Internacional
Como menores de idade viram “sabotadores” na Rússia
Desde o início da guerra na Ucrânia, crescem os atos incendiários contra instalações militares perpetrados por jovens, em parte atraídos por promessas de dinheiro. Também se suspeita do serviço secreto como recrutador
Na Rússia acumulam-se os atos de sabotagem envolvendo menores de idade, sobretudo ataques incendiários contra instalações ferroviárias e militares. As autoridades afirmam que “curadores pró-ucranianos” teriam encomendado esses atos através das redes sociais, e agora ameaçam os jovens usando vídeos de propaganda.
Está ainda em trâmite um projeto de lei prevendo penas por “sabotagem” já a partir dos 14 anos de idade. Ativistas de direitos humanos desaconselham atos de provocação contra as forças de segurança russas.
A DW investigou diversos processos contra menores e fez contato com um canal da plataforma Telegram no qual se oferecem recompensas em dinheiro por atentados incendiários contra instalações militares.
A isca: um código QR no banheiro da escola
No vídeo filmado por agentes de segurança russos e divulgado no Telegram, um miniônibus freia num pátio dos fundos na cidade de Omsk. Dele saltam seis homens armados de uma tropa especial, que vão correndo até uma casa, derrubam a porta. Lá se encontram dois rapazes, que eles jogam chão e interrogam.
Ambos confessam ter incendiado um helicóptero militar, atendendo a uma promessa de recompensa feita pelo Telegram de 20 mil dólares pelo ato. Eles não receberam a quantia, agora respondem a um processo por terrorismo e terão que ficar pelo menos dois meses em prisão preventiva.
Segundo as autoridades russas, em 21 de setembro um helicóptero de combate Mi-8 foi incendiado com um coquetel Molotov numa base militar de Omsk. No mesmo mês, outro veículo desse tipo fora destruído pelo fogo no aeroporto de Noiabrsk, no distrito autônomo de Yamalo-Nenets.
Dois jovens foram presos ainda no local, tendo sofrido queimaduras no rosto e mãos ao cometer o atentado incendiário. Também eles admitiram ter recebido a encomenda através do Telegram, atendendo ao código QR que constava de um panfleto encontrado no banheiro de sua escola. A imprensa relata sobre panfletos semelhantes em diversas regiões russas, entre as quais Volgogrado, Voronezh e Ryazan.
“Bot para alunos que precisam de dinheiro”
Simulando tratar-se de um aluno de uma escola de São Petersburgo, a reportagem russa da DW fez contato com um desses canais do Telegram. O chat começou com a saudação automática “Bot para alunos que precisam de dinheiro”. As remunerações variam de acordo com o alvo do atentado incendiário: 10 mil dólares por avião, 5 mil dólares por helicóptero, 4 mil dólares para fiações elétricas e 3 mil dólares por um transformador.
O interlocutor perguntou imediatamente de onde o estudante vinha e que “objetos” se encontravam em suas proximidades. Pela destruição de equipamentos militares, comprovada por vídeo, ofereceu transferir até 150 mil dólares de uma carteira de criptomoedas para qualquer conta bancária.
Em seguida foram dadas instruções detalhadas sobre como destruir um alvo com um frasco de gás, sob a afirmativa de que até então apenas 10% das encomendas haviam fracassado. Em caso de detenção pela polícia, não ia haver “uma pena de verdade”, prometeu o desconhecido.
Ao fim do chat, a reportagem se apresentou pelo nome e exigiu um posicionamento. O interlocutor apenas escreveu que trabalhava para “uma certa organização” com representantes baseados em diversos países. A meta era destruir o máximo possível de equipamento militar passível de uso contra a população civil da Ucrânia. “Por que menores de idade?” “Porque só podem ser responsabilizados minimamente”, explicou o desconhecido.
Recrutar crianças: uma tática de luta desleal
É praticamente impossível identificar os administradores de tais canais do Telegram, que manipulariam menores de idade evocando uma “luta contra os invasores russos”, afirma o perito em segurança Michael Klimarev, diretor da ONG Internet Protection Society. “Eles incitam a juventude a fazer coisas a que eles próprios não se arriscariam, e assim arruínam suas vidas. Não é nenhum sinal de coragem atrelar crianças a uma guerra desse jeito.”
Sob condição de anonimato, um técnico da iniciativa russa de direitos humanos NetFreedomsProject rebate que seria possível identificar os indivíduos e suas locações com a ajuda da liderança do Telegram: “Só assim se poderá descobrir quem está por trás desses chats, se se encontram no estrangeiro ou se são agitadores na Rússia.”
O Corpo de Voluntários Russo, composto por cidadãos do país que lutam do lado da Ucrânia, exibe em seu canal do Telegram diversos vídeos de atos de sabotagem contra a ferrovia russa. Segundo um interlocutor da DW próximo à organização, que prefere permanecer anônimo, internamente é controvertida a participação de menores e amadores em atos de sabotagem.
“Um profissional é bem-preparado e sabe em que está se metendo”, porém recrutar menores é um método barato, e incêndios permitem alcançar suas metas rapidamente. Entretanto, ele não descarta que os canais do Telegram sejam organizados pelo próprio serviço secreto da Rússia, a fim de fabricar processos contra jovens “sonhadores”.
O projeto de direitos humanos Avtozak Live registra que na Rússia mais de 550 cidadãos respondem judicialmente por atos de sabotagem e incêndios contra postos de recrutamento do Exército. Por sua vez, o grupo OVD-Info estima que pelo menos 28 teriam sido condenados à prisão por sabotagem desde o início da guerra na Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022. A lei prevê penas de 10 a 12 anos para supostos autores que tenham completado 16 anos.
“Rússia não elimina a causa: sua guerra na Ucrânia”
Contra suspeitos mais jovens, atualmente ainda se aplica o artigo legal “terrorismo”, explica Aleksandr Verkhovsky, diretor do Centro de Informação e Análise (Sova). Em 2024 foram condenados em São Petersburgo dois garotos de 14 anos a dois e quatro anos de prisão, respectivamente, por atear fogo a caixa de eletricidade.
Não há estatísticas sobre tais casos, já que as atas não são acessíveis publicamente, critica o ativista russo. No momento a Duma (câmara baixa da Assembleia Federal da Rússia) estuda um projeto de lei baixando para 14 anos a menoridade penal.
Evgeny Smirnov, advogado da sociedade de ativistas de direitos humanos Perviy Otdel, destaca se possível que se acrescente a acusação de alta traição ou de participação numa organização terrorista, caso os investigadores concluam que a sabotagem foi por encomenda de uma organização proibida no país, como a legião Liberdade da Rússia. Isso implicaria penas de prisão ainda mais severas.
O jurista comenta que as autoridades endurecem as penas e baixam o limite etário, mas não fazem nada contra o próprio motivo para os atos de sabotagem, que é a guerra contra a Ucrânia. Assim, “até o fim do conflito, não conto com nenhum retrocesso das ações penais”.