Judiciário
Seis por um, cada um por si e lei para todos
O mérito mais exuberante da proposta de emenda constitucional da deputada federal Erika Hilton, que prevê alteração da jornada de seis dias de trabalho para um de descanso, popularizada pela expressão 6×1 (seis por um), já está materializado: suscitou o tema, levantou a controvérsia, dividiu os “hermeneutas do Tik Tok e os ”exegetas do Instagram”, deslocando ao assunto — matéria tipicamente trabalhista — um locus até então inexistente: o das redes sociais.
A própria parlamentar autora do projeto, com elogiável sinceridade, reconheceu, em declaração à imprensa, que um dos objetivos da proposta era exatamente provocar o enfrentamento do tema, cujo texto vale reproduzir:
“Art. 1º O inciso XIII do art. 7° passam a vigorar com a seguinte redação:
Art.7°……………………………………………
XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e trinta e seis horas semanais, com jornada de trabalho de quatro dias por semana, facultada a compensação de horários e a redução de jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; ”
Nesse momento surgem os “especialistas”, diversos críticos ferozes, em tema que para quem se ocupa do universo das relações de trabalho, não revela propriamente uma novidade.
De outra banda, os entusiastas da mudança, pela necessidade de nos colocar na vanguarda entre os países que caminharam para a redução de jornada, sob o argumento de que reduzida, teria ela como condão o aumento da produtividade e incremento da saúde mental dos trabalhadores. Faz sentido.
Foi o projeto apedrejado, porquanto seu conteúdo estaria também em dissonância com a boa aritmética, já que previa jornada regular de oito horas diárias para quatro dias de trabalho o que resultaria 32 horas semanais e não as 36 semanais previstas no texto.
O cálculo parece persuasivo em princípio, mas, em seu desabono, não se verificou, quando da promulgação da Constituição de 1988, nenhum movimento contrário ao artigo sétimo até hoje vigente, que prevê da jornada de oito horas diárias e 44 semanais, as quais não resultariam por qualquer esforço aritmético, nem da multiplicação de oito por cinco, tampouco dos mesmos oito por seis.
Como visto, a perturbação não resiste à leitura serena de um texto que evidentemente pode (e até deve) comportar mudanças, mas não deve ser visto — como se tem visto, ouvido e lido — como “retrocesso” ou um “perigo para o mercado” ou mesmo “ameaça à competitividade do Brasil” no plano comercial.
Os arautos do caos podem ficar serenos. A uma, porque ainda que aprovado nos moldes nos quais se acha, o projeto seria objetado por vigorosa judicialização. A duas, tímidas seriam as mudanças efetivas, já que estamos tratando de matéria amplamente coberta pela esmagadora maioria das convenções e acordos coletivos de trabalho.
O projeto reverte também a mirada sobre o tema de jornada de trabalho em relação à última iniciativa legislativa trabalhista de maior impacto no Brasil, já que ao invés daquilo que se ouviu por ocasião das discussões que precederam a dita reforma trabalhista em 2017, sobre redução de salário com redução de jornada, hoje discutimos algo diverso: a da redução de jornada sem redução de salário.
Do ‘seis por um’ ao ‘cinco por dois’
A condição de observador dos últimos 40 anos de alterações na legislação do trabalho permitiu-me lembrar que modificação nenhuma dessa natureza fica sem chumbo e reação violenta. Isso é claramente perceptível nesses primeiros três ou quatro dias após a divulgação da proposta, em que o assunto foi discutido publicamente, em especial nas indefectíveis postagens de redes sociais, sede-mor dos “tudólogos”, especialistas em tudo.
Jornada de trabalho no âmbito dos contratos é tema relevante, que não deveria acolher frivolidades como apostas. Entretanto, fosse-me dada a faculdade, assentaria todas minhas fichas na ausência de alteração significativa da matéria em futuro breve. A abolição do “seis por um” pelo “quatro por três”, poderá resultar em “cinco por dois” após dúzias de negociações, “consertos” e “concertos”.
De qualquer modo, já cumpriu outro papel relevantíssimo: o de expor, a nu, fato que merece toda a atenção do Parlamento brasileiro: a proposta de emenda constitucional acaba por se revelar em relação a milhões de trabalhadores um verdadeiro luxo, já que somente tem jornada de trabalho a reduzir quem a ela está submetido, por um contrato que tem como pressuposto a existência de um emprego com carteira assinada. Milhões ainda aspiram a essa condição. O tempo será o senhor da razão. E de todas as jornadas, as de trabalho e de reivindicações tanto por trabalho quanto por menos trabalho.
J. Fernando Moro é advogado, professor, master em Diálogo Social na Europa pela Universidade Castilla-la-Mancha (Espanha), titular da Cadeira 19 da Academia Paulista de Direito do Trabalho e sócio de Moro e Scalamandré Advocacia.
J. Fernando Moro é advogado, professor, master em Diálogo Social na Europa pela Universidade Castilla-la-Mancha (Espanha), titular da Cadeira 19 da Academia Paulista de Direito do Trabalho e sócio de Moro e Scalamandré Advocacia.