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Judiciário

Ministra Maria Elizabeth Rocha: “Quebrei o teto de vidro ao ser eleita”

A futura presidente do STM pretende implementar ações que ampliem a presença feminina no Judiciário. Após o “doloroso” processo eleitoral entre os pares — episódio inédito na Corte —, ela confia nos méritos pessoais para presidir a Casa

A ministra Maria Elizabeth Rocha toma posse nesta quarta-feira como a primeira mulher eleita para exercer a presidência do Superior Tribunal Militar (STM). Única presença feminina em 217 anos de história de uma Corte integrada por 14 homens, a mineira de Belo Horizonte está acostumada a divergir e ser a voz dissonante no plenário. Como presidente do STM, pretende dar mais voz às minorias e ampliar o espaço de poder às mulheres. 

Nomeada pelo presidente Lula em 2007, a ministra completou 18 anos no STM neste sábado (8/3), Dia da Mulher. Sua posse marcará a diferença. Enquanto as solenidades ocorrem na área aberta em frente ao prédio do STM, com toldos montados para a ocasião, Maria Elizabeth vai assumir em evento que ocorrerá na recém-reinaugurada Sala Martins Pena, no Teatro Nacional. Valores como transparência, diversidade e defesa da democracia, pilares que a ministra pretende imprimir no tribunal.

A programação inclui a apresentação de artistas que reforçam o prestígio à diversidade que o mandato focará. Um dos destaques é a soprano brasiliense Aida Kellen, que entoará a versão em português do Hino Nacional. O nosso hino será cantado também em língua Tikuna, por Djuena Tikuna, cantora indígena brasileira nascida no Alto Solimões. Maria Elizabeth assume depois de uma eleição, em 5 de dezembro de 2024, que rachou o plenário. Foram sete votos a seis, quando tradicionalmente nunca há disputas.

A ministra culpa o patriarcado que leva o Judiciário brasileiro a um perfil de magistrados majoritariamente de homens, brancos, heterossexuais, de classe média. “Não vou negar, foi doloroso”, diz. Mas a ministra confia na formação profissional e no compromisso com a legalidade para enfrentar as adversidades. A presidente do STM tem uma visão particular do premiado Ainda estou aqui. O cunhado dela também foi vítima de torturadores, assim como o deputado Rubens Paiva. “A ditadura não escolhe as vítimas”, diz. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Qual é o significado da sua chegada à presidência do Superior Tribunal Militar (STM), a primeira mulher a ocupar o cargo?

Eu acho que é a ascensão das mulheres. Foi uma vitória de todas as mulheres que ainda têm muitas dificuldades em ascendermos espaços de poder. Eu costumo dizer que quebrei o teto de vidro. Mas não é um teto, é uma casa inteira. São paredes, janelas, portas que são colocadas a nós, mulheres, de forma que nós não possamos ingressar ainda em espaços ocupados prioritariamente pelos homens. Então, nesse sentido, eu acho que a minha posse representa uma vitória do feminismo e do feminino. E é isso que eu vou buscar, focar dentro da minha gestão como presidente do STM, priorizar segmentos minoritários, afinal de contas eu sou a única mulher da Corte em 218 anos, outras poderiam ter vindo e não vieram, porque não foram indicadas. Então, eu procuro, como sempre digo, ser a voz não apenas das mulheres, mas das minorias que ainda são invisibilizadas e silenciadas dentro de um Estado androcêntrico e patriarcal.

Por que mais vagas em tribunais superiores precisam ser ocupadas por mulheres?

Para que o princípio da isonomia se efetive. A ideia da equidade, prevista na Carta Política, é uma garantia que está apenas formalizada na letra da lei. Não tem se efetivado nem se concretizado na prática. Então, é fundamental pelo menos que se preserve os assentos femininos que já existiam — porque a ideia seria aumentá-los. O que nós estamos vendo, lamentavelmente, é que eles estão cada vez mais diminuindo. Tenho pedido ao presidente Lula, como mulher, como magistrada, ao presidente que me indicou, que faça isso pelas minhas colegas que também estão aguardando uma possibilidade de integrar o Poder Judiciário e, muitas vezes, têm assuas ascensões obstruídas simplesmente por uma questão de gênero. (O presidente Lula indicou ontem a advogada Verônica Abdalla Sterman para a vaga remanescente no STM).

Que medidas efetivas a senhora enxerga para reduzir esse teto que impede a ascensão das mulheres em cargos de liderança?

A adoção de políticas públicas afirmativas. Isso é fundamental. E eu dou dois exemplos básicos dentro do Poder Judiciário. A resolução 255, que é a resolução da paridade, que implementou a promoção de mulheres desembargadoras do Tribunal de Justiça, do Tribunal Regional Federal, por merecimento, porque por antiguidade isso não é possível; e também o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Participei de ambas as construções e são medidas inclusivas, exatamente para que, nos julgamentos, o olhar de gênero seja privilegiado pelo magistrado e que as promoções busquem a paridade. E quando eu falo em paridade… A resolução diz em 40, 60, no mínimo. Então, não é exatamente uma paridade, mas é um começo. Da minha parte, é o que eu tentarei fazer aqui também. Eu vou criar uma assessoria de gênero, raça e minorias. E buscar trazer a diversidade para dentro de casa, porque não basta apenas falar. É preciso fazer.

A senhora atua num tribunal tradicionalmente masculino. É a única mulher no plenário. Na sua eleição, houve uma quebra de tradição. Em todas as eleições há consenso, mas, na sua vez, teve uma disputa. Como a senhora se sentiu?

Eu me senti quebrando todos os obstáculos. E é como eu digo, eu quebrei o teto de vidro. Mas os estilhaços não caíram sobre mim. Caíram sobre uma sociedade patriarcal e que estigmatiza seres humanos. Eu me sentia incluída no tribunal e descobri que não era. E mais do que isso, descobri que também não era tolerada. Porque eu ganhei por um voto e ganhei pelo meu voto. E eu costumo dizer que não foi o meu voto, mas o voto de todas as mulheres que são preteridas, segregadas, estigmatizadas dos cargos públicos, das possibilidades de acesso e das chances de ascensão. Eu esperei 18 anos para me tornar a presidente desta Casa. E quando chegou a minha vez de disputar uma eleição que praticamente é um referendo em todos os tribunais, porque a tradição é a antiguidade, comigo essa regra não prevaleceu. Estou aqui lutando pela nova geração de mulheres, por aquelas que virão depois de nós, porque, afinal, eu tenho certeza de que as minorias continuarão lutando, mas que as lutas sejam outras. Não é possível que as lutas que eu estou lutando hoje sejam as mesmas que as jovens mulheres lutarão no futuro.

Pensou em desistir?

Eu nunca desistiria de disputar essa eleição. Eu perderia no voto, mas não desistiria porque penso que nós, mulheres, não temos o privilégio de desistir de nada. Temos o compromisso da sororidade. Por isso é que eu busco uma outra mulher para esta Corte. Por isso eu clamo ao presidente Lula que indique uma outra mulher e nós temos que abrir caminho às gerações futuras. É a nossa missão, o nosso dever, o nosso compromisso. 

Acredita que pode ter algum tipo de problema na presidência depois desse embate da eleição?

Eu terei dificuldades, com certeza, porque um presidente pode muito, mas não pode tudo. Mas eu também conto com o apoio de sete homens que votaram em mim. Eu não cheguei sozinha, cheguei com o apoio das mulheres, inconscientemente e no coletivo, e cheguei também com o apoio de sete homens que votaram em mim e me elegeram. Sei também que tenho aqui ministros filógenos, com quem posso contar com o apoio. E eu, com certeza, farei uso deles, porque eu necessito. Não somos sós, vivemos numa sociedade. E para que possamos extirpar essas segregações, precisamos, homens e mulheres, trabalharmos juntos. Sozinhas, as mulheres não conseguem nada; unidas conseguem muito. Com os homens, conseguirão tudo.

A que a senhora atribui esses votos contrários?

Ao patriarcado, claramente. Um estudo estatístico indica que o Poder Judiciário pátrio é formado majoritariamente por homens, brancos, heterossexuais, de classe média. Esse é o perfil da magistratura brasileira. E como eu exerci o mandato-tampão, eu acho que no inconsciente daqueles que votaram contra mim, eu já havia sido contemplada com a presidência. Só que não é bem assim. A Loman, que é a Lei Orgânica da Magistratura, dá direito ao magistrado que exerceu o mandato-tampão, que foi o meu caso, de exercer a magistratura plena de dois anos. Então, eu tenho para mim que o fato de eu ser mulher, de pensar diferente, de não me render a uma unidade, tudo isso contribuiu para que houvesse, vamos dizer assim, oposições à minha eleição.

Como vê o debate sobre a trama golpista envolvendo militares?

Como todo brasileiro, vejo com muita preocupação. Felizmente, o golpe não se consumou. E, justiça seja feita, não se consumou em razão de as Forças Armadas não terem aderido. À exceção do almirante Garnier, que foi denunciado, o Alto Comando da Marinha sequer tinha conhecimento dessas conjecturas, dessas conjurações. O Exército e a Aeronáutica se opuseram firmemente. Mas a grande lição que fica é que a democracia é e sempre será um projeto inacabado. É um pacto intergeracional que nós temos que cuidar, que temos que zelar. Como diz um grande amigo, quando a democracia se despede, ela não costuma dizer adeus. E nós só nos damos conta de que ela foi embora quando ela já partiu. Então, é necessário estar atento. A vigilância tem que ser permanente.

O que pensa da anistia defendida pelos golpistas?

Com relação a da anistia já, eu reconheço que algumas penas que estão sendo impostas são muito elevadas. Mas, acho que ainda é um pouco precipitado se falar em anistia, na medida em que nem os réus todos foram julgados. Não há ainda um julgamento de todos os autores e todos os perpetradores dos delitos no 8 de janeiro. Então não é o momento para se discutir esse tipo de benesse estatal.

A senhora estava aqui no 8 de janeiro?

Eu estava em Brasília. Coincidentemente, era aniversário do meu irmão. E eu estava em casa, com o meu irmão, com a minha família. Só à noite, quando liguei os noticiários, é que tomei conhecimento do que havia ocorrido. O mais terrível de tudo isso é que, quando revi as cenas de destruição, um ano depois, me horrorizei mais até do que no momento em que assisti. Num primeiro momento, o que me pareceu foi uma baderna. Só mais tarde, tomando conhecimento dos fatos, com as denúncias sendo oferecidas, enfim, e com as informações sendo descortinadas pela imprensa, é que eu me dei conta do que realmente se tratava. E eu, cada vez que vejo, me horrorizo. Quando eu penso naquele Di Cavalcanti maravilhoso, esfaqueado 10, 15, sei lá quantas vezes, aquela destruição de obras de arte…

Se fosse uma pessoa, teria morrido.

Sim. Mais do que um golpe, foi uma tentativa de aniquilação do Estado. Quando destruíramos Três Poderes, o que se queria, ao fim e ao cabo, não era nem um golpe. Queria-se aniquilar o Estado brasileiro. Eu nem diria anarquia, porque eu sempre vi os anarquistas com bons olhos, pelo menos quando li Zélia Gattai. E eu pergunto: fora do contrato social, qual é a saída? Qual a possibilidade civilizatória que nós temos? Nenhuma. O Estado ainda é a melhor garantia de sanidade das sociedades políticas bem ordenadas. Ele tem suas falhas, seus erros, merece correções. Mas não vejo, como constitucionalista e magistrada, outra alternativa fora do contrato social, fora do que a Constituição determina. 

Chegamos bem perto de perder o Estado de Direito?

Não chegamos bem perto porque as Forças Armadas não aderiram. Mas que corremos um sério risco, isso não tem a menor dúvida.

Chama muito a atenção, nesses episódios recentes e até na história do Brasil, a politização das Forças Armadas. Com a senhora enxerga essa questão?

Como um desvio de finalidade de agentes públicos, porque política e atividade militar não combinam. A política não pode invadir os quartéis. Quando a política entra nos quartéis, a hierarquia e a disciplina se comprometem. E foi exatamente isso que nós vimos. Eu até acho que muito dessa politização foi um locupletamento do Estado. Porque, na verdade, o presidente Bolsonaro não tinha uma base parlamentar de apoio. E ele chamou os militares para comporem o seu governo. Aqueles militares se aproveitaram dos cargos, se aproveitaram da situação e dos privilégios que obtiveram. Eu não vejo as Forças Armadas como oportunistas, muito pelo contrário. Eu vejo as Forças Armadas como agentes públicos que defendem a pátria.

Os militares estão sendo julgados no Supremo. O que vai ser tratado pelo STM?

É necessário que se identifiquem, para além dos crimes comuns (atentado ao Estado Democrático, de violação, de ruptura violenta do Estado de Direito), crimes que só um soldado pode cometer. Por exemplo, ofensas ao oficial superior. Isso aconteceu muito (na trama golpista). Os comandantes, o comandante do Exército, foi ofendido. Então, nesse sentido, se o Ministério Público Militar oferecer uma denúncia, nós julgaremos. E aí vai correr em paralelo aos julgamentos que estarão sendo realizados pelo Supremo Tribunal Federal.

Qual sua opinião sobre a revisão da Lei de Anistia no que se refere aos crimes permanentes cometidos na ditadura?

Eu já me manifestei várias vezes sobre isso. Sempre entendi que a Lei de Anistia não foi recepcionada pela Carta de 88 e que, mesmo se tivesse sido, ela estaria em tese revogada pelo novo status jurídico que os tratados internacionais de direitos humanos receberam por exegese do Supremo Tribunal Federal. Agora, cumpre ao Supremo fixar a sua própria jurisprudência, porque, na verdade, o Supremo vaie vem. Uma hora, em 2010, posicionou-se de uma maneira; hoje tem se posicionado de outra. Isso também é algo que me preocupa, porque gera uma instabilidade jurídica muito grande. Foi exatamente o que aconteceu com a prisão de segunda instância. Eu sempre fui contra se prender alguém antes do trânsito em julgado. Isso estava literalmente, taxativamente prescrito no Código de Processo Penal. E o Supremo relativizou a norma, voltou atrás. Então, isso também gera uma instabilidade jurídica muito grande.

Do que se trata a discussão da anistia, então?

Não se trata de discutir a questão da constitucionalidade, da validade da Lei da Anistia, mas do que o próprio Supremo julgou antes e que agora está revendo a sua posição em um curto espaço de tempo. Eu até entendo que o Supremo evolui. Mas a segurança jurídica e os princípios têm que ser salvaguardados. Então, eu sempre tive esse posicionamento sobre a Lei da Anistia, desde antes, desde muito antes de o Supremo se pronunciar, mas agora é esperar para ver como é que ele vai decidir.

A senhora viu Ainda estou aqui?

Vi.

O que mais chamou a sua atenção? O que a emocionou?

Saí com lágrimas nos olhos, a sala de cinema aplaudiu. E eu tenho uma história muito parecida dentro da minha de casa, porque eu tenho um cunhado (Paulo Costa Ribeiro Bastos) que é desaparecido político. Filho de um general e irmão de um outro general. Então, é uma história triste.

Ele era irmão do seu marido?

Irmão do meu marido (o general de divisão Romeu Costa Ribeiro Bastos), cujo pai também era general. A ditadura não escolhe as vítimas. Uma pessoa foi torturada, jogado o corpo no mar, e isso causa sequelas à família até hoje. Mas também é preciso olhar para frente, tentar superar a dor. Eu entendo que é muito complicado. Você não tem o direito de enterrar seus mortos. É o dilema de Antígona. Não enterrar os mortos é uma lacuna, que talvez a covid até tenha reavivado a nossa memória. Porque muitos deles não puderam nem enterrar as pessoas queridas que faleceram na pandemia. Então, é um processo muito doloroso.

A senhora chegou a conhecê-lo?

Não. Ele morreu com 27 anos. Existe uma diferença de idade entre mim e o meu marido relativamente grande, de duas décadas, então eu não conhecia.

Como foi o caso dele?

Ele foi preso no Rio de Janeiro, no bairro da Urca, e desapareceu. Meu marido já era militar, era muito jovem. Saiu buscando nos porões onde é que o Paulo poderia estar. E deram a mesma desculpa que deram para a família do Rubens Paiva, de que ele tinha fugido do país, que tinha ido para o Chile. Quando na verdade não foi isso. Anos depois, esses torturadores que capturaram o Paulo, o torturaram e jogaram o corpo ao mar foram presos numa operação de tráfico de armas. Aí chamaram meu marido e contaram a ele a verdade.

O que é ser mulher no Brasil de hoje?

Ser mulher no Brasil e no mundo é lutar pelo empoderamento, pela sororidade, pela ampliação dos espaços de poder, pelos caminhos que são muito mais estreitos do que os nossos pares do sexo masculino. E a maior prova disso é de que as primeiras mulheres são sempre aquelas que são lembradas. A presidente do México, por exemplo, é a primeira mulher a ser eleita. A presidente Dilma, a primeira mulher a ser eleita no Brasil, em tantos séculos de história. Então, ser mulher é enfrentar desafios, é enfrentar dificuldades. Mas é, antes de tudo, não desistir. Desistir não é uma opção.

A senhora precisou participar de uma eleição para ser referendada. Como se sentiu?

Não vou negar, foi doloroso. Com toda franqueza, eu não esperava. Mas foi o que me coube. Então eu lutei, e lutei mesmo com todas as armas. O que me emocionou profundamente é que, depois que venci as eleições, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ligaram para o meu celular, dizendo que estavam felicíssimos com a minha eleição. Então, isso significa também que as mentalidades estão mudando. E agora me cabe o desafio de gerir uma Corte de Justiça. Nós sempre somos as vanguardistas. Esse mundo de vanguardismo tem que acabar. Não tem sentido isso. Eu só me lembro da filha de uma amiga que veio aqui me visitar, uma menininha de 15 anos. Quando passou pela galeria dos retratos e viu todos aqueles homens, minha amiga falou: “A tia Beth é a única mulher desse tribunal”. A menina olhou e falou: “Que horror!”

Quais políticas de inclusão a senhora pretende implementar no STM?

Estamos implementando, até em função das determinações do CNJ, uma série de políticas de inclusão. Vou dar vazão aqui ao que o CNJ já mandou fazer e que muitos tribunais não adotam. É a questão da isonomia em razão da etnia, da raça, da orientação sexual, da questão do gênero feminino. Temos hoje uma comissão para tentar conter o assédio sexual e o assédio moral dentro dos tribunais. E uma série de outras garantias que são importantes e estão sendo rigorosamente observadas pelo Conselho Nacional de Justiça.

Isso se estende a refugiados?

O Brasil é signatário de todos os tratados de direitos humanos que a comunidade internacional elabora. Mais do que isso, nós internalizamos esses tratados. No entanto, eu quis trazer aqui uma migrante e uma refugiada venezuelana, duas intelectuais de alto rendimento, para trabalharem junto comigo e promover a inclusão. Mas a lei veda os que não são nacionais — não importa se foi nacionalizado brasileiro. Eles não podem ocupar um cargo comissionado no Poder Judiciário. Agora pergunto: o primeiro direito humano que um refugiado tem é direito ao trabalho, mas o Estado não autoriza chamar essas pessoas a trabalhar. Pessoas que deixam suas histórias, suas lembranças, suas memórias, suas fotografias, sua língua para recomeçar tudo no outro país e não tem sequer o direito de trabalhar porque o Estado veda… Isso é uma coisa absurda.

A Lei do Feminicídio completa 10 anos, com alta de 1.600% dos crimes. São 12 mil feminicídios em 10 anos. E, mais recentemente, a pena foi ampliada para 40 anos, mas que medidas efetivas a gente pode tomar?

Eu sou uma juíza penal. E uma coisa aprendi nesses 18 anos. O criminoso não se intimida como excesso da pena. É lógico que o tipo penal tem que existir. É lógico que a punição tem que ser aplicada. Não vai se deixar um criminoso, ainda mais um homicida, impune. Mas a questão é que não basta apenas o rigor penal. É preciso o letramento, é preciso educar as jovens, os jovens e as novas gerações, mostrar que o respeito à mulher, o respeito à diferença, é fundamental para um Estado Democrático. É um clichê por ser necessário repeti-lo tantas vezes, mas a educação é primordial. Temos que educar as novas gerações a não serem vis com o seu semelhante, sobretudo com as mulheres, porque é aviltante a maneira como as mulheres são tratadas pelos homens que se julgam donos delas.

Onde está a raiz do feminicídio?

A questão dos feminicídios é o sentimento de propriedade masculina sobre a mulher. Não é o amor que mata. Aliás, eu sou da época da Ângela Diniz. Sou mineira de Belo Horizonte. E quando a Ângela Diniz foi assassinada na Praia dos Ossos, foi a última defesa do Evandro Luiz e Silva, a legítima defesa da honra. Pois foram as mineiras, de um estado tão tradicional, tão conservador, que criaram o slogan “Quem ama não mata”. E veja bem: a legítima defesa da honra, que era utilizada nos tribunais do júri nesses rincões do Brasil, só foi abolida definitivamente por decisão do Supremo pelo ministro de Dias Toffoli recentemente. Então, veja como nós estamos atrasados em termos de respeito aos direitos humanos como um todo e desrespeito aos direitos humanos das mulheres em específico. E eu nem vou me reportar à população LGBTQIAP+, nem vou falar da transfobia, dos afrodescendentes, de outros grupos de vulneráveis que são alvejados simplesmente por serem quem são, por uma questão de identidade.

A senhora chegou a apontar essas questões em seus votos?

Eu apontei o dedo na ferida no meu voto dos 257 tiros (em dezembro, o STM reduziu drasticamente a pena de oito militares envolvidos na morte de um músico e de um catador no Rio de Janeiro. A ministra Elizabeth Rocha foi voto vencido). Porque ali teve uma questão de racismo estrutural contundente. Porque os militares, quando apontaram aqueles fuzis para o músico Evaldo (Santos) e para o catador de recicláveis (Luciano Macedo), em primeiro lugar, quando eles viram um músico negro dirigindo um carro, na cabeça deles ele deveria estar dentro de um ônibus, suado, aglomerado com um monte de gente, não dirigindo e conduzindo uma família. E oque se espera de um catador de recicláveis? Ele é um traficante. Aquele foi um herói, tentou salvar a vida do seu semelhante e foi alvejado pelas costas em razão disso. Tantas vezes, a sociedade civil reclama de que é assaltada, de que sofre uma série de agressões e que ninguém faz nada, porque as pessoas têm medo de se envolver. Quando um pobre desvalido decidiu se envolver, pagou com a própria vida. Então, é uma subversão de valores que me assombra. 

A senhora tem acompanhado críticas frequentes em relação ao custo do Judiciário. O que pensa disso?

O papel do Poder Judiciário na contenção e nos abusos dos demais Poderes é fundamental para o bom funcionamento do Estado. Não se vive sem o Poder Judiciário. Então, você não pode quantificar o Poder Judiciário, em termos, vamos dizer assim, financeiros. As carreiras de Estado têm que ser bem remuneradas. Isso não significa que eu seja a favor de penduricalhos jurídicos. Não sou. Existe um teto e esse teto tem que ser observado. É um teto elevado? Não tenho a menor dúvida. Sobretudo se comparado com o salário mínimo. Mas o fato é que o papel do juiz em uma sociedade é relevante, é importante. O Judiciário é o último refúgio para o cidadão. Quando o Estado falha em todas as suas latitudes, é na porta do Judiciário que o cidadão vem buscar auxílio, vem buscar socorro.

Mas a crítica que se faz não é ao teto, e sim ao extrateto…

É uma inconstitucionalidade e tem que ser podado. Para isso existe o Conselho Nacional de Justiça. Se há extrateto, não pode prevalecer. 

No final do ano, houve magistrados com rendimentos de R$ 400 mil. Houve, nós inclusive. Agora, o que aconteceu naquele momento?

Aquilo foram parcelas que não tinham sido pagas ao longo de anos e que o CNJ, somente no final do ano, autorizou. Então, foram se acumulando aquelas parcelas e acabou dando um montante de 200, 300 mil, exatamente porque elas foram postergadas durante anos e eram devidas. O CNJ demorou muito a se pronunciar. O Ministério Público já havia pago há muito tempo essas parcelas. E todos os tribunais superiores receberam. O STJ, o STF, acredito também que alguns Tribunais de Justiça. É como se fosse um precatório. Se o Estado te deve e não te paga, quando finalmente o juiz bate o martelo e fala que a dívida é tanto, essa dívida é corrigida. E você já pode executar porque não há mais como recorrer daquela decisão.

Como a senhora acha que a sociedade vê isso?

Eu acho isso péssimo. Quando a sociedade civil vê aqueles valores — e isso é tudo publicado no Portal da Transparência —, ela pensa: eles são uns marajás, isso é uma imoralidade. À primeira vista é o que parece, mas eu lhe garanto que não é. Não foi assim. Foi com autorização do Conselho Nacional de Justiça, com autorização de uma série de legislações, com paridade do que o Ministério Público já tinha pago e o Judiciário não tinha recebido, e foi um acúmulo de parcelas remuneratórias que se juntaram por longos anos. Então, deram aquele montante vultoso.

A senhora já figurou algumas vezes como candidata ao Supremo. E houve um momento em que chegou bem perto. Há frustração por não ter chegado lá?

Uma professora que eu tive, que também concorreu ao Supremo Tribunal Federal, Misabel Derzi, me disse certa vez que o Supremo é destino. E acho, sinceramente, que ser presidente da Corte mais antiga do Brasil, ainda, de alguma maneira, ser a única mulher a desbravar caminho para as minhas colegas, é um privilégio que talvez eu não tivesse se tivesse sido nomeada para o Supremo Tribunal Federal. Aquino STM, eu posso levantar bandeiras que nos outros tribunais elas já foram alçadas e já foram até depois descidas. Na medida em que discutir, por exemplo, o direito à orientação sexual, à identidade, a uma série de questões, e aqui ainda é tabu. A minha ideia, inclusive, como presidente do STM, não é só me ater aos muros do tribunal, mas também sair para dialogar com as Forças Armadas. Porque, no final, a nossa clientela, os nossos jurisdicionados são os militares federais.

Há muito a ser feito?

Muito. E talvez a minha missão realmente seja aqui, para abrir caminhos. Meu pai, um advogado que sempre lutou nas tribunas criminais pelos desvalidos, e que também brigou muito pela redemocratização do Brasil, sempre dizia: “toda pessoa tem que deixar sua marca no mundo”. Acho que a minha marca está sendo aqui. Não pelo fato de eu ser a primeira mulher, também até, mas, sobretudo, por encarar lutas que são bons embates, sabe? Porque eu estou lutando por lutas justas, que eu acredito. Eu escolhi esse lado da história, eu escolhi esse lado da minha humanidade.

Como pretende agir nos próximos meses?

Da maneira como eu sou. Para isso, eu conto com uma assessoria muito capacitada, e eu me armei com o conhecimento para poder me defender. Fui primeiro lugar no meu concurso da AGU. Sou mestre com distinção pela Universidade de Lisboa, doutora com louvor pela Universidade Federal de Minas. Escrevo livros, artigos, sou professora universitária, tenho dois doutorados honoris causa. Podem até me combater, mas as minhas armas são o conhecimento. Como eu pretendo fazer tudo dentro da legalidade, acho muito difícil que consigam me combater se eu estou dentro dos limites da lei.

As críticas incomodam?

Posso até ser criticada, mas não vou ser condenada pelas minhas ações. Que me critiquem, eu aceito críticas, estou acostumada com elas. São 18 anos sendo vencida nesta Casa. E como diria o ministro Marco Aurélio (Mello), “quem não sabe conviver com a divergência não pode compor um órgão colegiado”. E mais do que isso, quem não sabe conviver com a divergência, agora digo eu, não pode presidir uma corte de Justiça. Eu não quero errar nos meus julgamentos. Agora, se eu errar, eu volto atrás. Não tenho o menor constrangimento em aceitar um erro, voltar atrás, consertar e me melhorar como ser humano.

A senhora disse que se emocionou com Ainda estou aqui. A certa altura, Eunice Paiva disse: “Vamos sorrir”. O que acha dessa frase?

A despeito de todas as adversidades, de todas as lutas, de todas as dores que todos nós sentimos, essa frase diz que é preciso ter esperança. Aquele sorriso, para mim, significa “Não vamos perder a fé”. Vamos resistir.

Fonte: Correio Braziliense

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