possuir uma estatal não justifica a violação ao dever de licitação.
Prestação regionalizada não implica transferência da titularidade municipal para a esfera estadual ou mesmo federal. Nesses casos, o que há é a criação de uma competência compartilhada em nível federativo a ser exercida por meio das figuras jurídicas que regem esse modelo de cooperação. Isso demonstra que a interpretação que tem sido dada por alguns estados brasileiros à Lei de Saneamento, de que eles seriam os titulares dos serviços na prestação regionalizada e, portanto, a estatal por eles controlada pode ser contratada de forma direta, é falaciosa.
Não podemos esquecer, aqui, que a vedação à contratação direta das empresas estaduais é uma das premissas do novo Marco do Saneamento Básico, que tem como um de seus princípios fundamentais a garantia da seleção competitiva do prestador dos serviços (artigo 2º, inciso XV, da Lei nº 11.445/07). Seguindo essa linha de raciocínio, o que temos assistido é uma verdadeira tentativa de suprimir a titularidade e a autonomia dos municípios em gerir e organizar a prestação dos serviços de saneamento com o único objetivo de garantir às estatais mercados cativos, em evidente fraude à Lei nº 11.445/07 [2].
A única hipótese de contratação direta admitida é de ente que integre a administração do titular do serviço, exceção vocacionada a preservar a titularidade e a autonomia que a Constituição reservou aos municípios no que toca ao saneamento básico. Nada disso tem a ver com a edição de leis complementares que, a título de instituir prestações regionalizadas de saneamento, subvertem o espírito e uma das principais bases fundamentes do novo Marco Legal do Saneamento: a abertura do setor à competitividade entre empresas estatais e a iniciativa privada em busca da tão sonhada universalização.
Inclusive, do que se tem notícia, as próprias leis complementares têm sido editadas sem a observância dos requisitos previstos na Lei nº 11.445/07, o que denota ainda mais a ilegalidade da tese. O modelo proposto pela LNSB indica que a criação de sistemas de prestação regionalizada está condicionada à existência de condições materiais que imponham a gestão compartilhada dos serviços, o que ocorre de maneira excepcional, quando existir o compartilhamento de infraestruturas operacionais entre diversos municípios.
De acordo com os incisos XIV e XV do artigo 3º da LSBN, o interesse é local quando as “funções públicas e serviços cujas infraestruturas e instalações operacionais atendam a um único município”. E é comum quando os serviços são prestados por meio de compartilhamento de instalações operacionais por dois ou mais municípios, “… denotando a necessidade de organizá-los, planejá-los, executá-los e operá-los de forma conjunta e integrada pelo Estado e pelos Munícipios que compartilham, no todo ou em parte, as referidas instalações operacionais”.
É por isso que o inciso II do artigo 8º, quando trata da titularidade compartilhada entre estado e municípios, prevê expressamente a necessidade de efetivo compartilhamento de instalações operacionais. O advérbio “efetivamente” realça que o compartilhamento é condição necessária para a adoção do modelo, que não pode ser criado a partir de mera ficção legal. Adotou o legislador um critério objetivo para diferenciar interesse local e interesse comum: se há compartilhamento de instalações operacionais, o interesse é comum; se não há, o interesse é local. Esse critério, inclusive, foi validado pelo STF no julgamento conjunto das ADIs 6.492/DF, 6.536/DF, 6.583/DF e 6.882/DF. Nos termos do voto do ministro Gilmar Mendes:
[…] não há qualquer inconstitucionalidade em se assentar como critério fático objetivo da identificação do interesse comum, como delineado pelos incisos XIV e XV do art. 3º, o compartilhamento de instalações operacionais de infraestrutura de abastecimento de água e/ou de esgotamento sanitário entre 2 (dois) ou mais Municípios.
Isso quer dizer que o efetivo compartilhamento de instalações operacionais é condição de validade da lei complementar que institui a prestação regionalizada. Se não há esse compartilhamento, não há interesse comum e, via de consequência, não há qualquer justificativa legal ou constitucional para a implementação de mecanismos de prestação regionalizada. É isso que se extrai da Lei nº 11.445/07.
Contra isso, o que temos visto nas leis complementares editadas para viabilizar a prestação regionalizada é a divisão de todos os municípios do estado em duas ou três microrregiões. No estado de Goiás, por exemplo, a Lei Complementar nº 182/23 separou todos os municípios em três microrregiões. Ora, quer dizer que o Estado como um todo representa uma exceção à titularidade municipal para a prestação dos serviços de saneamento; em nenhum dos municípios o interesse é local? Todos eles compartilham estruturas operacionais, a justificar a aglutinação de quase 250 municípios em apenas três microrregiões — duas delas com espantosos 88 municípios? A resposta é evidentemente negativa.
Com todo o respeito, a presunção de que haja interesse comum a aglutinar a gestão em microrregiões hipertrofiadas é prova de que não há qualquer elemento comum, de fato, que justifique a medida. Na prática, o que os estados estão fazendo é utilizar seu capital político para deturpar a figura da prestação regionalizada, atropelando e ignorando o requisito de efetivo compartilhamento de infraestruturas. E, para além de ilegal, isso vai contra tudo o que se buscou implementar com a edição no novo Marco Legal do Saneamento.
Em resumo, rechaçamos a possibilidade de contratação direta das empresas estaduais de saneamento nas hipóteses de prestação regionalizada: seja porque nesses casos o estado não é o titular dos serviços, seja porque as leis complementares têm sido editadas sem a observância dos requisitos previstos na Lei nº 11.445/07.
[1] Confira a matéria em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2023/12/06/estatais-usam-brecha-para-regularizar-contrato.ghtml
[2] Já tratamos na nova lógica concorrencial e mercadológica do setor de saneamento em outro artigo. Ver aqui: https://www.conjur.com.br/2022-out-25/opiniao-logica-concorrencial-setor-saneamento/