Judiciário
Uso de maconha descriminalizado: punição pode aumentar
No último dia 20 de junho, houve maioria no Supremo Tribunal Federal (STF) para considerar que as sanções pelo uso da maconha — previstas no artigo 28 da Lei de Drogas (Lei nº. 11.343/2006) — tenham caráter administrativo e não penal: uma superação que até então considerava a conduta como crime.
Inicialmente, os ministros Gilmar Mendes (relator), Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber se manifestaram pela necessidade de interpretação conforme à Constituição do dispositivo para chegar a essa conclusão, além de estabelecer distinções objetivas entre a caracterização de tráfico e uso, com divergências entre eles. Até então, somente Cristiano Zanin e André Mendonça eram contrários à tese de declaração conforme, por entenderem o caráter penal da norma.
Semana passada, Toffoli votou para que não houvesse interpretação conforme a Constituição do dispositivo, porque a Lei de 2006 já teria realizado a descriminalização do uso de qualquer droga, inclusive da maconha. Assim, porque já seriam de caráter administrativo desde a promulgação do artigo 28, não haveria necessidade — e seria inadequada — uma decisão nesse sentido, devendo tão somente ser ressaltada essa natureza nos fundamentos do acórdão e ser reafirmado o descabimento de qualquer efeito penal na aplicação da norma.
A tese foi entendida como inovadora pelos outros ministros, na sessão de julgamento, pelos impactos em relação a outras drogas ilícitas, além de implicar em questões como qual seria o órgão competente para aplicar as sanções pelo uso de drogas. Nesse último aspecto, Toffoli afirmou que, apesar de administrativas, o Juízo criminal seria competente, o que agradou os outros ministros. Apesar das distinções, foi ao encontro dos primeiros ministros citados para o reconhecimento da natureza jurídica.
Ocorre que outra problemática surge da caracterização da norma do artigo 28 da Lei de Drogas enquanto administrativa: o deslocamento da repartição de competências federativas.
O direito sancionatório, no Brasil, não possui somente caráter penal, sendo composto também de sanções civis — como as de improbidade — e as administrativas [1]. Porém, o ente federativo competente para estabelecer as sanções, que só poderiam ser previstas por lei [2], dependeria duplamente da natureza e da matéria. Quanto às civis e penais, sempre seriam da União (artigo 22, I, da CR/88), exceto quando houvesse uma lei complementar federal com delegação de matérias específicas para os Estados-membros e Distrito Federal (artigo 22, parágrafo único, da CR/88).
Porém, no caso de sanções administrativas, a competência legislativa se dá em razão da matéria/conteúdo da legislação. No caso do uso de drogas ilícitas, todos os ministros afirmaram que a questão seria de saúde pública e, assim, haveria a competência legislativa concorrente sobre o tema (artigos 24, XII, e 30, I e II, da CR/88). Ainda, nessa matéria o STF reconhece que os estados e os municípios possuem competência para legislar com normas mais restritivas — mais protetivas à saúde, como definido na ADPF 567:
3. A jurisprudência desta CORTE admite, em matéria de proteção da saúde e do meio ambiente, que os Estados e Municípios editem normas mais protetivas, com fundamento em suas peculiaridades regionais e na preponderância de seu interesse.
(ADPF 567, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 01- 03-2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-059 DIVULG 26-03-2021 PUBLIC 29-03- 2021)
Assim, o deslocamento da competência faria com que as normas previstas no artigo 28 da Lei de Drogas fossem consideradas normas gerais de direito administrativo sancionador, a serem suplementadas pelos entes subnacionais (artigo 24, § 2º, e 30, II, da CR/88). Com isso, haveria autorização para que novas formas de punição fossem previstas por leis estaduais e municipais, bem como novos procedimentos de aplicação dessas sanções.
Sanções administrativas
No caso das sanções administrativas, em razão do poder de polícia e de sua autoexecutoriedade, a regra é que elas sejam aplicadas pelo próprio administrador, com presunção de legitimidade dos fatos abordados pelo agente público e sem participação do Judiciário. Muitas vezes, o contraditório é diferido nesses processos, bem como a tramitação não possui um conjunto probatório amplo, já que há a possibilidade de questionamento posterior perante o Judiciário (artigo 5º, XXXV, da CR/88).
No uso de drogas ilícitas, seria permitido que cada ente estabelecesse novas sanções, com novas hipóteses do que seria o uso de drogas para consumo pessoal, porque esse sancionamento seria política de saúde pública. É importante perceber que, apesar de não atingir diretamente a liberdade de locomoção, o direito administrador sancionador possui grandes possibilidades de restrição de outras liberdades. Como exemplo, cita-se o rol dos 12 incisos do artigo 56 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor:
Art. 56. As infrações das normas de defesa do consumidor ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções administrativas, sem prejuízo das de natureza civil, penal e das definidas em normas específicas:
I – multa;
II – apreensão do produto;
III – inutilização do produto;
IV – cassação do registro do produto junto ao órgão competente;
V – proibição de fabricação do produto;
VI – suspensão de fornecimento de produtos ou serviço;
VII – suspensão temporária de atividade;
VIII – revogação de concessão ou permissão de uso;
IX – cassação de licença do estabelecimento ou de atividade;
X – interdição, total ou parcial, de estabelecimento, de obra ou de atividade;
XI – intervenção administrativa;
XII – imposição de contrapropaganda.
Parágrafo único. As sanções previstas neste artigo serão aplicadas pela autoridade administrativa, no âmbito de sua atribuição, podendo ser aplicadas cumulativamente, inclusive por medida cautelar, antecedente ou incidente de procedimento administrativo.
Além das sanções, os procedimentos para aplicá-las também seriam definidos localmente. Assim, instituições que não teriam vocação primária na repressão de ilícitos ou que o teriam não para a efetivação do artigo 28 da Lei de Drogas, poderiam adquiri-la pelas leis municipais e estaduais. Isso se daria no mesmo contexto da atual militarização das guardas municipais em todo o Brasil.
Diante disso, novas legislações locais que reprimem o uso de drogas ilícitas têm surgido no Brasil. Essa não é uma discussão sem sentido ou uma hipótese que não possui repercussão imediata, um problema futuro que não necessariamente surgiria.
Onde há leis municipais
Como exemplo, há a Lei Municipal nº. 4.859, de 31 de janeiro de 2024, de Balneário Camboriú, que “dispõe sobre as sanções administrativas aplicadas pelo município às pessoas que forem flagradas em áreas e logradouros públicos fazendo uso de drogas ilícitas em desacordo com determinação legal ou regulamentar, e dá outras providências”. Nela, há aplicação de multas para aqueles que utilizarem de drogas, com penalidades em dobro quando, conforme artigo 3º, parágrafo único:
[…] tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais, transportes, nas praias e praças.
Já na Câmara Municipal de Vitória foi apresentado o Projeto de Lei nº. 6/2024 que, em vez de prever uma multa específica, remete às sanções previstas no Código de Posturas do Município (artigo 3º do projeto). Essa lei, por sua vez, prevê as seguintes penalidades administrativas:
Artigo 180 As sanções previstas nesta Lei efetivar-se-ão por meio de:
I – Multa pecuniária;
II – Suspensão da licença;
III – Cassação da licença;
IV – Interdição do estabelecimento, atividade ou equipamento;
V – Apreensão de bens;
§ 1º São competentes para aplicação das sanções previstas neste artigo os servidores ocupantes de cargos com função e atribuições de fiscalização.
§ 2º A aplicação de uma das penalidades previstas nesta Lei não exonera o infrator da aplicação das demais penalidades que sejam apropriadas para cada caso, além das cominações cíveis e penais cabíveis.
Ainda no caso de Vitória, no novo Estatuto da Guarda Municipal está previsto, em seu artigo 5º, XII, que ela pode atuar na fiscalização das posturas e ordenamentos urbanos. Como a redação do Projeto de Lei 6/2024 faz remissão ao Código de Posturas, corre-se o risco concreto do uso da guarda municipal para repressão de usuários de drogas.
Diante disso, percebe-se que esse debate sobre as consequências no sistema constitucional de repartição de competências necessita de maior aprofundamento. No entanto, ele não deve ser realizado de forma tecnicista, ou a partir dos gabinetes dos magistrados. Ele deve ser guiado a partir do compromisso ético da pesquisa e da prática jurídicas para a efetivação dos direitos e garantias fundamentais, alinhado a perspectivas transdisciplinar e intercultural que exigem diálogo em conjunto com outras áreas do conhecimento e outros saberes não científicos, além da democracia deliberativa com a construção coletiva de soluções, sendo consideradas as posições dos afetados pelas políticas.
A constitucionalidade dessas leis (e projetos) locais será questionada, e, diante de todo esse contexto, devemos também nos questionar as capacidades institucionais na tomada de decisões jurídico-políticas, além de suas consequências.
Os fundamentos jurídicos das decisões, no romance em cadeia constitucional, implicam na interpretação de futuras leis e de sua constitucionalidade. Cabe aos cidadãos, juristas e não juristas, refletirmos quando e como esse romance em cadeia deve ser construído, bem como reconhecer o momento de superação de narrativas hegemônicas para a preservação dos direitos fundamentais.
[1] PINTO, Marcos Vinícius. Improbidade administrativa como expressão do ius puniendi e as garantias do acusado. In: PINTO, Marcos Vinícius. Ação de improbidade administrativa: presunção de inocência e ne bis in idem. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022. p. 23-95.
[2] COLNAGO, Cláudio de Oliveira Santos; PEDRA, Adriano Sant’Ana. Los deberes de los proveedores de servicios de internet en el medio ambiente digital: el caso del derecho de réplica en el Brasil. Estudios Constitucionales, Talca, a. 14, n. 2, p. 347-364, 2016. Disponível em: http://www.estudiosconstitucionales.cl/index.php/econstitucionales/article/view/331/287. Acesso em: 8 set. 2021.
Fonte: Conjur