Internacional
Imigrantes dormem na rua em meio à crise na Irlanda
Na capital Dublin, autoridades frequentemente desmontam acampamentos erguidos por estrangeiros. Situação é agravada por crise habitacional e lei anti-imigração no Reino Unido que aumentou fluxo de refugiados ao país
O centro de Dublin brilha com obras arquitetônicas que abrigam escritórios de corporações globais. Mas sob as fachadas de vidro desses prédios há cada vez mais barracas.
Algumas delas são de sem-teto. Os preços de aluguel na pujante Dublin são simplesmente inacessíveis para muitos, e há uma crise habitacional em toda a Irlanda, assunto que domina o país atualmente. Quando assumiu o governo, em abril, o primeiro-ministro Simon Harris prometeu entregar 250 mil novas casas até o final da década.
O segundo grupo de acampados são imigrantes, o segundo tema mais quente na república irlandesa depois da crise habitacional. Mais e mais deles chegam a cada dia ao país, uma ilha no noroeste da Europa cuja capacidade de alojá-los chegou ao limite.
A escassez de moradia foi agravada pela invasão russa da Ucrânia. Desde o início da guerra, 100 mil refugiados ucranianos se registraram na Irlanda. E como a Irlanda faz parte da União Europeia, eles foram acolhidos automaticamente.
O governo da Irlanda admite abertamente que não é capaz de abrigar todos os requerentes de asilo enquanto eles aguardam o trâmite de seus processos. Segundo o governo, até 17 de maio, 1.856 homens nesta situação estavam sem moradia.
“Cidade de barracas”
Uma “cidade de barracas” ao redor do Escritório de Proteção Internacional em Dublin, órgão responsável pelo processamento de pedidos de asilo, foi desfeita pelas autoridades irlandesas em 1º de maio. Ali dormiam homens jovens que lavavam e cozinhavam na rua, e que carregavam seus celulares em estações de aluguel de bicicletas. Seus 285 ocupantes foram encaminhados a dois abrigos de emergência. Desde então, novos acampamentos têm repetidamente voltado, apenas para serem repetidamente desmanchados.
“A Irlanda está cheia”
Há meses, manifestantes na historicamente acolhedora Irlanda gritam que “a Irlanda está cheia”. No final de 2023, houve tumulto em Dublin. Em várias partes do país, houve até mesmo incêndios criminosos em edifícios que seriam transformados em abrigos para refugiados. Segundo uma pesquisa recente encomendada pelo jornal Irish Times, 63% da população apoia uma política de imigração mais rigorosa.
Em 2023, a Irlanda registrou cerca de 12,3 mil pedidos de asilo. Desde então, os números dispararam; chegariam a mais de 20 mil em 2024, segundo um político de oposição citado pelo Irish Times. Considerando a população de 5 milhões da Irlanda, isso quer dizer que, proporcionalmente falando, o país teria um nível de migração semelhante ao da Alemanha.
Lei anti-imigração no Reino Unido leva imigrantes à Irlanda
Segundo autoridades irlandesas, o aumento nos pedidos de asilo nas últimas semanas também se deve a uma lei aprovada no Reino Unido que permite a deportação para Ruanda de imigrantes que chegam ao território de forma irregular, para que busquem asilo no país africano. Com isso, o governo britânico espera pôr fim a esse tipo de migração.
Mesmo depois de uma decisão desfavorável da Suprema Corte, o governo conservador, liderado pelo primeiro-ministro Rishi Sunak, manobrou e seguiu adiante com a lei. Ele também ameaça ignorar qualquer eventual decisão semelhante do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
Em 13 de maio, um tribunal superior da Irlanda do Norte suspendeu a aplicação da Lei de Ruanda em seu território por considerá-la uma violação do Acordo de Windsor, que regula as relações entre Reino Unido e União Europeia pós-Brexit.
“Como parte do acordo do Brexit, a lei da UE que protege os requerentes de asilo é mantida no espaço da Irlanda do Norte, em consonância com toda a legislação de direitos humanos da UE, que continua válida para a Irlanda do Norte se estiver relacionada ao acordo [de Belfast] de 1998”, explica à DW Colin Murray, professor de direito na Universidade de Newcastle.
O Acordo de Belfast pôs fim a décadas de conflito violento na Irlanda do Norte entre setores leais ao governo em Londres e republicanos irlandeses. Ele prevê, entre outras coisas, uma fronteira aberta entre a Irlanda do Norte – que é parte do Reino Unido e, portanto, está fora da UE – e a vizinha República da Irlanda – que é independente e, por isso, continua na UE.
Antes do Brexit, essa preocupação não existia: pessoas e mercadorias circulavam num espaço legal e econômico unificado. Como a volta de uma fronteira tangível pós-Brexit arriscaria a paz na Irlanda do Norte, o Reino Unido aceitou que certas regras da UE continuassem a valer na Irlanda do Norte.
A decisão que suspendeu a Lei de Ruanda na Irlanda do Norte não a invalida no restante do Reino Unido – isto é, na Grã-Bretanha, formada por Inglaterra, País de Gales e Escócia. Mas o professor Murray ressalta que isso torna as coisas mais difíceis para o governo britânico. “Por exemplo: historicamente o governo teria distribuído requerentes de asilo por acomodações em todo o Reino Unido. Agora, se eles entrarem no espaço da Irlanda do Norte, eles têm essas proteções adicionais.”
Antes desse julgamento, muitos imigrantes já tentavam cruzar do Norte para a República da Irlanda para escapar da deportação para Ruanda. Segundo a ministra da Justiça da Irlanda, Helen McEntee, é assim que atualmente 80% de todos os requerentes de asilo estão entrando no país, o equivalente a mais de 6 mil pessoas desde o início do ano. O gabinete dela avalia maneiras de devolver esses imigrantes à Grã-Bretanha.
O premiê irlandês lembrou seu colega britânico, Rishi Sunak, de um acordo assinado em 2020, pelo qual o Reino Unido se compromete a receber de volta imigrantes que entraram na República da Irlanda vindos do Norte. Sunak, por sua vez, alega que o acordo regulava apenas questões processuais e não continha obrigações legais.
Para Sunak, que deve perder o cargo nas próximas eleições daqui a alguns meses, outros países da UE, como a França, é que têm que receber esses imigrantes de volta.