Judiciário
Investigação policial no Brasil e o efeito canguru
Em que pese seja desnecessário, é de bom tom mencionar que as atribuições de cada instituição responsável pela segurança pública encontra previsão Constitucional insculpida no artigo 144 e §§, de modo que não há dúvidas sobre aspectos específicos, como circunscrições e limites de atuação, pois que estão bem delineados nos respectivos incisos de cada parágrafo do aludido artigo da Carta Magna.
Entretanto, quando se trata de atividade investigativa, parece haver certo desentendimento ou mesmo resistência em compreender o que de fato significa investigar, sendo o erro mais comum, confundi-la com função exclusiva de Polícia Judiciária, o que não poderia estar mais distante da verdade.
O título conferido a este artigo pode soar engraçado ou, no mínimo, pitoresco, mas na verdade trata-se de uma comparação para ilustrar a confusão que parece haver sobre o termo investigação no Brasil, onde parece que a língua pátria falada por alguns operadores do Direito não é a mesma, pois o significado do termo parece ser diferente a depender das instituições às quais pertencem.
Dito isso, sendo o Direito uma ciência humana, sua fonte são as relações humanas, ou melhor, as necessidades derivadas das muitas vertentes envolvidas nas relações humanas, de modo que na história, vez ou outra, surgem fatos que exigem incrementos legislativos, jurisprudenciais ou que bem servem para ilustrar circunstâncias do Direito, sendo este o caso aqui abordado.
É sabido que, na história humana, quase sempre que duas civilizações entraram em contato pela primeira vez, os desdobramentos foram negativos, pelo menos para uma delas. Em grande parte, o motivo das mazelas sofridas foi a falta de compreensão das línguas faladas pelos membros de civilizações diferentes, ou pior, da atribuição de significado distinto do que o interlocutor dizia, o que corrompia a mensagem, causando medo, que quase sempre levava ao quase extermínio do grupo mais fraco, militarmente falando.
Muito embora o vernáculo seja comum a todas as instituições policiais, a compreensão do termo investigação não é, em que pese esteja escrito à rigor da Última Flor do Lácio em todos as leis, códigos e dicionários.
Desserviço
Tal desentendimento e tentativa de apropriação da atividade investigativa por parte de determinadas instituições policiais em detrimento de outras tem sido um desserviço à sociedade há anos, pois além de não corresponder à verdade sobre essa atividade de Estado tão cara e necessária, ainda prestigia o criminoso, que se vê encorajado a alegar ilegalidades onde não existem e tornado a já árdua missão de enfrentamento da criminalidade ainda mais penosa e custosa.
O título desse artigo tem inspiração numa história que remonta a expansão ultramarina inglesa, mais especificamente, quando os exploradores aportaram pela primeira vez na ilha que hoje conhecemos como Austrália, terra do simpático animal chamado de canguru.
O curioso fato inspirador se deu quando os ingleses chegaram à Austrália e se assustaram ao ver estranhos animais que davam saltos incríveis e carregavam seus filhotes numa espécie de bolsa localizada na altura do abdome.
Dizem que ao verem tal animal pela primeira vez, os exploradores imediatamente chamaram um nativo local e perguntaram, apontando e gesticulando, qual o nome do tal bicho.
O nativo, por sua vez, não entendendo coisa alguma do que diziam os ingleses e tampouco porque apontavam como loucos para algo que era comum para eles, sempre repetia “Kan Ghu Ru”, e rapidamente o termo foi adaptado para o inglês “Kangaroo” (canguru).
Tempos depois linguistas determinaram o significado da palavra, que era muito claro: com “Kan Ghu Ru”, os nativos queriam dizer aos ingleses “Não te entendo”, mas como sabemos, a frase dita na língua aborígene se tornou uma palavra que hoje identifica o simpático animal.
Guardadas as devidas proporções acerca das distinções linguísticas entre ingleses e aborígenes, bem como no tocante a distância temporal a que estamos do ocorrido, e mesmo que não tenha ocorrido exatamente assim como alguns estudiosos das línguas defendem, sendo fato ou conto, servirá bem para ilustrar o que se pretende demonstrar nesse artigo.
Em que pese “efeito canguru” não seja um fenômeno documentado ou mesmo estudado a fundo, foi a melhor definição e a que melhor se amolda ao aqui tratado, visto que significa designar algo ou uma situação não pelo que ela é, mas pelo que entendemos, e daí temos o problema de ver as coisas como que queremos que elas sejam e não como de fato são.
Isso ocorre quando se fala em investigação policial, visto que há os que defendem se tratar de uma prerrogativa exclusiva de Polícia Judiciária, confundindo-a com o próprio termo investigação, visto que não é raro ler ou ouvir a designação Polícia Investigativa em vez de Judiciária.
Os defensores desse entendimento são, em geral, integrantes dessas instituições, sendo alguns deles reacionários, inclusive, acerca do tema, defendendo ferozmente que o exercício da investigação é de inteira exclusividade de suas instituições, e não uma atividade de Estado comum a outras instituições que, por lei, devem enfrentar a criminalidade.
Por seu turno, há os que defendem que a investigação policial é, de fato, atividade típica de Estado e comum a vários órgãos, e não se confunde com atividade de Polícia Judiciária em nada, sendo bem clara a divisão entre uma coisa e outra.
Os defensores desse entendimento, por outro lado, não se limita aos integrantes das Polícias Militares como se imagina, mas também fazem coro os integrantes do Poder Judiciário e Ministério Público, o que denota sua robustez.
A fim melhor demonstrar que o problema é semântico e não legal, ou seja, trata-se de uma questão de interpretação do termo investigação e não de uma determinação legal de quem pode ou não investigar. Dito isso, vejamos o que diz a CRFB/88 quando trata de investigação:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I – …;
II – …;
XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.
1º…;
2º…;
3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I -…;
II -…;
VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais.
Nota-se claramente que a Carta Magna não delega a atividade investigativa à nenhuma Polícia específica, seja Militar ou Judiciária, mas claramente difere investigação de instrução penal ou instauração de inquérito, que, em última análise se presta à instrução penal, de modo que essa última certamente compete às Polícias Judiciárias, seja na esfera Civil, Federal ou Militar, nos crimes de sua alçada, enquanto que a primeira, ou seja, a investigação é comum a todas as Polícias, guardadas algumas nuances, como veremos mais adiante.
LEI Nº 12.830, DE 20 DE JUNHO DE 2013.
Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.
Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
1º Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
A lei que supracitada não confere em nenhum de seus artigos exclusividade para investigar, mas sim, estabelece que ao delegado de polícia cabe a investigação criminal por meio de inquérito com a finalidade de estabelecer autoria e materialidade de crimes ocorridos, ou seja, crimes que não puderam ser evitados e já produziram seus efeitos naturalísticos, o que não abarca os crimes permanentes, ou que se protraem no tempo, cuja competência investigativa recai também e, quiçá, especialmente, às Polícias Militares.
LEI Nº 14.735, DE 23 DE NOVEMBRO DE 2023
Institui a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, dispõe sobre suas normas gerais de funcionamento e dá outras providências.
Art. 6º Compete à polícia civil, ressalvadas a competência da União e as infrações penais militares, executar privativamente as funções de polícia judiciária civil e de apuração de infrações penais, a serem materializadas em inquérito policial ou em outro procedimento de investigação, e, especificamente:
I – cumprir mandados de prisão, mandados de busca e apreensão e demais medidas cautelares, bem como ordens judiciais expedidas no interesse da investigação criminal;
II -…;
A lei retro, recém-publicada, confere às Polícias Civis exercerem privativamente suas funções de Polícia Judiciária e a apuração de infrações penais, novamente remetendo a ideia de crime já ocorrido, ou seja, aquele que não se pode evitar e que, portanto, exige instauração de inquérito para estabelecer materialidade e autoria, visando a instrução penal.
Nota-se, portanto, que nenhum dos textos legais conferem exclusividade de investigar às Polícias Judiciárias, mas apenas para apurar, ou seja, buscar elementos que estabeleça quem praticou o crime e assegurar o que de fato ocorreu, de modo que os crimes permanentes são de competência, não exclusiva, mas concorrente, de ambas, visto que suas ocorrências aviltam a Ordem Pública, demandando lançar meios, por vezes investigativos, para faze-los cessar, senão vejamos:
LEI Nº 14.751, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2023
Institui a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, nos termos do inciso XXI do caput do art. 22 da Constituição Federal, altera a Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018, e revoga dispositivos do Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969.
Art. 5º Compete às polícias militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, nos termos de suas atribuições constitucionais e legais, respeitado o pacto federativo:
I -…;
II -…;
III – realizar a prevenção e a repressão dos ilícitos penais militares e cumprir mandados de prisão, busca e apreensão e demais medidas cautelares, bem como ordens judiciais expedidas no interesse da apuração criminal militar, da Justiça Militar dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, referentes à apuração das infrações penais militares praticadas pelos seus membros, ressalvada a competência da União;
IV – realizar a prevenção dos ilícitos penais, com adoção das ações necessárias ao pronto restabelecimento da ordem pública, no âmbito de suas atribuições constitucionais e legais;
V -…;
XXII – atender às requisições do Poder Judiciário e do Ministério Público no cumprimento de suas decisões, no exercício de suas atribuições constitucionais e legais, especialmente ¹ em relação aos mandados expedidos pela Justiça Militar dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
XXIII -…;
XXV – exercer todas as prerrogativas inerentes ao poder de polícia para o cumprimento de suas missões e finalidades ²;
XXVI -…;
A lei retro, também recém-publicada, confere às Polícias Militares prerrogativas para levarem a efeito sua missão de prevenção de ilícitos, lançando mão dos meios legais para restabelecimento da Ordem Pública, o que, por certo, exige, em muitos casos, conduzir investigação, obviamente, não por meio de instauração de inquérito para investigar civis por crimes que tenham cometido, mas sim nos casos em que os crimes estão em curso e o Estado precisa fazê-los cessar.
Note que a novel legislação não afastou das Polícias Militares cumprir medidas cautelares de busca e apreensão ou de prisão, e não apenas relacionadas a crimes militares, apenas observou que especialmente¹ nesses casos, mas não exclusivamente, pois o legislador entendeu que tais medidas são muitas vezes necessárias ao restabelecimento da Ordem Pública, que nada mais que cessar o crime, tornar a normalidade em determinado espaço-tempo.
Imaginem quantos chamados as polícias militares recebem diuturnamente para averiguações de denúncias de tráfico de drogas, posse ulegal de arma, cárcere privado ou receptação, todos crimes permanentes conforme dispõe a doutrina, pois que são condutas ilícitas que se protraem no tempo enquanto o autor mantiver determinadas ações previstas em lei.
Imaginem agora se diante de todas essas notícias de crimes as polícias militares não pudessem atuar por serem tolhidas do poder de investigar a veracidade dessas denúncias, seja por meio de coletas em bases de dados sobre os denunciados, ações de Inteligência ou por meio de representação judicial por cautelar de busca e apreensão, quando esgotados os meios ordinários administrativos de colheita de elementos.
Percebam que o poder de investigar é implícito à atividade de Polícia Preventiva ou Militar, pois que sem essa capacidade, sua capacidade de prevenção seria sobremaneira mitigada, tornando inócua grande parte de suas ações preventivas e atendimento a chamados para averiguação de crimes.
Com a redação da novel legislação que veio regular de forma homogênea a atuação das polícias militares do Brasil, evidenciou-se que o legislador se valeu de entendimentos jurídicos que há muito norteiam com efetividade a Segurança Pública em muito outros países. Podemos ver exemplo desse entendimento no artigo 5º, inciso XXV, cujo teor se acha acima e que se amolda em perfeição com a Teoria dos Poderes Implícitos ², nascida nos EUA (Caso Mc CulloCh vs. Maryland – 1819) e segundo a qual, se a Constituição outorga determinada atividade-fim a um órgão, significa dizer que também concede todos os meios necessários para a realização dessa atribuição.
Conclusão
Por derradeiro, conforme restou demonstrado, o que temos quando vozes se levantam para dizer que a atividade investigativa é privativa de determinada força policial, quase sempre das polícias judiciárias, nada mais é que uma distorção daquilo que a lei e a boa doutrina dispõe acerca do assunto, consubstanciando-se numa mera repetição irrefletida de um ensinamento arcaico e imprestável à segurança pública.
Nesse sentido, é como se ao ouvir a palavra investigação, algumas pessoas não entendessem o que de fato significa, ou ao olhar para um ato investigativo, imediatamente o confundissem com um ato privativo de Polícia Judiciária, ou seja, um “Kan Ghu Ru”, quando na verdade ninguém, em momento algum disse ou quis dizer isso, mas apenas isso que foi entendido e tomado por muitos como verdade absoluta.
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Referências
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88;
LEI Nº 12.830, DE 20 DE JUNHO DE 2013 – Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia;
LEI Nº 14.735, DE 23 DE NOVEMBRO DE 2023 – Institui a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, dispõe sobre suas normas gerais de funcionamento e dá outras providências;
LEI Nº 14.751, DE 12 DE DEZEMBRO DE 2023 – Institui a Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, nos termos do inciso XXI do caput do art. 22 da Constituição Federal, altera a Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018, e revoga dispositivos do Decreto-Lei nº 667, de 2 de julho de 1969;
https://www.usp.br/espacoaberto/arquivo/2000/janeiro00/variedades.html