Judiciário
Prisão para delatar, além de ilegal, configura crime de abuso de autoridade
A prisão preventiva é medida excepcional e não pode ser ditada por critérios de conveniência e oportunidade lastreados em argumentos retóricos, mas em elementos concretos que demonstrem clara e indubitavelmente a existência das hipóteses legais. A restrição da liberdade em nosso sistema não é regra, mas exceção. Rodrigo Capez, em sua festejada obra Prisão e Medidas Cautelares Diversas, observa que
“no âmbito das medidas cautelares pessoais, diante do rígido balizamento imposto pelos princípios da legalidade, da presunção da inocência, pela necessidade de justificação constitucional da medida e pela regra da proporcionalidade, não cabe ao juiz, em hipótese alguma, formular juízos de oportunidade, assim entendido como uma opção subjetiva entre alternativas igualmente justas ou indiferentes jurídicos, mas sim juízos de legalidade, interpretando textos e fatos… A decretação de uma medida cautelar, desta feita, jamais pode ser fruto da intuição subjetiva incognoscível do juiz ou derivar de seus sentimentos íntimos – ao que, em última instância, se equipara ao princípio da confiança subjetiva no juiz da causa” [1].
Entendimento do STF
Insurgindo-se contra o emprego abusivo de prisões provisórias para forçar delações, o STF já se pronunciou reiteradamente, anulando acordos de colaboração por vício de vontade. No julgamento da Reclamação nº 43.007/DF (relator: ministro Dias Toffoli), a Suprema Corte decidiu que o colaborador deve estar livre de pressões exercidas por meio de prisões ilegais, qualificando as delações assim obtidas como o
“verdadeiro ovo da serpente dos ataques à democracia e ao próprio STF” e “verdadeira tortura psicológica, UM PAU DE ARARA DO SÉCULO XXI”. “DELAÇÕES ESSAS QUE CAEM POR TERRA, DIA APÓS DIA, ALIÁS” (destaque feito no próprio acórdão).
Em outro acórdão, o STF, ao julgar o HC nº 127.483/PR, concluiu:
“Assim, é manifestamente ilegítima, por ausência de justificação constitucional, a adoção de medidas cautelares de natureza pessoal, notadamente a prisão temporária ou preventiva, que tenham por finalidade obter a colaboração ou a confissão do imputado” [2].
Como aduz Rodrigo Capez,
“ainda que, explicitamente, não seja essa a motivação da decisão, caso se constate, inclusive pela forma de atuação extraprocessual do juiz ou dos órgãos da persecução penal, que o verdadeiro objetivo da prisão cautelar é forçar a colaboração do imputado, sua inconstitucionalidade será patente, uma vez que é vedada a utilização da decretação ou da manutenção da prisão cautelar como instrumento de barganha com o imputado, no intuito de coagi-lo a colaborar” [3].
O que dizem a Constituição e o Código de Processo Penal
A prisão preventiva é medida excepcional que vulnera o primado da liberdade. A ausência de fundamentação com base em fatos concretos torna a privação da liberdade uma violação ao sistema jurídico. Nossa Constituição, em diversas passagens, estabelece a proteção da liberdade como direito fundamental, limitando as hipóteses de sua privação.
Assim, é que, no artigo 5º, LIV, assegura que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens, sem o devido processo legal”; no inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”; no LXI, que “ninguém será preso, senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”; no LXV, que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”; no LXVI, que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.
Não existe no processo penal o chamado poder geral de cautela, de modo que as medidas cautelares, principalmente as de prisão só podem ser aquelas expressamente previstas em lei e só podem ser aplicadas rigorosamente dentro de seus limites.
O CPP somente autoriza a prisão preventiva para: (a) garantir a ordem pública, isto é, evitar que o sujeito solto continue a praticar crimes enquanto o processo se desenrola (caso de um assassino perigoso que não pode ficar em liberdade até o processo terminar, já que continuará matando enquanto não for preso); (b) assegurar a higidez da produção da prova, quando, por exemplo, o acusado estiver coagindo testemunhas ou destruindo documentos importantes; (c) impedir a fuga, quando o acusado não tem ocupação lícita, nem residência fixa, nada o radica ao distrito da culpa e há provas de que pretende evadir-se. Essa a disposição expressa do artigo 312, caput, do CPP.
Além de limitada a um desses motivos, a prisão preventiva deve estar lastreada em fatos e motivos contemporâneos à prisão, sendo inadmissível a segregação cautelar com base em fatos ou motivos passados.
“Dessa maneira, somente será legal a decretação da prisão cautelar que disser respeito a fato novo praticado após o cometimento do crime, tal como ocorre quando o acusado ameaça uma testemunha. Também só será legal a prisão cautelar quando o fato que ensejou a prisão e a decretação for contemporâneo… Em verdade, o próprio fundamento do ‘periculum libertatis’ não subsiste se o acusado tiver contra si mandado de prisão preventiva por fato ocorrido anos atrás. A razão autorizadora da quebra do estado de inocência é a necessidade imediata de prisão do imputado por fato supostamente criminoso cometido nos dias presentes, trazendo perigo atual ou iminente ao corpo social (CPP, artigo 312, § 2º, e o art. 315, § 1º)” [4].
A prisão preventiva deve estar amparada em fatos concretos e não em ilações subjetivas. É o que se depreende do artigo 315, § 2º, do CPP:
“A decisão que decretar a prisão preventiva será sempre motivada e fundamentada. Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que limitar-se a indicação, reprodução ou paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou questão decidida; empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; invocar precedentes ou enunciados de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes, nem demonstrar que o caso em julgamento se ajusta àqueles fundamentos; deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento, ou a superação de entendimento.”
Finalmente, ainda que haja motivos contemporâneos, a prisão preventiva não será decretada, quando houver possibilidade de sua substituição por uma das providências cautelares previstas no artigo 319 do CPP, como, por exemplo, monitoração eletrônica por tornozeleira. O artigo 282, § 6º, do CPP, não deixa margem para dúvida:
“A prisão preventiva somente será decretada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada”.
Havendo possibilidade de arbitramento de fiança, afastamento cautelar das funções, proibição de frequentar lugares, apreensão de passaporte, obrigação de manter distância da vítima ou monitoramento, a prisão preventiva será ilegal e desnecessária.
O Poder Judiciário só pode decretar a prisão quando: presentes as hipóteses do artigo 312 do CPP + os fatos forem contemporâneos à sua decretação + e, ainda assim, se nenhuma outra medida cautelar puder substitui-la. Ela é, portanto, providência subsidiária, a ultima ratio e não a primeira.
Prisão preventiva, delação, acordo de colaboração e voluntariedade
Diante do exposto, a única conclusão possível é a de que uma prisão cautelar imposta exclusivamente para forçar a delação não encontra amparo em nossa legislação e afronta princípios constitucionais sensíveis, derivados da dignidade humana.
Uma das evidências de que foi decretada para esse fim ocorre quando a prisão é relaxada coincidentemente logo em seguida à celebração do acordo de colaboração premiada. Sendo ilegal a prisão, nula será a delação, tendo em vista o disposto no artigo 573, § 1º, do CPP, o qual prevê o princípio da consequencialidade: “a nulidade de um ato, uma vez declarada, causará a dos atos que dela diretamente dependam ou sejam consequência”. Nula a prisão preventiva, nula será a delação.
De acordo com o artigo 3-A da Lei nº 12.850/2013, “o acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de produção de prova que pressupõe utilidade e interesse públicos”. Sendo um negócio jurídico está sujeito aos mesmos requisitos de existência, validade e eficácia dos atos jurídicos em geral.
O colaborador não precisa estar preso para desejar o acordo de cooperação, uma vez que a lei preparou uma cesta de benesses para ele no artigo 4, caput e seu § 4º: (a) perdão judicial (extinção da pena, nos termos do artigo 120 do CP); (b) redução da pena em até 2/3; (c) substituição da prisão por pena restritiva de direito (por exemplo, prestação de serviços à comunidade); (d) e até mesmo, o privilégio de não responder a processo, deixando de ser denunciado pelo MP, neste caso desde que não seja o líder da organização, seja o primeiro a colaborar e relate algo que a autoridade não saiba.
Até mesmo o réu já condenado pode se beneficiar da colaboração, obtendo a progressão de regime mesmo sem cumprir o tempo necessário exigido por lei (Lei nº 12.850/13, artigo 4º, § 5º). Há, no entanto, uma exigência insuperável: o acordo tem de ser voluntário.
Caberá ao juiz a homologação do ajuste entre as partes, sendo tal decisão imprescindível para sua eficácia. Para tanto, a lei exige que seja feita uma audiência sigilosa exclusivamente entre o juiz e o interessado, sempre acompanhado de seu defensor. É o que dispõe o artigo 4º, § 7º, IV:
“Realizado o acordo serão remetidos ao juiz para análise o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: IV –a voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob o efeito de medidas cautelares”.
A voluntariedade é um requisito essencial, sem o qual a delação não produzirá nenhum efeito, sendo imprestável juridicamente. A pressão exercida sobre o colaborador o induz a tentar enganar a autoridade.
Nas delações feitas após prisões prolongadas, a tendência é dizer o que autoridade quer ouvir, com sérios prejuízos à verdade real. Além disso, a colaboração não vale nada isoladamente, não é considerada prova e não autoriza a decretação de medidas cautelares como a prisão preventiva, nem o recebimento de denúncia e muito menos condenação criminal (Lei nº 12.850/13, artigo 4º, § 16, I a III).
A delação feita sobre fato do qual o delator não tem conhecimento é peça nula e juridicamente irrelevante. Sem voluntariedade, não existe acordo de cooperação válido. Qualquer manifestação posterior do colaborador, reclamando de pressão e falta de voluntariedade do relato, ainda que seja por desabafo, já serve para inquinar de nulo todo o acordo celebrado.
Convém também observar ser crime de abuso de autoridade, “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais – detenção de 1 a 4 anos, e multa” (Lei nº 13.869/2019, artigo 9º).
A prisão para delatar, além de ilegal, configura crime de abuso de autoridade. O devido processo legal e as garantias constitucionais não existem para obstruir a persecução penal, mas para garantir sua lisura e eficácia, evitando nulidades posteriores que apenas aumentam a descrença da sociedade nas instituições do Estado.
[1] CAPEZ, Rodrigo. Prisão e Medidas Cautelares Diversas. A individualização da medida cautelar no processo penal. São Paulo: Quartier Latin, 2017. p. 249 e 255.
[2] Odone Sanguiné. Prisão cautelar, medidas alternativas e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 248-249. Cristina Guerra Pérez. La decisión judicial de prisión preventiva – análisis jurídico y criminológico. Valência: Tirant lo Blanch, 2010. p.162. Andrey Borges de Mendonça. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Método, 2011. p. 277-280.
[3] CAPEZ, Rodrigo. Prisão e Medidas Cautelares Diversas cit. p. 289.
[4] CAPEZ, Fernando. CURSO DE PROCESSO PENAL. São Paulo: Saraiva. 31ª ed, 2024. P. 197 e 198.