Judiciário
Pretextos do STF para inquéritos começam a ser replicados ao nível local
Tribunais locais e forças policiais em diversas regiões do Brasil estão reproduzindo localmente alguns padrões dos controversos inquéritos instaurados de ofício pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sinalizando uma tendência de disseminação para instâncias inferiores do modelo de perseguição judicial que ficou comum na principal corte do país.
Inspirando-se em casos do STF, autoridades locais têm emitido decisões e conduzido operações que citam crimes como “abolição violenta do estado democrático” e “fake news”. Em algumas situações, as condutas investigadas não passam de críticas ou ofensas verbais contra figuras da Justiça, ou autoridades governamentais.
O episódio mais emblemático da tendência ocorreu no dia 7 de fevereiro em Carauari, no interior do Amazonas, onde o juiz Jânio Tutomu Takeda mandou prender o delegado Regis Cornelius Silveira após ser acusado por ele de corrupção. A prisão foi justificada com uma lista de tipos penais que incluía “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” – a mesma que figura atualmente em diversos inquéritos instaurados de ofício pelo STF e que motivou as prisões do 8 de janeiro.
Um vídeo do momento em que os dois entram em conflito verbal foi divulgado por meios locais nas redes sociais. A situação escalou quando o delegado afirmou que o juiz era “um dos maiores elementos de corrupção da cidade” durante uma inspeção judicial na delegacia local. Imediatamente, o juiz deu voz de prisão ao delegado; posteriormente, usou o crime de “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” na justificativa para a detenção. A defesa do delegado recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em 14 de fevereiro, determinou a soltura dele.
O caso de Carauari tem um paralelo óbvio com o incidente envolvendo o ministro Alexandre de Moraes e seu filho no aeroporto de Roma. Recentemente, o inquérito do caso de Moraes foi arquivado pela Polícia Federal por falta de provas. A investigação do STF também apurava o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito após uma suposta ofensa contra o magistrado.
Em São Paulo, no começo de janeiro, manifestantes contrários ao aumento da tarifa de transporte público foram detidos pela Polícia Militar (PM). No boletim de ocorrência, entre acusações como “corrupção de menor” e “associação criminosa”, estava o crime de “abolição violenta do Estado democrático de Direito”. Segundo o portal UOL, os jovens portavam objetos como faca, canivete e martelo, além de gasolina, garrafas, gases e líquidos inflamáveis, o que justificou a alegação da polícia de que havia uma tentativa de abolir o Estado de Direito.
No Mato Grosso, em fevereiro, a “Operação Fake News” da Polícia Civil cumpriu três mandados de busca e apreensão nas casas de jornalistas que criticaram o governador Mauro Mendes (União-MT), sob a acusação de que eles teriam disseminado informações falsas, como já se tornou comum em casos envolvendo jornalistas de direita. A operação foi recentemente criticada pelo Sindicato dos Jornalistas como um ataque à liberdade de imprensa. Entre os alvos estava Alexandre Aprá, já condenado anteriormente por calúnia contra Mendes.
“Exemplo vem de cima”, avalia jurista
A advogada e consultora jurídica Katia Magalhães enxerga o risco de banalização do emprego das justificativas usadas pelo STF em seus inquéritos. “Os vícios observados na cúpula judiciária tendem a se multiplicar nas instâncias inferiores, sobretudo nos rincões mais distantes. Afinal, o exemplo vem de cima”, afirma.
Para ela, a escalada de sanções a “crimes de opinião”, sem respeito ao devido processo legal, tende a disseminar insegurança jurídica. “Observamos essa imprevisibilidade crescente na área criminal, com a perspectiva cada vez mais iminente de sanções penais pela mera tomada de posicionamentos, o que configura o retorno dos chamados ‘crimes de opinião’, ausentes do nosso cenário desde a ditadura militar. Em sentido inverso, o STF, o STJ e outros tribunais têm desconsiderado a legislação penal para determinarem a soltura de criminosos de alta periculosidade, como, por exemplo, narcotraficantes, muitos dos quais detidos em flagrante delito”, comenta.
No caso da acusação de “abolição violenta ao Estado Democrático de Direito”, ela vê uma “interpretação excessivamente ampla do crime”, que tem servido “para justificar a punição de meras falas no contexto de um tipo penal cuja consumação exigiria a tentativa de tomada efetiva dos poderes, por meio de tanques e grupos armados nas ruas”.
Segundo a advogada, a situação tende a se agravar em comarcas menores, onde “a escassez de recursos, a maior desinformação das populações e a menor visibilidade midiática fomentam todo o tipo de desmandos”.
Katia ressalta que os reflexos da conduta recente do STF começarão a ser sentidos também pela esquerda – como já ocorreu, por exemplo, no caso da Operação Fake News no Mato Grosso.
“Quando princípios constitucionais e legais são atropelados por magistrados que deveriam guardá-los, todos podem ser alvo de medidas constritivas, que passam a ser tomadas não mais com base na legislação do país, mas com vistas ao alcance de fins genéricos, como a ‘preservação da democracia’ ou a ‘eliminação de discursos de ódio’. A trajetória recente do STF – e também de instâncias inferiores – no sentido de abandonar os preceitos estritos das leis para pautarem suas decisões por conceitos como esses, que, de tão abstratos, dão margem a qualquer tipo de interpretação, tem sido o maior fator de geração de insegurança jurídica no país”, observa.