Judiciário
O dilema do TSE nas eleições de 2024
Otimismo manifestado pela corte enfrenta realidade substancialmente mais problemática do que a prevista
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) publicou, no dia 1º de março, as resoluções que orientarão as Eleições Municipais de 2024. Entre as resoluções publicadas, ganha destaque a Resolução TSE 23.732/2024, que, alterando a Resolução TSE 23.610/2019, regulamenta a veiculação de propaganda eleitoral.
Segundo o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, essa Resolução seria uma das regulamentações mais avançadas “do mundo” no combate à desinformação, às fake news e ao uso ilícito da inteligência artificial (IA). A promessa feita pelo ministro é a de prover a Justiça Eleitoral com “instrumentos eficazes para combater o desvirtuamento nas propagandas eleitorais, nos discursos de ódio, fascistas, antidemocráticos e na utilização de IA para colocar na fala de uma pessoa algo que ela não disse”.
No entanto, o otimismo manifestado pelo TSE enfrenta uma realidade substancialmente mais problemática do que a prevista. Se, de um lado, a Resolução do TSE 23.610 representa um passo audacioso rumo à modernização da legislação eleitoral, de outro, ela traz questionamentos complexos sobre os limites do poder regulamentar do TSE e do papel designado aos provedores de aplicação de Internet no combate à desinformação.
Extrapolação do poder regulamentar do TSE?
Por definição, as resoluções do TSE são instrumentos normativos editados para promover a fiel execução da lei, não podendo ultrapassar os limites nela estabelecidos, seja para criar, modificar, seja para extinguir direitos.
No entanto, a nova Resolução parece transgredir essa delimitação fundamental ao criar novas obrigações para as plataformas, como remoção imediata de conteúdo e implementação de sistemas de transparência permanentes, introduzindo, também, uma nova hipótese de responsabilidade solidária não decorrente de lei ou vontade das partes.
Essas medidas, que sequer constavam da minuta pública da Resolução – e que, portanto, não foram discutidas na audiência pública –, representam um ponto de tensão significativo e geram preocupações sobre o potencial atropelo e abuso regulatório do TSE.
Da alteração da sistemática prevista no Marco Civil da Internet e criação de novas obrigações aos provedores
O Marco Civil da Internet estabelece o regime de responsabilidade civil aplicável aos provedores de aplicação de internet, condicionando a sua responsabilização à inércia após recebimento de ordem judicial específica para remoção de conteúdo infrator. Este modelo, denominado “judicial notice and take down”, visa a equilibrar a liberdade de expressão com a proteção de direitos de terceiros na internet.
A nova Resolução, contudo, modifica significativamente essa dinâmica ao introduzir a responsabilidade solidária dos provedores que “não promoverem a indisponibilização imediata” de conteúdos e contas em “casos de risco”. Esses casos, segundo a Resolução, incluem atos antidemocráticos, discurso de ódio, informações inverídicas ou gravemente descontextualizadas, ameaças contra membros da Justiça Eleitoral e conteúdo manipulado por IA.
Além disso, nos termos da nova Resolução, os provedores passarão a ser obrigados a (i) monitorar ininterruptamente os conteúdos compartilhados por seus usuários para impedir a circulação de “fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral”, (ii) veicular e impulsionar conteúdo informativo de forma gratuita e (iii) manter atualizado o repositório de decisões do TSE.
Com efeito, as inovações trazidas pela nova Resolução não apenas ampliam significativamente a responsabilidade dos provedores, como também alteram o papel por eles desempenhado, já que lhes obriga a adotar uma postura ativa na identificação e remoção de conteúdos prejudiciais à dinâmica eleitoral. Com isso, os provedores deixam de ser meros intermediários que hospedam conteúdo de terceiros e passam a desempenhar o papel de “guardiões da veracidade” do material compartilhado em suas plataformas.
Na prática, além de preocupações quanto a um possível abuso regulamentar pelo TSE, a Resolução provoca inquietações multifacetadas. Do ponto de vista jurídico, a exigência de que os provedores avaliem as condutas dos usuários e realizem a remoção imediata de conteúdo cuja ilicitude não é objetivamente aferível – valoração esta que caberia exclusivamente à Justiça Eleitoral – pode gerar receios quanto à remoção excessiva de conteúdo mediante mera notificação de interessados.
Sob a perspectiva técnico-operacional, a implementação de medidas dessa magnitude apresenta desafios consideráveis, demandando dos provedores um investimento significativo em infraestrutura tecnológica para monitorar e remover conteúdo, especialmente diante do prazo exíguo de até 60 dias para implementação estipulado pela Resolução.
Por fim, mas não menos importante, surgem os dilemas éticos. Afinal, o combate às fake news é uma luta exclusiva dos provedores? Serão essas medidas capazes de reduzir verdadeiramente o impacto da desinformação e promover um ambiente informativo mais íntegro e saudável?
A resposta, diferentemente do que antecipa o TSE, parece ser negativa. A desinformação, um fenômeno multifacetado impulsionado por uma variedade de fatores – desde dinâmicas sociais complexas até avanços tecnológicos rápidos –, desafia as soluções simplistas propostas pela nova Resolução. A desinformação se espalha em tamanha velocidade que a solução encontrada pelo TSE, desacompanhada do envolvimento de outras camadas da sociedade e de uma agenda regulatória efetiva, que preveja medidas de curto a longo prazo, não pode conter.
Fato é que, embora a modernização da lei eleitoral para enfrentar os desafios digitais contemporâneos seja válida e necessária, as modificações devem respeitar os princípios constitucionais e democráticos, assegurando que o combate à desinformação não desvirtue o papel e a natureza dos provedores de aplicação de internet e comprometa a liberdade de expressão e a própria função social da internet.