Judiciário
Em defesa dos direitos da criança e do adolescente

A promulgação da Constituição cidadã, em 1988, abriu espaço para o processo de construção e sedimentação de instituições democráticas, ampliação de direitos e garantias fundamentais e de canais de participação popular. Foi um período de esperança na possibilidade real de que brasileiros e brasileiras experienciariam, de fato, o exercício da cidadania.
Amparada pelos princípios fundantes do CF, em 13 de julho de 1990, por exemplo, foi editada a Lei 8.069, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Esse documento jurídico é símbolo de uma grande virada no que diz respeito à proteção da infância e da juventude, ao passar a definir que crianças e adolescentes gozam de prioridade absoluta no que diz respeito às políticas públicas.
O ECA rompe com a perspectiva de menores infratores em conflito com a lei e considera as crianças e adolescentes como sujeitos de direito e de proteção integral. Ele também se apresenta como uma legislação antirracista, enquanto, historicamente, são crianças e adolescentes negros que sofrem com medidas socioeducativas; são pessoas deste grupo vulnerável colocadas na condição de trabalhadores, sem qualquer consideração sobre seu desenvolvimento social, físico e psíquico. Desta forma, qualquer ação que caminhe na contramão desses direitos conquistados é uma forma de reproduzir o racismo.
Dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania mostram que “em relação ao número de adolescentes em atendimento socioeducativo de restrição de liberdade, 4,4% correspondem ao sexo feminino e 95,6% ao sexo masculino. Cerca de 63,8% dos adolescentes no sistema socioeducativo brasileiro se declararam de cor parda/preta, correspondendo a 7.540. Os que se consideram brancos são 2.633 (22,3%); amarelos 8 (0,1%), indígenas 53 (0,4%)”.
A proteção de crianças e adolescentes foi orientada pela adoção da Convenção sobre os Direitos da Criança, em 20 de novembro de 1989, na Assembleia Geral da ONU. Cabe-nos ressaltar que esta convenção se configura no documento internacional de direitos humanos mais aceito na história moderna, sendo os Estados Unidos o único país a não se comprometer com ele.
Os países signatários – no Brasil está ratificado pelo Decreto 99.710/1990 – são obrigados a respeitarem os direitos nela anunciados “sem distinção alguma, independentemente de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra índole, origem nacional, étnica ou social, posição econômica, deficiências físicas, nascimento ou qualquer outra condição da criança, de seus pais ou de seus representantes legais”.
O ECA e a convenção vigente no Brasil, estabelecem que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos humanos com prioridade absoluta e proteção integral. No entanto, desde a entrada em vigor, tanto da Constituição da República quanto dos mencionados documentos, vivenciamos tensões e contradições bastante sérias que embaraçam a implementação efetiva e o exercício da cidadania plena de milhares e milhares de crianças e adolescentes.
A realidade que se impõe é, ainda, a de uma sociedade profundamente desigual com grande parte da sociedade sem acesso a bens e serviços básicos como saneamento básico, educação e saúde, e um Estado cada vez mais estrangulado por medidas neoliberais e pautado na vigilância e na punição, assim como no racismo e em uma ordem econômica e política dependente.
Em dissonância completa com o projeto promulgado em 1988, as políticas públicas têm sido escassas ou transferidas para a iniciativa privada, com um completo desmonte da Constituição da República; decisões que a deixam como algo oco, quase como uma revogação tácita. A proteção de grupos vulnerabilizados atrelada aos direitos humanos tem sido algo para os livros de história alheia à concretude da vida.
Como exemplo desta ruína podemos tratar do sistema socioeducativo presente no ECA, de responsabilidade dos estados. Nascido durante a gestão do ex-presidente, Jair Bolsonaro, ficou suspenso até setembro de 2024, quando foi dado seguimento ao projeto Novo Socioeducativo, ou seja, iniciaram a execução das Parcerias Público-Privada (PPP) – que, conforme estruturações feitas a partir dos governos e do Estado brasileiro nos últimos oito anos, podem ser entendidos como uma política público-privada – no sistema responsável por promover a proteção integral de adolescentes que cometeram atos infracionais.
Sabemos que o objetivo da iniciativa privada é o lucro. Sendo assim, haverá interesse em proporcionar a reeducação para e pelos direitos humanos? Haverá interesse em eliminar estabelecimentos dessa natureza e incentivar que todos as crianças e adolescentes estejam seguras com acesso a bens e serviços como saúde e educação junto de suas famílias?
A privatização contribuirá com a ordem sociorracial predominante, enquanto, não haverá interesse na reeducação dos jovens, massivamente negros. Há lucros ter jovens inseridos nas medidas socioeducativas. Se acabar com estas instituições, o lucro terminará, logo, o trabalho de cuidado é deixado de lado. Medidas mais punitivistas vão levar mais jovens ao cárcere.
Por outro lado, o empenho de orçamento na educação é mais trabalhoso, todavia, promove um desenvolvimento humano e social mais digno de uma sociedade que busca alçar os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável. Dados do Anuário de Segurança Pública (2024), apontam que houve uma redução no número de internações de adolescentes reeducandos no Sistema Socioeducativo de 56,2% desde 2015, o que é algo benéfico para a sociedade e evidência que o Estado está cumprindo minimamente seu papel, ainda que com condições precárias de suas instalações. Por isso, qual o interesse em oferecer o sistema socioeducativo para exploração deste que, até então, era serviço público, por 30 anos? Qual o interesse em tornar o sistema socioeducativo em atividade econômica?
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024) aponta que “o ‘Novo Socioeducativo’ que inaugura a possibilidade de Políticas Público-Privadas (PPPs) no âmbito da socioeducação vão em direção contrária ao que se esperaria em termos de ações públicas para proteção dos adolescentes”. Nem poderia ser diferente ao se pensar na privatização do sistema prisional ou socioeducativo. Isso, pois ao se passar da Administração Pública para a administração privada, como feito com os sistemas educacionais em alguns Estados recentemente, tendo como objetivo o lucro, as pessoas deixam de ser cidadãos e são clientes ou consumidores.
Ao se pensar em clientes e na otimização da margem de lucro, o sistema privado deve ter dois focos: reter e agradar o cliente. Não se trata, contudo, das mesmas pessoas. Para otimizar a margem de lucro, com o dinheiro público, a privatização dos sistemas socioeducativos buscarão reter o maior número de jovens dentro de suas instituições, ao mesmo tempo que tentarão passar para a opinião pública a impressão de que essa é a solução para os problemas de segurança no país. Tenta-se agradar a opinião pública com populismo, enquanto trancafia (sem chances de ressocialização) jovens e adultos culpados ou inocentes.
O descaso com a situação real dos presídios brasileiros gestou, há mais de trinta anos, o surgimento das maiores facções criminosas do país. O descaso atual, endossado pela opinião pública, gestará fatores de risco ainda maiores e, por enquanto, inimagináveis.
A privatização do sistema socioeducativo representa mais uma faceta do racismo, que se modifica nas instituições como se estivesse uma “cegueira da cor” (que, para o inglês, tem um duplo sentido com daltonismo), conforme Eduardo Bonilla-Silva, em que aparentemente a decisão não impacta com diferença as pessoas negras e brancas.
Na prática, os primeiros prejudicados são os jovens negros. Abdias do Nascimento nomeou de genocídio do povo negro; Achilles Mbembe fala em política da inimizade. Podemos dizer que é uma política pública desconectada do sentido de democracia, de cidadania e de proteção dos direitos humanos: a política da barbárie.
A Constituição Federal prescreve que constitui objetivo fundamental “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Não se concebe democracia e justiça social com a regressão de políticas de Estado, por ser ele quem consegue ampliar e estabelecer condições estruturais de reeducação e inclusão de adolescentes do Sistema Socioeducativo, bem como combater as violências estruturais do racismo, que marginaliza o acesso a bens e serviços de tantas pessoas.
ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2024. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ano 18, 2024. Disponível em: 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública: 2024. Acesso em 4 fev 2025.
MDHC. Crianças e Adolescentes, 4/12/2023. Disponível em: Após 6 anos sem levantamento, dados sobre a Política Nacional de Atendimento Socioeducativo são divulgados pelo MDHC — Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Acesso em: 4 fev 2025.