ENTRETENIMENTO
Sérgio Macaco, o capitão que evitou atentado da ditadura
Morto há 30 anos, militar negou-se a cumprir ordens para executar a operação em 1968 que deixaria pelo menos 10 mil mortos no Rio de Janeiro, entre eles o cardeal d. Helder Câmara e o ex-presidente JK.
“Não, não concordo. E, enquanto eu estiver vivo, isso não acontece.” Estas foram as frases ditas pelo capitão-paraquedista Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, conhecido como Sérgio Macaco, seu superior, o brigadeiro João Paulo Burnier em 12 de junho de 1968. Na mesa de Burnier estava um plano ousado que deixaria pelo menos 10 mil mortos no Rio – e a culpa seria atribuída “aos comunistas”.
Conforme denunciou o capitão – e inquéritos posteriores confirmaram –, o brigadeiro queria que o avião paraquedista de resgate Para-Sar organizasse uma série de atentados. Carvalho comandava esse grupo.
Burnier previa explosão de bombas em alvos específicos como lojas, agências bancárias e a sede da embaixada americana e tinha uma lista de 40 personalidades de oposição que deveriam ser sequestradas e lançadas, de avião, no meio do oceano – entre os nomes, o cardeal d . Helder Câmara , o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda.
Por fim, o plano ainda incluía a explosão do hoje desativado Gasômetro do Rio – na época, fornecedor de gás para a cidade – e da represa de Ribeirão das Lajes. E isso seria feito na hora do rush, o que causaria a morte de pelo menos 10 mil pessoas – algumas estimativas calculam dez vezes mais.
Mesmo com todas as investigações realizadas posteriormente, que incluíram depoimentos de 37 testemunhas, entre cabos e sargentos da tripulação de paraquedistas, Burnier sempre negou que tivesse planejado esses atentados. Pela insubordinação, Carvalho foi preso por 25 dias e respondeu a processos na Força Aérea Brasileira (FAB), no Serviço Nacional de Informações (SNI) e tanto na Justiça civil quanto na militar. Foi absolvido em todos os julgamentos.
Na época, Carvalho foi transferido para Recife e, no ano seguinte, com a promulgação do Ato Institucional nº 5 , foi compulsoriamente reformado.
“Sérgio Macaco foi um herói. Um militar que teve a coragem de, durante a ditadura, denunciar um plano da extrema direita militar do Brasil de praticar atentados […]. Ele desarmou um plano diabólico e pagou as consequências”, diz o jornalista Lucas Figueiredo, autor do livro Ministério do Silêncio , onde também aborda esse caso.
O jornalista afirma que não classifica a insubordinação de Carvalho “como um ato de desobediência, porque nenhum servidor público, civil ou militar, é obrigado a praticar crimes no exercício de sua função”.
“Embora subordinado a poderes superiores, ele agiu em respeito à vida humana e a uma frágil Constituição [de 1967]. Houve um princípio ético no qual o militar optou por uma decisão correta”, avalia o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor da Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Modo de operação
Figueiredo acrescenta que a ideia de praticar atentados e atribuí-los a “radicais comunistas” era parte do modus operandi de parte da cúpula da ditadura militar brasileira . “Isso vai acontecer muito na década de 1970, com explosões em banca de jornal e coisas assim”, comenta.
O episódio mais famoso foi o atentado ao Riocentro , em 1981, quando um grupo do Exército planejou uma série de explosões em um centro de convenções do Rio, onde ocorria um evento em homenagem ao Dia do Trabalhador. Nesse caso, a condução desastrada da operação acabou sendo o que salvou o público de uma grave tragédia.
“A ditadura civil-militar atuava através de uma legalidade autoritária que consistia em ‘combater’ um inimigo interno baseado na doutrina da segurança nacional”, explica o cientista político e jurista Manoel Moraes, professor da Universidade Católica de Pernambuco. “Dessa forma, várias atividades dos órgãos de repressão política eram clandestinas. A opinião pública era manipulada pelas ‘informações’ difundidas pelo sistema de censura que consistia em criar e alimentar a ideia de que os grupos que se organizavam para resistir à ditadura eram ‘terroristas’ , e que seus atos foram atentados à segurança interna.”
Moraes lembra que as comissões da verdade compilaram “vários relatos de manipulação de dados e informações”, revelando que havia um padrão de “manipulações graves para encobrir os crimes praticados por agentes públicos” durante o regime militar.
Era uma narrativa que vinha sendo construída. A de que, pontua Moraes, “o país estava crescendo economicamente, em segurança, e combatendo os ‘extremistas’, ‘comunistas’ que ameaçavam a propriedade, a família e os valores religiosos do país”.
Ramirez lembra que episódios de violência pública são historicamente usados como estratégia para legitimar quem está no poder – ou desqualificar algum grupo eleito democraticamente. Ele cita o uso político feito pelos nazistas do incêndio do Reichstag , na sede do Parlamento alemão, em 1933, e até mesmo a tentativa de golpe praticada por apoiadores do já ex-presidente Jair Bolsonaro em 8 de janeiro de 2023 , em Brasília.
“Governos que queiram tomar as decisões do poder fechando a sociedade e suas liberdades buscam estardalhaços. Sempre que se crie o caos, concentre-se poder de alguma forma, já que a sociedade passa a ter apelo por um poder político mais autoritário”, analisa .
Promovido depois de morto
Carioca de Vila Isabel, Carvalho entrou para a FAB aos 18 anos. Quando se tornou herói, tinha uma carreira sólida e reputada: integrou o grupo que criou o Para-Sar, unidade de elite especializada em resgate e salvamento, e tinha um currículo com cerca de 900 saltos, 6 mil horas de voo e quatro medalhas por bravura.
No fim dos anos 80 e início dos 90, enveredou pela política e chegou a assumir, como suplente, o mandato de deputado federal pelo PDT.
Ele se aceitou a pedir o benefício da Lei da Anistia , de 1979, porque acreditava que não poderia ser perdoado por um crime que não cometera. Até o fim da vida, insistia que queria ser reintegrado à FAB.
O caso foi levado ao Supremo Tribunal Federal e somente em 1992 houve vitória no processo. A Justiça determinou ainda que ele fosse promovido a brigadeiro, alegando que seria a patente que ele alcançaria se tivesse sido permanente na ativa. O comando da Aeronáutica, no entanto, se decidiu a cumprir o determinado, e repassou a situação ao presidente da República, Itamar Franco.
Vítima de câncer no estômago, Carvalho morreu em 5 de fevereiro de 1994. O decreto presidencial que lhe devolveu seus direitos foi assinado por Franco apenas seis dias depois.