ENTRETENIMENTO
Gilberto Gil: mais um músico da geração dourada se despede
Com mais de 60 anos de carreira, Gilberto Gil inicia turnê de despedida. Cantor baiano segue passo de Milton Nascimento e de outros músicos de sua geração

Precedido de foguetório e contagem regressiva no telão, Gilberto Gil iniciou no sábado (15/03), na Arena Fonte Nova, em Salvador, a turnê Tempo Rei, que será a última de sua extensa carreira.
Acompanhado pela banda formada em boa parte por seus familiares, Gil tocou e cantou 29 canções, além de trechos de outras duas, durante quase duas horas e meia de show. Ele abriu os trabalhos logo com Palco, que dialoga com seu momento atual. Em seguida, cantou Banda Um, seguida por Tempo Rei, que dá nome à turnê.
“É lindo vocês aqui, eu e os nossos queridos músicos fazendo esta noite, este repertório, nessa despedida dos grandes espetáculos que já venho fazendo há mais de 60 anos”, disse Gil no palco. “Estarmos aqui juntos é o sentido profundo de ter me dedicado, de nós termos nos dedicado, a essa longa carreira”, disse ao público.
Exatos 60 anos antes, em 15 de março de 1965, Gil estava no palco em outra despedida. Foi no show Inventário, no Teatro Vila Velha, em Salvador, antes de sua partida para São Paulo. Para aquele show, compôs Eu vim da Bahia, que traduzia seu sentimento de partir e ter vontade de voltar.
“Sinto nele um homem realizado e com uma sensação de dever cumprido”, diz o cineasta José Walter Lima, que assistiu o show Inventário há 60 anos, sobre o amigo Gilberto Gil.
Na Fonte Nova, Gil tocou Eu vim da Bahia enquanto o telão mostrava imagens de Dorival Caymmi e João Gilberto, seus ídolos e influências evidentes para a canção.

Geração dourada da música inicia saída de cena
Enquanto Gil abria sua última turnê, seus irmãos musicais, os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia, se apresentavam no Rio de Janeiro. Caetano Veloso fez no ano passado a sua última turnê internacional, mas segue na ativa nos palcos brasileiros, e diz que tem vontade de morar em Salvador e só fazer shows no Teatro Vila Velha, onde tudo começou.
Em 2022, Milton Nascimento fez sua turnê de despedida definitiva dos palcos. Seu parceiro musical, o nova-iorquino Paul Simon, fez a sua Farewell Tour em 2018. Mas no mês passado, o cantor e compositor que formou dupla com Garfunkel voltou atrás e marcou uma nova turnê. Todos são artistas da mesma geração de Gilberto Gil, que nasceram na década de 1940 e começaram a brilhar profissionalmente nos anos 1960.
“A profissão de artista é para sempre na vida porque você tem a compulsão de criar”, explica o cantor, compositor e crítico Paquito. “Quando ele volta atrás é porque tem a compulsão de criar. Criar é como se você fosse Deus”, diz o compositor.
A discografia de Gil começou com um compacto simples lançado em 1962, em Salvador, pela JS Discos. São, portanto, 63 anos de carreira. Tom Jobim, por exemplo, um dos faróis para a geração de Gil, tinha 67 anos de idade quando faleceu.
“A música brasileira desse período é uma coisa que a gente tem que se orgulhar muito”, diz Paquito, que no fim dos anos 1990 coproduziu um disco do sambista Batatinha com participação de Gil. “Eu vi Gil em ação. Foi interessante porque eu perguntei se ele viria com outros músicos, mas ele disse que iria sozinho com o violão”, conta. “Essa interação que Gil faz entre o violão e a voz é sublime.”

Outro ritmo
No palco da Fonte Nova, Gil tocou guitarra, mas também esteve com seu violão, como em Se eu quiser falar com Deus, acompanhado por um quarteto de cordas, um dos pontos altos da noite.
“Foram vários os elementos que ponderei para chegar na decisão da realização de uma última turnê. Houve reflexão sobre este mercado e também sobre a exigência física necessária para esses grandes shows”, disse Gil no site oficial da turnê. “Quero continuar fazendo música em outro ritmo, mas, antes, teremos essa celebração bonita junto do público e da família. Transformai as velhas formas do viver”, completou Gil, citando um verso da sua canção Tempo Rei.
Da mesma geração dourada dos anos rebeldes, Paul McCartney não fala em parar de fazer turnês e prometeu um disco novo para esse ano. Outro daquela leva, Chico Buarque também segue na ativa, e apareceu no telão da Fonte Nova contando sobre sua parceria com Gil na música Cálice, que foi censurada pela ditadura militar.
Enquanto Chico falava no telão, o público no estádio puxou o coro de “sem anistia”, numa referência ao movimento que busca a anistia aos responsáveis pela tentativa de golpe de Estado e invasão da sede dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023.
Quando Gil começou a cantar a canção, imagens de vítimas da repressão durante a ditadura eram mostradas no telão, entre elas a do ex-deputado Rubens Paiva, que foi ovacionado.
Ainda durante Cálice, fotos de Gil e Caetano quando estavam presos pela ditadura mexeram com o público, que os aplaudiu e voltou a puxar o coro de “sem anistia” para os golpistas.
Emoção, convidados e encontro de ministros
Logo nos primeiríssimos momentos de Não chore mais, versão de Gil para No woman, no cry, de Bob Marley, o público já começou a vibrar. O reggae jamaicano e a Fonte Nova têm história antiga na vida de Gilberto Gil. Em 1980, Gil foi um dos pioneiros em shows em grandes estádios de futebol ao se apresentar com Jimmy Cliff na Fonte Nova.
“Creio que o primeiro artista que fez show num estádio no Brasil foi Frank Sinatra, no Maracanã. E o primeiro artista brasileiro foi Gilberto Gil, na sua turnê junto com Jimmy Cliff”, diz José Walter Lima, que foi um dos produtores daquele show em 1980.
Na vez da música Realce, o telão mostrava purpurinas virtuais para combinar com o verso “Quanto mais purpurina, melhor”, enquanto um show pirotécnico com labaredas reais fazia o público das primeiras fileiras sentirem o calor das chamas.
Em mais um momento marcante da noite, Gilberto Gil disse que o show era para todos, mas especialmente para sua filha, Preta Gil, que estava na Fonte Nova. Depois, começou a cantar Drão, canção que ele fez para sua ex-mulher Sandra, mãe de Preta.

Em 1967, conhecer a Banda de Pífanos de Caruaru mexeu com a cabeça e as ideias musicais de Gil, influenciando o que viria a ser a Tropicália. Em 1972, ele gravou Pipoca moderna, do grupo pernambucano, em seu disco Expresso 2222, o primeiro após a volta do exílio.
Na noite que marcou o início do fim na Fonte Nova, o instrumental de Pipoca Moderna – que em 1975 ganhou letra de Caetano Veloso – foi tocado no palco enquanto Gil trocava de instrumento para poder tocar a canção Expresso 2222.
“Gil, para mim, dos compositores, é o que tem mais atributos”, diz Paquito. “Ele é um excelente cantor, um excelente violonista, ele tem uma noção de ritmo absurda, ele é um harmonizador também absurdo, ele também é um excelente band leader”, enumera o crítico. “É um super letrista também. As pessoas não falam tanto disso porque essa coisa da música em Gil é muito exuberante.”
Para cantar com ele a canção Emoriô, Gil recebeu no palco o vocalista da banda BaianaSystem, Russo Passapusso. Em seguida, a cantora Margareth Menezes se juntou aos dois em Toda menina baiana, promovendo um encontro entre ela, atual ministra da Cultura, e Gil, que esteve no comando da pasta entre 2003 e 2008.
No bis, Gil tocou Aquele abraço, música que compôs quando estava de partida para o exílio, e que na noite de estreia da turnê Tempo Rei teve a letra ligeiramente alterada para agradecer ao público: “pra você que não me esqueceu: aquele abraço”.
O abraço seria o último momento da noite, mas Gil ainda aproveitou que a banda tocava o instrumental de Na Baixa do Sapateiro, voltou ao palco para entoar o verso “Ô, Bahia” e terminou o show dançando animado, aos 82 anos, rei de seu próprio tempo.