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A inelegibilidade de Ronaldo Caiado não deve prevalecer
A decisão da 1ª Zona Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás (TRE-GO) que decretou a inelegibilidade do governador Ronaldo Caiado, do prefeito eleito de Goiânia, Sandro Mabel, e da vice, Cláudia Lira, não deve prevalecer. Em que pese as suas 34 laudas, a decisão não está devidamente fundamentada quanto à principal tese de defesa: as condutas investigadas encontram respaldo no artigo 73, § 2º, da Lei nº 9.504/97. E ainda possui outros defeitos.
A acusação cinge-se à realização de duas reuniões no Palácio das Esmeraldas, residência oficial do governador de Goiás, realizadas nos dias 7 e 9 de outubro de 2024, que contaram com a participação do então candidato a prefeito Sandro Mabel, sua vice e vereadores eleitos. Nas palavras da acusação, os eventos tiveram o intuito de arregimentar apoiadores ao “projeto político-eleitoral, conforme noticiado pela imprensa”.
Assim, a acusação conclui que “houve o uso indevido da estrutura governamental para beneficiar eleitoralmente um candidato específico e que a presença do governador Ronaldo Caiado ao lado de Sandro Mabel sugere uso da máquina pública em favor da sua candidatura”. A prova dos fatos são principalmente algumas manchetes jornalísticas, tais como:
– jornal O Hoje: “Caiado promove mobilização em apoio a Mabel pelas ruas de Goiânia”;
– Jornal Opção: “Em jantar no Palácio, Caiado pede empenho total de vereadores para eleição de Mabel”;
– Jornal CBN Goiânia: “Mabel faz reunião com vereadores eleitos em busca de apoio para o 2º turno”.
– Jornal Poder Goiás: “Caiado mobiliza vereadores em jantar no Palácio para apoiar Mabel no segundo turno”;
– Jornal Diário Goiás: “Governador Caiado recebe 26 vereadores eleitos em apoio à campanha de Mabel”.
A defesa, por sua vez, aduz que os eventos foram reuniões institucionais sem caráter público com o fim de parabenizar os candidatos eleitos pelo trabalho realizado, discutir estratégias emergenciais para a cidade e fortalecer o diálogo entre o Poder Executivo estadual e a Câmara dos Vereadores. Sustenta ainda a licitude do uso do bem público (o Palácio das Esmeraldas) com amparo no artigo 73, § 2º, da Lei nº 9.504/97.
A defesa, pois, apresentou a tese de que as tais reuniões estão legalmente amparadas na exceção prevista no § 2º do artigo 73 da Lei nº 9.504/97.
A regra é que:
“Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:
I – ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ressalvada a realização de convenção partidária;”
A exceção legal está prevista no referido § 2º:
“§ 2º. A vedação do inciso I do caput não se aplica ao uso, em campanha, de transporte oficial pelo Presidente da República, obedecido o disposto no art. 76, nem ao uso, em campanha, pelos candidatos a reeleição de Presidente e Vice-Presidente da República, Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal, Prefeito e Vice-Prefeito, de suas residências oficiais para realização de contatos, encontros e reuniões pertinentes à própria campanha, desde que não tenham caráter de ato público.”
À essa tese, o que nos diz a decisão judicial?
“A regra de exceção apresentada pela Defesa que exclui a ilicitude do uso de bem público não se aplica ao caso uma vez que o investigado Ronaldo Caiado não usou o Palácio das Esmeraldas, sua residência oficial, para reuniões pertinentes à própria campanha.
Ele não estava disputando as Eleições de 2024.”
O artigo 73, I, estabelece a regra segundo a qual é proibido ceder ou usar bens móveis ou imóveis pertencentes à administração pública em benefício de candidato, partido político ou coligação. A exceção, prevista no § 2º, dispõe que tal vedação não se aplica ao uso de transporte oficial e nem ao uso de residências oficiais para realização de contatos, encontros e reuniões pertinentes à própria campanha, desde que não tenham caráter de ato público. No entendimento da sentença, as reuniões no Palácio das Esmeraldas seriam lícitas se a campanha fosse do próprio governador; mas sendo a campanha de outrem o ato é ilícito, não permitido pela lei.
Nesse diapasão, a decisão afirma que “da análise da prova constante dos autos tem-se que as condutas vedadas e devidamente comprovadas caracterizaram o abuso de poder político”. Ora, esse raciocínio parece lógico (condutas vedadas + provas = abuso de poder econômico), mas possui um erro, uma distorção, um equívoco entre o que seja uma reunião para pensar ou alinhar estratégia de campanha com reunião/evento de campanha com abuso de poder político.
Explico.
As “condutas vedadas” e “devidamente comprovadas” encontram – na tese da defesa – uma justificação legal que exime a ilicitude, sendo, portanto, uma exceção prevista na lei, ou seja, uma conduta permitida pelo Direito.
A decisão enquadrou a natureza das reuniões em duas opções peremptórias e, sem qualquer fundamento, optou pela conclusão de que se tratam de “atos de campanha”:
“Resta tão somente apurar se os eventos se trataram de reuniões institucionais ou se foram atos de campanha eleitoral para beneficiar os investigados Sandro e Cláudia, candidatos a Prefeito e Vice-Prefeita nas eleições de 2024, em prejuízo dos demais candidatos.
Para a apuração da finalidade dos eventos os vídeos juntados na inicial (Vídeo 1 ID nº 123914872 e Vídeo 4 ID nº 123914874) são claros e não deixam qualquer dúvida de que consistiram em verdadeiros atos de campanha eleitoral.”
O equívoco da decisão está no entendimento simplista de que o uso do bem público estaria permitido se fosse para “ato de campanha” do próprio governador. No entanto, quando a lei diz “reuniões pertinentes à própria campanha”, não está autorizando um governador fazer a própria campanha eleitoral em sua residência oficial, mas ao fato de fazer reunião em que se trate de assunto pertinente à campanha em si, ou seja, à “própria campanha” eleitoral em curso. Vale dizer, são reuniões de estratégias, de planejamento, de alinhamento com os aliados etc. Entendimento diverso levaria à interpretação de que o governador pode usar a residência oficial para fazer ato de campanha eleitoral para si mesmo – e não parece ser esta a interpretação correta, até porque quem pode fazer campanha para si mesmo, haveria de poder fazer para outrem (quem pode o mais, pode o menos).
Parece-me que esse aspecto passou desapercebido na decisão judicial. A decisão demostra convicção de que: (1) “os eventos ocorreram quando os candidatos vitoriosos no primeiro turno iniciavam a corrida pela disputa de alianças”; (2) que “participaram dos eventos apenas os vereadores e suplentes da base aliada dos investigados Ronaldo e Sandro”; (3) “que o investigado Sandro participou dos dois eventos e fez o uso da palavra, ocasiões em que pediu o apoio e empenho dos vereadores e das lideranças políticas para o segundo turno das eleições 2024; (4) que os eventos foram realizados a portas fechadas com entrada restrita aos convidados; e (5) que nos discursos dos investigados Ronaldo e Sandro não tem o pedido expresso de voto, mas apenas pedidos indiretos.
Decisão faz aferições de caráter pessoal e elucubração sem suporte em evidências
Pelo que se pode compreender dos fatos, com base na decisão, as reuniões realizadas na residência oficial do governador se enquadram perfeitamente naquilo que a lei chama de “encontros e reuniões pertinentes à própria campanha, desde que não tenham caráter de ato público”. Trata-se, pois, de reunião para tratar da campanha propriamente dita; e não de “ato de campanha” do próprio governador ou para outrem.
Em matéria eleitoral, pelo artigo 23 da LC 64/90, o juiz ou tribunal pode “formar sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”. Porém, é de se indagar quais são os limites desse poder sancionatório do juiz eleitoral no Estado Democrático de Direito.
Por mais elásticos que sejam os poderes sancionatórios do juiz eleitoral, certamente eles encontram limites na ordem legal e constitucional. Assim, não é juridicamente válida uma decisão que faz aferições de caráter pessoal para reprovar uma autoridade por ela ser uma autoridade, ao dizer, por exemplo, “Não se espera de um político da sua envergadura tamanho descaso com a legislação eleitoral, inclusive, porque está assessorado de advogados com larga experiência em matéria eleitoral”. Isso é um “pito”, não é uma sentença. Nesse ponto, a decisão extrapola o campo jurídico para invadir o campo da moral.
O mesmo artigo 23 da LC 64/90 foi usado para punir além do que foi pedido pelas partes no processo, por meio de uma sentença ultra petita, haja vista que, ao que parece na decisão, a condenação à inelegibilidade não fez parte do pedido do reclamante.
Ainda, a sentença determinou a “exclusão dos partidos responsáveis pelos atos que geraram as multas na distribuição dos recursos do Fundo Partidário, nos termos do artigo 73, § 9º, da Lei nº 9.504/97 e artigo 44, parágrafo único, da Resolução TSE nº 23.709/2022”, sendo que tais partidos não fizeram parte da demanda. Além de ultra petita, a sentença é ultra partes. E ninguém pode ser condenado sem o devido processo legal, sem direito de defesa e contraditório. Ainda que a LC 64/90 permita ao juiz eleitoral extrapolar os limites da lide, tal item da decisão deve estar devidamente fundamentada – o que não aconteceu na decisão em comento, eis que esse assunto só aparece no dispositivo da sentença.
Por fim, a decisão pontua que o investigante Frederico foi “o primeiro colocado no primeiro turno das Eleições 2024 e ao final do segundo turno das Eleições teve uma diferença em torno de 11% para o investigado Sandro, o que permite afirmar que sem a prática das condutas ilícitas o resultado poderia ser outro”.
Mas, isso é uma elucubração sem suporte em evidências. A diferença entre os dois candidatos foi de 70.464 votos no segundo turno, sendo que 283.479 votos no primeiro turno não foram em nenhum dos candidatos que alcançaram o segundo turno, quando houve uma taxa recorde de abstenção que chegou a 34,20%. O lamento judicial superestima a performance eleitoral de um candidato que se dizia solteiro sendo casado; se dizia bacharel em direito, tendo apenas o ensino médio completo; e que cometeu outras fraudes para assumir cargo público sem a devida qualificação.
A cidade de Goiânia enfrenta uma das principais crises da sua história. A saúde pública está em colapso, o secretário de saúde encontra-se preso preventivamente, o município está sob intervenção ordenada pelo Tribunal de Justiça – isso há 20 dias do final do mandato. Com esses e muitos outros problemas gravíssimos, o atual prefeito limita-se comparecer em público para ser fotografado entregando medalhas a estudantes contemplados nos Jogos Educacionais de 2024, completamente alheio e descolado da realidade.
As crises na cidade de Goiânia são reais. Não era hora para uma crise inventada, baseada em manchetes de jornais. O § 2º do artigo 73 da Lei nº 9.504/97 possui muitas minúcias, sendo tênue a linha entre o lícito e o ilícito. Retirar dele consequências tão graves, como a inelegibilidade por oito anos, é por demais desproporcional.
- Bartira Macedo de Miranda é doutora em História da Ciência pela PUC-SP, pós-doutora em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela PUC-GO, pós-doutora em Direito Constitucional pela Universidade de Valência (Espanha).