Judiciário
Reconhecimento de pessoas (art. 226 do CPP)
É necessário o rito do reconhecimento pessoal se não há dúvida sobre a autoria? A nulidade dependerá da falta de provas independentes que sustentem a condenação?
Resumo:
- A quebra da cadeia de custódia por infringência ao art. 226. do CPP tem sido uma objeção processual recorrente nas ApCrims submetidas à Câmara Criminal do TJRN.
- O reconhecimento de pessoa, como meio apuratório especial, só deve ocorrer “QUANDO” a hipótese o exigir, conforme previsto no art. 226. do CPP.
- A inobservância das formalidades legais no reconhecimento pessoal pode não levar à nulidade da ação penal se houver outras provas autônomas e suficientes para respaldar o decreto sancionador.
Tema bastante em voga, e que tem se constituído objeção processual de incoativa obrigatória em quase todas as ApCrims submetidas à Câmara Criminal do TJRN, é a quebra da cadeia de custódia por infringência ao art. 226. do CPP.
Aludido dispositivo, o qual ostentava o viés de mera recomendação até o julgamento do HC 598.886/SC, ocorrido em 21 de outubro de 2020, quando o STJ reviu seu entendimento (overruling) para tornar seus regramentos impositivos e cogentes, acha-se assim disposto:
Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
II- a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV – do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único. O disposto no nº III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.
Já no seu caput, todavia, há uma particularidade amiúde ignorada por Defensores e Julgadores, mas de assaz importância à resolução dos conflitos.
Falo da singularidade do procedimento. Afinal, o legislador ao definir predita diligência deixou assentado que o reconhecimento, como meio apuratório especial, só se dará “QUANDO” a hipótese o exigir.
Nada obstante, é por demais comum, mesmo nos casos de flagrante com vítima presente à Delegacia, a feitura vã e desnecessária da recognição pessoal (geralmente por “show-up”), tendo por objeto suspeito já amplamente identificado.
Nessas hipóteses, malgrado se busque atrelar, via de regra por meio de nulidade de algibeira, sua feitura ao art. 226. do CPP, nada há de lógico ou jurídico a lhe respaldar, devendo essa “prova” ser descartada já em IP por inocuidade, ou ter sua importância desprezada para fins de condenação.
Em síntese, as exigências e formalidades reclamadas pelos Tribunais Superiores à espécie pressupõem a existência da dúvida. Na sua falta, sequer haverá motivo para se agitar do próprio “reconhecimento pessoal”.
Sobre o tema e a propósito, esclarecedoras são as palavras do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, aportadas ao AgRg no HC 769.478/RS, notadamente ao pontuar:
“… O art. 226, antes de descrever o procedimento de reconhecimento de pessoa, diz em seu caput que o rito terá lugar “quando houver necessidade”, ou seja, o reconhecimento de pessoas deve seguir o procedimento previsto quando há dúvida sobre a identificação do suposto autor. Se a vítima é capaz de individualizar o agente, não é necessário instaurar a metodologia legal…”
(AgRg no HC 769.478/RS, 5ª Turma, j. em 25/4/2023).
Doutro bordo, nos casos onde referido meio de obtenção da prova se fizer realmente necessário, a inobservância às formalidade legais não pode ser considerada, única e isoladamente, como argumento para se decretar a nulidade da actio.
Em verdade, subsistindo outras provas autônomas e com envergadura apta a respaldar o decreto sancionador, o descumprimento à regra não desbordará do campo das irregularidades, como destacado pelo Ministro Nunes Marques em decisum paradigmático:
AGRAVO INTERNO EM HABEAS CORPUS… RECONHECIMENTO PESSOAL. ART. 226. DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. INOBSERVÂNCIA. AUTORIA. ELEMENTOS DE PROVA INDEPENDENTES E SUFICIENTES. AUSÊNCIA DE NULIDADE. NEGATIVA DE SEGUIMENTO AO HABEAS CORPUS… Reconhecimento fotográfico realizado sem observância das formalidades previstas no art. 226. do Código de Processo Penal pode ser admitido como prova e valorado desde que amparado em outros elementos capazes de sustentar a autoria do delito. 3. Agravo interno desprovido.
(HC 240.668 AgR, Relator Min. NUNES MARQUES, Segunda Turma, j. em 11-06-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 26-06-2024 PUBLIC 27-06-2024).
Associando-se à prenunciada linha intelectiva, o Superior Tribunal de Justiça, conforme recentíssimo julgado da sua 5ª Turma:
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO E EXTORSÃO QUALIFICADA. CONCURSO DE AGENTES. NULIDADE. RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO REALIZADO EM CONTRARIEDADE AO ART. 226. DO CPP. EXISTÊNCIA DE OUTROS ELEMENTOS DE PROVA ACERCA DA AUTORIA DELITIVA. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. AUSÊNCIA DE FLAGRANTE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Como é de conhecimento, Em revisão à anterior orientação jurisprudencial, ambas as Turmas Criminais que compõem esta Corte, a partir do julgamento do HC n. 598.886/SC (Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz), realizado em 27/10/2020, passaram a dar nova interpretação ao art. 226. do CPP, segundo a qual a inobservância do procedimento descrito no mencionado dispositivo legal torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado em juízo…
(AgRg no HC 949.944/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, j. em 13/11/2024, DJe de 18/11/2024).
Não se ignora aqui, vale o registro, a importância da referida garantia à validade dos feitos penais, cuja preocupação, decerto, embasou a edição, pelo CNJ, do Manual de Reconhecimento de Pessoas (Cf. Resolução 484/2022). Entrementes, estabelecer e divisar seus contornos, sobretudo para evitar impunidades antissociais, é algo igualmente vital e urgente à pronta e eficaz atividade jurisdicional.
Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte desde 11 de abril de 2008. Presidente da Câmara Criminal. • Presidente da Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte
Assessor Judiciário do TJ/RN.