ECONOMIA
À cata de dinheiro, Haddad faz cruzada contra herança de Dilma e Mantega
A cruzada que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, lançou contra a chamada desoneração da folha trata-se, a rigor, do combate a um legado “maldito” de seu próprio partido, o PT.
O benefício concedido atualmente a empresas de 17 setores foi criado em 2011 por obra da então presidente Dilma Rousseff (PT) e de seu ministro da Fazenda, Guido Mantega.
A luta de Haddad para acabar com o incentivo fiscal herdado de Dilma e Mantega contrasta com o esforço do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para reabilitar os dois correligionários. Lula conseguiu emplacar Dilma no comando do New Development Bank, o Banco dos Brics, e teria recentemente tentado alçar Mantega à presidência da Vale, mineradora privatizada há quase três décadas.
A justificativa para a desoneração da folha, quando foi criada, era que a redução da carga tributária empresarial estimularia novas contratações, diminuindo as taxas de desemprego e de informalidade no mercado de trabalho.
Assim, por meio de medida provisória (MP), posteriormente convertida em lei, foi concedida a permissão para que algumas empresas pagassem alíquotas de 1,5% a 2,5% sobre a receita bruta em vez de 20% sobre a folha salarial como contribuição previdenciária patronal.
Após sofrer modificações e ser prorrogada diversas vezes, a desoneração da folha tinha previsão de acabar no dia 31 de dezembro de 2023. Contra a vontade de Haddad, o senador Efraim Filho (União–PB) propôs, por meio do Projeto de Lei (PL) 332/2023, estender a duração do benefício por mais quatro anos, até o fim de 2027.
O benefício contempla hoje 17 setores que estão entre os que mais empregam no país:
- confecção e vestuário;
- calçados;
- construção civil;
- call center;
- comunicação;
- empresas de construção e obras de infraestrutura;
- couro;
- fabricação de veículos e carroçarias;
- máquinas e equipamentos;
- proteína animal;
- têxtil;
- tecnologia da informação (TI);
- tecnologia de comunicação (TIC);
- projeto de circuitos integrados;
- transporte metroferroviário de passageiros;
- transporte rodoviário coletivo; e
- transporte rodoviário de cargas.
No Senado, o senador Ângelo Coronel (PSD-BA) ainda acrescentou um artigo que reduz de 20% para 8% a contribuição previdenciária da folha de pagamentos de municípios com população inferior a 142,6 mil habitantes. O governo tentou negociar, mas não conseguiu impedir a aprovação do PL por deputados e senadores, selada no dia 25 de outubro.
Contrariado, o ministro aconselhou Lula a vetar integralmente o texto, sob a justificativa de contrariedade ao interesse público e inconstitucionalidade, uma vez que a proposição criaria renúncia de receita sem apresentar demonstrativo de impacto financeiro para os anos seguintes.
O endosso do presidente à recomendação de Haddad ajudaria na batalha do ministro por elevar a arrecadação da União e buscar a meta de zerar o déficit fiscal em 2024. A desoneração da folha levou a uma renúncia fiscal quase R$ 9,4 bilhões no ano passado, segundo dados oficiais da Receita Federal. Com a extensão do benefício para cerca de 3 mil prefeituras, o impacto dobraria neste ano.
Após a publicação do veto presidencial em diário oficial, em 24 de novembro, o titular da Fazenda veio a público defender a decisão e disse que apresentaria aos parlamentares uma medida alternativa, que não afetasse demais as empresas, mas garantisse um aumento de receita ao governo.
Na ocasião, ele questionou o argumento de empresas e sindicatos que diziam que o veto levaria ao aumento do desemprego nas áreas beneficiadas. “Falavam em contratações quando foi feita a desoneração, o que também não houve”, disse, rebatendo a tese de Mantega e Dilma à época do início da desoneração.
No dia 14 de dezembro, no entanto, o veto de Lula foi derrubado por deputados e senadores. O presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), defendeu a decisão. “[A desoneração] é uma política que garante alta empregabilidade. Estamos num cenário de combate ao desemprego. Na minha opinião, considero apropriada a prorrogação da desoneração”, disse.
Mas Haddad não se deu por vencido. Em meio ao recesso parlamentar, no dia 28 de dezembro, o governo publicou a MP 1.202/2023, que estabelece uma reoneração gradativa dos setores que contam com o desconto tributário, em uma atitude vista pela oposição como um desrespeito à decisão do Legislativo.
Em janeiro, após discutir o assunto com Haddad, Pacheco deu declaração dando a entender que o governo abriria mão da reoneração. “A desoneração da folha, tendo sido uma lei aprovada pelo Congresso, e com um veto derrubado, ela valerá. Há um compromisso do governo federal de reeditar a MP [medida provisória], retirando a desoneração do texto”, afirmou o presidente do Senado durante o Brazil Economic Forum, em Zurique, na Suíça.
Porém, na semana passada, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o ministro da Fazenda negou ter desistido da reoneração e disse que voltará a se reunir com Pacheco e com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), para defender a medida.
“Eu sei que [a reoneração] está afetando setores sensíveis, que têm poder muito grande de fazer valer a sua opinião. Mas não vamos nos deixar levar por esse tipo de sentimento”, afirmou o ministro. Na entrevista, ele voltou a alegar que a renúncia tributária não se reverteu em aumento de contratações, como defendem hoje representantes dos setores beneficiados tanto do lado das empresas quanto dos trabalhadores.
“De cada dez economistas, pelo menos nove concordam que esses jabutis, esses privilégios, precisam ser revistos, até porque a maioria não rendeu aquilo que prometia quando foi inaugurada”, declarou.
No dia 18, em consonância com as declarações de Haddad, o Ministério da Fazenda publicou um relatório em que classifica a desoneração de cara e ineficiente. O texto afirma que a política é “inconstitucional, complexa, pouco transparente, e sem efetividade comprovada”, e traz declarações de economistas que apontam problemas no incentivo fiscal.
Em 2011, Mantega chegou a defender fim da contribuição patronal sobre a folha
Então ministro da Fazenda, Guido Mantega chegou a defender em 2011 a possibilidade de até mesmo zerar a contribuição patronal para a Previdência sobre os salários. À época, discutia-se a desoneração integral em até três anos. “Dependendo do caso, a redução desse custo trabalhista incentiva a formalização de mão de obra ou a contratação de mais empregados com carteira assinada”, dizia.
O fim da cota patronal não veio, mas, por meio da Medida Provisória (MP) 540/2011, convertida na Lei 12.546/2011, a contribuição, que era de 20% sobre a folha para todos os setores, passou a ser de 1,5% sobre a receita bruta para setores como de calçados, vestuário e couro. Para as empresas de tecnologia da informação (TI) e de tecnologia da informação e comunicação (TIC), o porcentual passou a ser de 2,5%.
Parte do chamado Plano Brasil Maior, que ainda concedeu isenção tributária a produtos e estabeleceu regimes fiscais diferenciados, a desoneração da folha foi, na sequência, ampliada de modo a contemplar cada vez mais empresas. Já no ano seguinte, por meio da MP 563/2012, foram incluídos os setores hoteleiros, moveleiro, de autopeças, naval e aéreo, além de empresas de call center e de projetos de circuitos integrados.
Em 2014, quando Dilma disputaria a reeleição, o total de setores beneficiados já estava em 56. No ano seguinte, o sucessor de Mantega na Fazenda, Joaquim Levy, propôs a redução do desconto, elevando as alíquotas das empresas contempladas. Ele classificou o benefício concedido até então como uma “brincadeira” que “se mostrou extremamente cara”.
Os argumentos de Levy eram semelhantes aos usados hoje por Haddad. “Essa brincadeira [desoneração da folha] nos custa R$ 25 bilhões por ano, e vários estudos nos mostram que isso não tem protegido o emprego. Tem que saber ajustar quando não está dando resultado”, afirmou Levy, na ocasião. “Não deu os resultados que se imaginava e se mostrou extremamente caro. A gente não está eliminando, está reduzindo [o benefício]”, acrescentou.
Na época, o PT já revia sua opinião em relação à desoneração. Na votação da proposta de Levy, o então líder do partido no Senado, Humberto Costa (PE), reconheceu o esgotamento das políticas petistas anticíclicas, motivo pelo qual dizia ser necessário um “ajuste”.
“Esse é o momento em que temos que ter a contribuição das empresas para esse processo de ajuste. Os trabalhadores já deram a sua cota. Agora é a hora de os empresários darem a sua contribuição”, argumentou.
Assim como Lula, Bolsonaro vetou prorrogação do benefício, mas teve veto derrubado
Em 2017, o governo de Michel Temer (MDB) defendeu o fim da política de desoneração da folha, mas, diante da resistência de empresários, propôs ao Congresso a limitação do benefício para apenas três setores. No Congresso, no entanto, os parlamentares modificaram o projeto do Executivo, assinado pelo então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, de modo a fixar em 28 os ramos de atividade econômica contemplados.
Na sanção do texto, o então presidente vetou a manutenção de 11 deles, consolidando a atual lista de 17 segmentos beneficiados, que teriam desconto na contribuição previdenciária até dezembro de 2020.
Depois, no governo de Jair Bolsonaro (PL), com Paulo Guedes no comando do Ministério da Economia, o benefício foi prorrogado duas vezes. Em 2020, o Congresso estendeu o prazo até o fim de 2021. Assim como ocorreria no governo Lula, a medida foi vetada pelo então presidente, mas o veto foi derrubado por deputados e senadores.
No ano seguinte, cedendo a pressões dos empresários, Guedes concordou em renovar a desoneração por mais dois anos, estabelecendo o prazo até 31 de dezembro de 2023, agora prorrogado por mais quatro anos.