Judiciário
Equilíbrio entre Poderes: judicialização da política ou politização do Poder Judiciário?
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Flávio Dino, que regulamenta a execução das emendas parlamentares, reacende um velho debate: até onde deve ir a judicialização da política? A imposição de limites fiscais jurídicos ao crescimento das despesas discricionárias do Executivo, ao arcabouço fiscal ou à variação da Receita Líquida (RCL) provoca reflexões sobre a autonomia constitucional do Poder Legislativo na gestão do orçamento público.
A decisão, embora bem-intencionada e fundamentada sob o argumento da transparência e controle, traz à tona um problema sistêmico: o excesso da judicialização da política.
Judicialização da política
Para compreender os efeitos dessa intervenção, torna-se necessário refletir sobre duas características interligadas: a judicialização da política e a politização do Poder Judiciário. No primeiro caso, identifica-se o crescimento da participação judicial em temas tipicamente políticos. No segundo, percebe-se a influência de dinâmicas externas e políticas que acabam orientando as decisões judiciais.
Com esse panorama, é importante refletir sobre o impacto político do STF na definição das regras do regime democrático não apenas como “guardião da Constituição Federal”, o que implica certa neutralidade nas suas decisões, mas também pela influência de questões de conveniência política decorrentes da composição do governo federal e do Congresso Nacional.
A atribuição do Supremo Tribunal Federal de guardião dos direitos fundamentais foi introduzida na cultura jurídico-política brasileira a partir da segunda metade do século 20, por meio do controle normativo sobre os demais poderes, propiciou uma nova arquitetura institucional ao viabilizar a participação do Poder Judiciário nos processos decisórios.
Assim, o caráter político do Supremo Tribunal Federal deve-se à sua prerrogativa de declarar o sentido e o alcance das regras jurídicas, assegurada pela Constituição Federal de 1988.
A decisão referente às emendas parlamentares é emblemática e demonstra esse fenômeno. Conforme previsto na Lei Complementar nº 210/2024, a vinculação das emendas parlamentares ao limite fiscal deveria ser matéria resolvida no diálogo institucional entre Legislativo e Executivo. Como afirma Habermans [1]: a democracia deve ser deliberativa.
Poder Judiciário, governabilidade, transparência e controle
A judicialização do processo político envolve aspectos institucionais que se remetem diretamente à governabilidade do Estado, isto é, a sua “capacidade de efetivar a política definida pelo Governo”, cujo tema não é pacífico no Supremo, considerando o polêmico debate entre eficiência e democracia [2].
Embora o controle e a transparência das emendas parlamentares sejam fundamentais, os mecanismos previstos pela Constituição e pela legislação infraconstitucional já atribuem a órgãos específicos essa fiscalização, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e a própria Controladoria-Geral da União (CGU). Já o Congresso Nacional possui competência exclusiva para deliberar sobre o Orçamento Geral da União, incluindo as emendas parlamentares (artigo 166, CF).
A ingerência do Judiciário nesse campo fere a autonomia constitucional do Parlamento e traz consequências políticas e institucionais, além da insegurança jurídica. Apesar da prerrogativa de guardião da Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal, assim como as demais cortes superiores, também está vulnerável a influências políticas.
O argumento central do STF na ADPF 854 [3] está na necessidade de assegurar transparência na execução orçamentária, especialmente para coibir abusos, como o chamado orçamento secreto. Contudo, existe uma linha tênue entre a proteção constitucional e a ingerência política, tendo em vista as limitações impostas pelo teto fiscal, o controle excessivo e casuístico das emendas e a exigência de sua aprovação individualizada.
Tal exigência gera uma burocratização, engessa a execução orçamentária, sobrecarrega a máquina pública e, por fim, pode centralizar a política no Judiciário. Do ponto de vista político-institucional, o desempenho da jurisdição constitucional pelo Supremo Tribunal Federal — bem como por supremas cortes ou tribunais constitucionais mundo afora — envolve dois tipos de atuação: a contra majoritária e a representativa.
Além de sua função essencialmente representativa, as supremas cortes, em determinados momentos, devem assumir o papel de vanguarda, promovendo avanços. Trata-se de uma tarefa sensível, que exige moderação no exercício, sob pena de comprometer a democracia ou transformar as cortes constitucionais em instâncias dominantes [4].
Conclusão
Sob a perspectiva da judicialização da política, observa-se que, embora o Supremo Tribunal Federal seja na função de corte constitucional ou de corte suprema, desempenhe o papel de intérprete final da Constituição, a ascensão institucional do Poder Judiciário e da jurisdição constitucional ultrapassa frequentemente os limites da separação dos poderes, servindo, em muitos casos, como instrumento de oposição partidária.
Nesse contexto, surge uma possível solução: o conceito de virtude passiva, formulado por Alexander Bickel (BICKEL, 1986, p. 111), que evidencia a importância do poder do STF de não decidir questões especialmente sensíveis e controversas naquele momento. Tal poder é tão relevante quanto a declaração de (in)constitucionalidade, uma vez que a judicialização da política deve ser tratada com extrema cautela, a fim de não comprometer a governabilidade nem prejudicar a implementação das políticas definidas pelo Estado.
A democracia, por sua vez, possui como uma de suas características fundamentais a capacidade de harmonizar o constitucionalismo e diálogo. Embora o sistema jurídico brasileiro vede o non liquet, a virtude passiva atua como estímulo à ação do Parlamento, evitando precipitações do Poder Judiciário, além de fomentar o diálogo institucional e o amadurecimento social. Assim, busca-se desenvolver soluções mais consensuais, construídas pela sociedade e pelas instituições públicas em benefício do bem comum.
[1] HABERMAS, J. 1997. Direito e democracia: entre faticidade e validade.Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, volume I e II.
[2] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Constituição e governabilidade: ensaio sobre a (in)
governabilidade brasileira. São Paulo: Saraiva, 1995.
[3] chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/12/ADPF-854-DECISAO-INTERLOCUTORIA-.pdf
[4] BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 5, Número Especial, 2015 p. 23-50.
- Marcela Bocayuva é advogada, mestre em Direito Público pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), especialista pela Fundação Escola Nacional do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT), certificada em Liderança e Negociação pela Universidade de Harvard, especialista em Direito e Economia pela Universidade de Chicago (Uchicago), estudante visitante na New York University (NYU) e coordenadora da Escola Nacional da Magistratura (ENM).