Internacional
Sede de seita alemã no Chile a caminho de virar memorial
Presidente Gabriel Boric ordena desapropriação de parte da Colonia Dignidad, assentamento que serviu de centro de detenção e tortura durante a ditadura de Augusto Pinochet
Era um anúncio há muito esperado pelas vítimas, organizações e investigadores, mas mesmo assim não foi menos surpreendente quando o presidente do Chile, Gabriel Boric, anunciou no início deste mês que havia ordenado a expropriação de parte da antiga Colonia Dignidad, agora conhecida como Villa Baviera.
A carta do ministro da Justiça do Chile, Luis Cordero, ao Ministério da Habitação solicita a desapropriação de seis edifícios: a casa do antigo líder Paul Schäfer, o restaurante (Zippelhaus), o prédio da administração e o hotel, o armazém de batatas (Kartoffelkeller), o hospital e a portaria.
Essa medida retoma a proposta apresentada em 2021 pelo grupo de especialistas chilenos e alemães para a criação de um local memorial e um centro de documentação, encomendado pela Comissão Mista Chile-Alemanha, e se baseia no trabalho realizado em reuniões e workshops com os diversos grupos de vítimas em ambos os países.
Concretizando a colaboração com a Alemanha
Em entrevista à DW, Tomás Pascual, diretor de direitos humanos do Ministério das Relações Exteriores do Chile e membro da comissão, enfatizou que a decisão de expropriar “responde a uma definição presidencial, à necessidade de avançar e à ênfase que esta administração deu à preservação da memória histórica”.
Na Alemanha, a reação foi positiva. “O Ministério Federal das Relações Exteriores saúda o anúncio do presidente chileno Boric de desapropriar partes da Villa Baviera para estabelecer um memorial e um centro de documentação no local”, disse um porta-voz do ministério à DW. “Durante sua visita a Santiago do Chile no final de janeiro de 2023, o chanceler Scholz prometeu o apoio da Alemanha a um memorial e centro de documentação como parceiro do governo chileno”, destaca.
Passo decisivo rumo ao memorial
Fundada em 1961 pelo pregador leigo Paul Schäfer, a Colonia Dignidad foi um assentamento alemão no sul do Chile onde, durante décadas, foram cometidos crimes como trabalho escravo, medicação forçada, tortura e abuso sexual. Durante a ditadura, o local foi usado para detenção, execução e desaparecimento de prisioneiros políticos.
Schäfer foi preso e morreu na prisão em 2010. Alguns moradores foram embora, mas um grupo permanece, dedicado ao turismo, à gastronomia e à agricultura. Em um comunicado, a administração de Villa Baviera disse à DW que respeita a lei chilena. “As ações de desapropriação não interferem em nossas atividades econômicas”, acrescenta o texto.
No entanto, eles terão que fechar o hotel e o restaurante. Esses edifícios estão localizados em uma propriedade de 182 hectares, protegida como monumento nacional desde 2016. O consórcio de empresas possui mais de seis mil hectares, dedicados à agricultura e à silvicultura.
“É um fato extremamente relevante e ocorre após oito anos de trabalho na comissão mista, onde não houve muito progresso até agora. Isso dá esperança de que o tão esperado local memorial seja implementado”, disse à DW Jan Stehle, do Centro de Pesquisa e Documentação Chile-América Latina (FDCL), em Berlim.
Contribuição para a justiça e a reparação
Em nota, a Associação pela Verdade, Justiça, Reparação e Dignidade dos ex-colonos (Adec) saúda a medida, que considera “um ato simbólico de reparação imaterial e moral, e um reconhecimento de todas as vítimas da antiga Colonia Dignidad”.
“Tem que ser um lugar de luto para aqueles que perderam seus parentes, um lugar de reconhecimento para os diferentes grupos de vítimas que sofreram ali e, por outro lado, tem uma importante função educacional de contar o que aconteceu ali, por respeito às vítimas e para que isso não aconteça novamente”, diz Stehle.
Evelyn Hevia, pesquisadora da Universidade Livre de Berlim, que trabalhou com o grupo binacional de especialistas, diz à DW que a desapropriação responde a uma demanda das vítimas e dos afetados. “Nós nos aproximamos, conseguimos dialogar, confrontar posições que eram muito polarizadas no início, ouvir histórias que são dolorosas, de passados não resolvidos, e medidas concretas precisavam ser tomadas”, ressalta.
A psicóloga e historiadora enfatiza que a transformação em um local de memória permitirá mais pesquisas e documentação da história. “Isso ajuda no caminho da reparação simbólica e é uma forma de restituição do bom nome das vítimas”, acrescenta.
Desafios no processo
“É um passo muito importante, uma grande oportunidade e, ao mesmo tempo, ainda há muitas definições a serem feitas”, disse à DW Elke Gryglewski, diretora da Fundação Memorial da Baixa Saxônia e do local do memorial no antigo campo de concentração de Bergen-Belsen, e membro do grupo de especialistas que elaborou a proposta do local do memorial.
Entre outras coisas, para determinar o destino de cerca de 110 moradores. Trata-se de um grupo heterogêneo, um terço do qual é formado por jovens e crianças que se identificam como chilenos e cresceram tentando entender o horror vivido no local.
A ADEC afirma que a administração da Villa Baviera lucrou ilegitimamente com o patrimônio criado com o trabalho escravo de todos e espera que a indenização pela expropriação “vá diretamente para o benefício das vítimas e não para a atual hierarquia da antiga Colonia Dignidad”, que, em sua opinião, tem resistido aos esforços do Estado para promover a justiça e a memória.
“É importante continuar o diálogo. A criação de um local de memória também ajuda na criação de uma comunidade democrática. Isso pode ajudar no momento em que os pagamentos são feitos, para definir para onde esse dinheiro vai e o que ajuda a comunidade”, diz Gryglewski.
As propriedades fazem parte de uma holding. Cerca de 80% das ações são de propriedade de colonos e ex-colonos, com uma concentração maior dos que estão em posições mais altas na hierarquia. O restante é de propriedade de acionistas externos que compraram nos últimos anos.
Um longo caminho
A transformação em um local memorial pode levar muito tempo, e não está descartada a possibilidade de a administração recorrer à Justiça, o que poderia atrasar o processo. “A experiência positiva de diálogo com grupos de vítimas e pessoas afetadas nos últimos anos deve ser aproveitada para que, com a participação de todos, uma solução rápida possa ser encontrada”, diz Stehle.
Entre outras tarefas, será necessário inventariar documentos, objetos, equipamentos e maquinário de valor museológico, bem como verificar os edifícios que se deterioraram com o tempo. “Isso pode ser demorado e burocrático. Deve andar de mãos dadas com a comunicação, a aproximação e o diálogo com todas as pessoas afetadas e com aqueles que conhecem o assunto em profundidade”, diz Hevia.
A pesquisadora reconhece que “não será fácil, esses processos não estão livres de conflitos”, mas é otimista. “Honrar as vítimas, dar um espaço para a memória e a verdade histórica é uma dívida com a sociedade como um todo. E o processo de desapropriação inevitavelmente também nos levará a investigar e esclarecer a situação patrimonial.”
O próximo passo é criar uma entidade que reunirá diferentes órgãos públicos e da sociedade civil, incluindo a Alemanha, diz Pascual. A esse respeito, Stehle considera que o apoio da Alemanha será fundamental. “O país deve estar totalmente ao lado do Estado chileno como um Estado que compartilha a responsabilidade pelos crimes e para implementar conjuntamente esse local de memória”, afirma.