Internacional
Por que o Sudeste Asiático é dominado por líderes militares?
Quase metade dos países da região é governada por ex-generais ou regimes militares, uma tendência preocupante para a democracia e os direitos humanos, apontam especialistas
No mês passado, o Vietnã, governado por um regime comunista, nomeou Luong Cuong, general militar e ex-diretor do departamento político do Exército Popular, como seu novo presidente.
Pouco tempo depois, Prabowo Subianto, ex-comandante dispensado das Forças Armadas em 1998 devido a alegações de abusos militares, tomou posse como presidente da Indonésia, a nação muçulmana mais populosa do mundo.
A composição do governo de Prabowo foi descrita como o “gabinete mais militarizado” da Indonésia desde a queda da ditadura de Suharto em 1998, de acordo com um relatório da New Mandala, um portal focado em assuntos do Sudeste Asiático hospedado pela Universidade Nacional da Austrália (ANU, da sigla em inglês).
Grande parte de Mianmar está sob o controle de uma junta militar desde um golpe em 2021.
O longevo líder do Camboja, Hun Sen, entregou o poder no ano passado ao filho mais velho, Hun Manet, um ex-chefe militar. Os militares da Tailândia, que controlaram o país entre 2014 e o ano passado, continuam a exercer uma influência significativa na política.
Liderança civil em declínio
Apenas Brunei, Malásia e Singapura mantiveram consistentemente o controle civil sobre suas Forças Armadas, observam analistas.
Brunei é uma monarquia absolutista, enquanto os partidos políticos dominantes da Malásia e de Singapura têm historicamente deixado de lado a interferência militar.
As Filipinas viveram uma intervenção militar na política em 1986, quando militares ajudaram a derrubar o ditador Ferdinand Marcos em uma revolução popular. Desde então, no entanto, as Forças Armadas do país estão sob controle civil, com o presidente como seu comandante-chefe.
A ascensão de lideranças militarizadas na região reflete tendências globais mais amplas, de acordo com Joshua Kurlantzick, membro sênior do Conselho de Relações Exteriores para o Sudeste Asiático.
“Os militares, que antes eram considerados quase extintos como governantes, com algumas pequenas exceções como a Tailândia, ressurgiram e assumiram a governança em uma ampla gama de lugares, mesmo fora do Sudeste Asiático”, disse Kurlantzick à DW.
Os recentes golpes militares na região do Sahel, no norte da África, e a influência militar renovada no Paquistão e no Egito fazem parte dessa mudança global.
Explicando a militarização
Paul Chambers, professor e consultor de assuntos internacionais da Universidade Naresuan da Tailândia, afirma que a militarização do Sudeste Asiático vem escalando desde 2014 e coincide com uma mudança da região em direção ao autoritarismo.
“A aparência de uma militarização repentina em 2024 é um engano porque o poder dos militares na política sempre existiu – embora às vezes nas sombras”, disse Chambers.
As crescentes preocupações com segurança, principalmente no Mar do Sul da China, também podem ter ampliado a influência das Forças Armadas.
A crescente assertividade da China na região aumentou as tensões, dando aos militares maior influência sobre a formulação de políticas em países como Vietnã e Indonésia.
Entretanto, as Filipinas, na vanguarda das disputas com Pequim, resistiram à militarização da política.
Aumento dos orçamentos militares
Os gastos militares no Sudeste Asiático mais que dobraram entre 2000 e 2021, passando de 19,2 bilhões de euros para 41 bilhões de euros (R$ 117,7 bilhões para R$ 251,3 bilhões), de acordo com o banco de dados de gastos militares do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo.
No entanto, os países da região que mais gastam com defesa em relação ao PIB – incluindo Singapura, Brunei e Malásia – são principalmente aqueles em que os militares não exercem poder sobre os políticos civis.
Analistas atribuem isso à política interna. Chambers diz que há “diferentes graus de militarização” na região, às vezes devido “à capacidade dos generais da ativa ou aposentados de conquistar cargos de liderança no partido”.
Na Tailândia, a poderosa monarquia “há décadas endossa golpes militares, fazendo com que o país esteja sempre à beira da democratização, mas ainda perdido na tutela militar”, segundo Chambers.
Os militares de Mianmar, em comparação, governaram quase ininterruptamente de 1962 a 2015 antes de tomar o poder novamente em 2021 para proteger seus próprios interesses arraigados.
O Partido do Povo Cambojano (CPP), governista, exerce enorme influência sobre os militares, que se tornaram uma “ferramenta de poder violento” para a família dominante Hun, afirmou Chambers num ensaio publicado em 2020.
O Partido Comunista do Vietnã tem sido cada vez mais dividido entre diferentes agências de segurança. Dois terços dos 18 membros do Politburo, o órgão de tomada de decisões mais poderoso do partido, agora vêm da polícia ou do Exército, informou recentemente o canal de notícias Channel News Asia.
Militares exercem influência econômica
Le Hong Hiep, membro sênior do Programa de Estudos sobre o Vietnã do Instituto ISEAS-Yusof Ishak, em Singapura, argumenta que essa influência dos militares se deve, em parte, ao poder que emana dos negócios que eles administram.
O Exército Popular do Vietnã é responsável por algumas das maiores empresas do país, incluindo a Viettel, a maior empresa de telecomunicações do país, e a Sai Gon New Port, a maior operadora de terminais de contêineres.
Um relatório de agosto do think tank Carnegie Endowment for International Peace destacou uma tendência global de influência militar impulsionada pela dinâmica de poder entre as Forças Armadas, os líderes estatais e o setor privado.
A teoria convencional da democracia, segundo o relatório, presumia que uma maior autonomia e influência do setor privado se traduziria em democratização.
No entanto, o relatório sugere que as relações entre militares e empresas muitas vezes sufocam a democratização e, ocasionalmente, resultam em intervenção militar na política para defender os interesses do setor privado, especialmente quando ele é dominado por oligarcas poderosos, como é o caso em grande parte do Sudeste Asiático.
Prabowo, o presidente da Indonésia, é irmão do empresário mais rico do país, Hashim Djojohadikusumo. Os militares de Mianmar dominam os setores econômicos mais importantes do país.
“O fato de os militares estarem cada vez mais exercendo o poder é, em quase todos os casos, um aspecto negativo para a democracia e os direitos”, disse Kurlantzick, do Conselho de Relações Exteriores para o Sudeste Asiático.
“Muitas vezes, isso criou uma situação em que os militares se alinham com oligarcas e políticos dispostos a minar o crescimento econômico e a inovação”, acrescentou.
Uma exceção é o Timor-Leste, o menor e mais jovem país da região, que tem sido liderado por ex-guerrilheiros e líderes militares desde sua independência em 2002.
Xanana Gusmão, o atual primeiro-ministro, foi chefe das Falintil, organização militar rebelde que lutou contra o colonialismo indonésio.
O Timor-Leste é o único país do Sudeste Asiático rotineiramente classificado como “livre” por organizações sem fins lucrativos como a Freedom House.