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Judiciário

Admissibilidade e mérito em denúncias por quebra de decoro parlamentar

Os vereadores são protegidos pela inviolabilidade de suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato, conforme dispõe o artigo 29, inciso VIII da Constituição. Essa matéria teve repercussão geral reconhecida e mérito julgado pelo Supremo Tribunal Federal nos seguintes termos:

“(…) nos limites da circunscrição do Município e havendo pertinência com o exercício do mandato, os vereadores são imunes judicialmente por suas palavras, opiniões e votos.” (RE 600.063, redator do acórdão min. Roberto Barroso, j. 25-2-2015, P, DJE de 15-5-2015, Tema 469)

O ministro Gilmar Mendes [1] esclarece que a inviolabilidade não é concebida como um privilégio pessoal do indivíduo que ocupa um cargo eletivo, mas como um meio de assegurar o livre exercício do mandato e evitar ameaças ao regular funcionamento do Legislativo.

Ela protege os parlamentares de represálias judiciais, prevenindo que a ameaça de processos cíveis e penais crie um “efeito resfriador” sobre seus discursos (“chilling effect“), prejudicando o debate público no âmbito legislativo. A Constituição busca, assim, proteger a própria democracia.

No recinto do Parlamento, a imunidade do vereador assume contornos absolutos, de modo que a manifestação proferida não é passível de responsabilização civil ou penal. O STF [2] possui entendimento consolidado nesse sentido. Em seu voto no Inquérito 3.814/2014, a ministra Rosa Weber afirmou que “quando a ofensa é irrogada no recinto da Casa Legislativa, esta Suprema Corte tem entendido ser absoluta a inviolabilidade”.

Inviolabilidade e decoro

No entanto, isso não significa que o mandatário popular seja totalmente isento de responsabilidade, uma vez que está sujeito à censura política [3] de seus pares e pode ser responsabilizado por eventuais excessos pela Casa Legislativa que o abriga. O decoro parlamentar funciona, portanto, como um limitador da inviolabilidade.

Enquanto a inviolabilidade visa proteger a democracia e o exercício do mandato, o decoro visa proteger a imagem do Parlamento. É a Câmara Municipal que tem o direito a que se preserve, através do comportamento digno de seus membros, sua reputação e dignidade.

Segundo Miguel Reale[4], o termo “decoro”, de origem latina, refere-se à conveniência no comportamento, tanto em relação ao próprio indivíduo quanto em relação aos outros. O decoro implica correção, respeito e dignidade, de acordo com o status do cargo. A falta de decoro, conforme entendimento do jurista, pode envolver comportamento indecente, imoral, embriaguez e outros atos que desmereçam a instituição legislativa.

Ao definir o que corresponderia a atos atentatórios ao decoro parlamentar, Manoel Gonçalves Ferreira Filho [5] enquadra “a conduta que fira os padrões elevados da moralidade, necessários ao prestígio do mandato, à dignidade do Parlamento”.

Como se vê, embora seja um conceito indeterminado e interpretativo, exige-se do parlamentar uma “conduta moral” no exercício do mandato, a qual, se violada, pode levar à perda antecipada do encargo representativo.

Rito de cassação

No âmbito municipal, o processo de cassação do mandato de vereador segue o rito estabelecido pelo Decreto-Lei nº 201/67. O Supremo já assentou que referido normativo foi recepcionado pelo ordenamento constitucional vigente, conforme enunciado da Súmula 496 (RE 799.944 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, 1ª T, DJe de 12/2/2015).

Eis o teor da Súmula do STF:

“Súmula 496: São válidos, porque salvaguardados pelas Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1967, os decretos-leis expedidos entre 24 de janeiro e 15 de março de 1967.”

Nos termos do Decreto-Lei nº 201/1967, é possível instaurar Comissão Processante para apurar falta de decoro parlamentar observando-se as regras contidas no § 5º do mesmo instrumento normativo:

“Art. 7º A Câmara poderá cassar o mandato de Vereador, quando:
I – Utilizar-se do mandato para a prática de atos de corrupção ou de improbidade administrativa;
I – Fixar residência fora do Município;
III – Proceder de modo incompatível com a dignidade da Câmara ou faltar com o decoro em sua conduta pública;
§1º. O processo de cassação de mandato de Vereador é, no que couber, o estabelecido no art. 5º deste decreto-lei.”

Admissibilidade da denúncia

O inciso I do artigo 5º do Decreto-Lei nº 201/1967, por seu turno, fixa que a denúncia da infração pode ser feita por qualquer eleitor, devendo ser escrita, com a exposição dos fatos e a indicação das provas correspondentes.

O primeiro passo na análise de admissibilidade de uma denúncia é verificar se o denunciante é eleitor e se a acusação contém provas que indiquem que o vereador procedeu de modo incompatível com a dignidade da Câmara ou faltou com o decoro em sua conduta pública. Embora não se exija do denunciante o mesmo rigor técnico-jurídico que se aplica a uma ação judicial, a ausência de provas ou de indícios mínimos inviabiliza o prosseguimento da denúncia.

Ao analisar uma denúncia contra vereador por infração ao decoro parlamentar é necessário realizar um prévio e ponderado juízo quanto à sua admissibilidade, sob pena de o processo se tornar um pretexto para revogar mandatos legitimamente conferidos pelo povo.

Competência

Feitas essas considerações, passo a examinar o cerne da questão abordada neste artigo: a quem compete avaliar a admissibilidade e o mérito das denúncias por quebra de decoro parlamentar?

O inciso II do artigo 5º do Decreto-Lei nº 201/67 estabelece que:

“Art. 5º. O processo de cassação do mandato do Prefeito pela Câmara, por infrações definidas no artigo anterior, obedecerá ao seguinte rito, se outro não for estabelecido pela legislação do Estado respectivo:
II – De posse da denúncia, o Presidente da Câmara, na primeira sessão, determinará sua leitura e consultará a Câmara sobre o seu recebimento. Decidido o recebimento, pelo voto da maioria dos presentes, na mesma sessão será constituída a Comissão Processante, composta por três Vereadores sorteados entre os desimpedidos, os quais elegerão, desde logo, o Presidente e o Relator.”

A leitura desse dispositivo revela que, uma vez protocolada a denúncia, cabe ao presidente da Câmara determinar sua leitura e submeter o recebimento ao Plenário. Como salientado por Tito Costa [6], o juízo de admissibilidade do recebimento, ou não, da denúncia, é de natureza político-administrativa.

O presidente não tem discricionariedade sobre a apreciação da denúncia; ele é obrigado a levar o assunto ao Plenário e suscitar o voto dos vereadores sobre o seu acolhimento, mesmo que a considere inepta. Caso contrário, a vontade da lei poderia ser frustrada, ao impedir a deliberação dos demais membros da Casa Legislativa.

Tanto a admissibilidade da denúncia quanto o julgamento final sobre a cassação do mandato por infração político-administrativa são de competência do Plenário da Câmara Municipal. No primeiro momento, o recebimento da denúncia é decidido por maioria simples; na etapa final, o quórum é qualificado, exigindo-se dois terços dos votos favoráveis, conforme determina o artigo 5º do Decreto-Lei nº 201/67.

Intervenção do Judiciário

No entanto, em algumas situações, o Judiciário tem avaliado a existência de justa causa para a instauração de processos de cassação. Nesse sentido, destaca-se o seguinte precedente:

“Trata-se de agravo interposto contra decisão que negou seguimento a recurso extraordinário referente à cassação de mandato de vereador por alegada quebra de decoro parlamentar. O STF, ao analisar o caso, reconheceu a inexistência de justa causa para a instauração do processo de cassação, evidenciando a violação dos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e legalidade. […] A justa causa é condição de procedibilidade do processo de cassação e está sujeita ao controle de legalidade realizado pelo Poder Judiciário.” (ARE 1.364.825/SP, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgado em 9/2/2022).

Ao adentrar no mérito, porém, o Poder Judiciário invade o princípio da separação entre os poderes, pedra angular do Estado democrático de Direito.

Os delitos de ordem ética relacionados ao decoro parlamentar devem estar isentos de intervenção direta do Poder Judiciário, pois são julgados politicamente pelos parlamentares, configurando questões interna corporis. Conforme define Hely Lopes Meirelles [7]:

Interna corporis são aquelas questões ou assuntos que dizem respeito direta e exclusivamente à economia interna da corporação legislativa, às suas prerrogativas constitucionais ou à faculdade de valorar a matéria de sua competência privativa. Incluem atos como a composição da Mesa, a apreciação da conduta dos membros e o julgamento das infrações político-administrativas do Prefeito, a formação da lei e a manifestação sobre o veto.”

Recentemente a Corte Suprema ao julgar o RE 1.297.884 (Tema 1120 de Repercussão Geral) definiu a tese de que não cabe ao Poder Judiciário controlar o alcance das normas regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis:

“Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis.” (decisão com trânsito em julgado em 19.9.2023)

Nesse sentido foi o entendimento da ministra Rosa Weber nos autos do STP 949 MC-Ref/PB, conforme excerto a seguir transcrito:

“Suspensão de Tutela Provisória. Cautelar deferida. Conversão do referendo em julgamento final. Legitimidade ativa ad causam da Câmara Municipal de Uiraúna/PB. Defesa de prerrogativas institucionais. Imunidade parlamentar material. Irresponsabilidade civil e criminal. Independência de esferas. Possibilidade de instauração de procedimento administrativo-político por quebra de decoro parlamentar. Inadmissibilidade de o Poder Judiciário intervir em procedimentos internos do Poder Legislativo, salvo em hipóteses de transgressão direta à Constituição da República. Inviabilidade de, pela via jurisdicional, analisar o mérito do procedimento administrativo-parlamentar. Flagrante ilegitimidade da decisão impugnada, a evidenciar violação da ordem pública.” […]. (STP 949 MC-Ref, relator(a): ROSA WEBER (presidente), Tribunal Pleno, julgado em 03-07-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 24-07-2023  PUBLIC 25-07-2023)

José Nilo de Castro [8] esclarece que:

É subtraído ao Judiciário invadir o campo próprio dos atos interna corporis, valorando função política que a ordem jurídica conferiu ao Legislativo, com exclusividade, indo ao mérito da cassação, revisando-a por esse motivo. O Judiciário não pode substituir o julgamento político-administrativo da Câmara pelo seu. A teoria dos motivos determinantes se impõe aqui, no particular, pela qual todo ato, quando tiver sua prática motivada, fica vinculado ao motivo exposto. Daí não se busca no Judiciário saber se foi justa, injusta, inconveniente ou severa a deliberação da Câmara, se esta deveria perdoar ou não o acusado, pois esse juízo é de mérito, e a Justiça não pode substituir a deliberação da Câmara Municipal por um pronunciamento de mérito do Judiciário”.

Atribuição exclusiva do Plenário

A doutrina e jurisprudência destacam a importância de respeitar o espaço de atuação do Poder Legislativo no sistema institucional brasileiro. Como o decoro parlamentar está diretamente ligado à imagem institucional do Parlamento, cabe exclusivamente ao Poder Legislativo, no exercício de sua função censória, definir quais condutas comprometem sua honra objetiva e quais são consideradas aceitáveis ou toleráveis.

Esse juízo, em cada caso concreto, é uma atribuição exclusiva do Plenário da Casa Legislativa. Não é função do Poder Judiciário substituir o Parlamento na avaliação e preservação de sua própria imagem, nem impor padrões morais ou éticos.

Ao impedir a instauração ou o prosseguimento de processos de cassação, ocorre uma grave lesão à ordem pública, comprometendo o regular exercício das funções legislativas na apuração de infrações político-administrativas. Além disso, ao assim proceder, o Judiciário cria um círculo de imunidade absoluta incompatível com a Constituição, que não admite o exercício de direitos e prerrogativas de forma abusiva e irresponsável.

Nos casos de judicialização da política, o Judiciário deve atuar com ainda maior deferência às decisões adotadas pelos poderes legitimamente eleitos pelo povo. Seguindo as lições de Thomas Cooley [9], é essencial que os juízes adotem uma postura de autocontenção, visto que o Poder Judiciário não é superior em hierarquia, dignidade ou relevância em relação aos demais poderes da República. Portanto, o respeito ao espaço deliberativo de cada Poder e às escolhas políticas legítimas é fundamental para preservar o equilíbrio das instituições democráticas.


[1] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet (2021). Curso de direito constitucional. 16. ed., São Paulo: Saraiva, 2021. p. 1069.

[2] Pet 6156, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJ de 28/9/2016; Inq 1958/AC, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, Rel. p/ o acórdão Min. CARLOS BRITTO, Plenário, DJ de 18/2/2006; RE 576.074 AgR, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe de 25/5/2011.

[3] Pet 6587/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 18/8/2017; Pet 6156, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJ de 28/9/2016; Pet 5647/DF, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe de 26/11/2015.

[4] REALE, Miguel. Decoro parlamentar e cassação de mandato eletivo. Revista de Direito Público, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 10, out./dez. 1969, p. 88-89.

[5] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 330.

[6] COSTA, Tito. Responsabilidade de Prefeitos e Vereadores. 4ª edição revista, atualizada e ampliada – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

[7] MEIRELLES, Hely Lopes (2008). Direito Municipal Brasileiro. 16ª edição. São Paulo: Malheiros, editores, p. 636.

[8] Direito Municipal Positivo. 6ª Edição Revista e Atualizada. Belo Horizonte: Del 2006, p. 480-481

[9] COOLEY, Thomas M. A Treatise on the Constitutional Limitations which rest upon the Legislative Power of the States of the American Union. 2. ed. Boston: Little, Brown, and Company, 1871. p. 159-160

  • Jéssica Vishnevsky Cosimoé graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-Campinas, especialista em Direito Constitucional pela PUC-Campinas, pós-graduanda em Direito Legislativo pelo IDP e procuradora jurídica da Câmara Municipal de Nova Odessa.
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