Internacional
Com megamanobra, Otan simula conflito bélico na Europa
Coordenada pela Alemanha, manobra militar Air Defender 23 ocorre ao longo de 11 dias no espaço aéreo europeu, como sinal de advertência a Moscou
Após quatro anos de preparativos, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) iniciou oficialmente nesta segunda-feira (12/06) o maior exercício aéreo de sua história, com a participação de 250 aeronaves – 100 delas vindas dos Estados Unidos – e 10 mil soldados de 25 países. A operação se estende até 23 de junho e tem a Alemanha como centro logístico.
Em entrevista à DW, o tenente-general Michael A. Loh, diretor da Guarda Aérea Nacional dos EUA, que integra a operação, explicou: “Air Defender 23 é um exercício de prontidão em ampla escala sobre como fornecermos poder aéreo para a Europa. Os anfitriões da Aeronáutica alemã querem testar nossa capacidade de nos reunirmos e nos tornar totalmente interoperacionais.”
Apesar de as manobras de desenrolarem em plena guerra na Ucrânia – invadida pela Rússia em 24 de fevereiro de 2022 e candidata a filiar-se à Otan – a Alemanha enfatiza que a ideia data do ano 2018, e que quer evitar um agravamento das tensões com Moscou.
“Estamos fazendo de tudo para assegurar que não tenha um efeito de escalada”, declarou à RBB Inforadio o inspetor da Força Aérea e mais alto piloto da hierarquia militar alemã, tenente-general Ingo Gerhartz. Por exemplo: “Não faremos nenhum voo na direção de Kaliningrado.”
Por outro lado: “É bom mostrarmos que somos fortes, que somos capazes de nos defender, de emitir um sinal muito claro: o território da Otan é simplesmente a linha vermelha, estamos preparados para defender cada centímetro deste território,”, frisou Gerhartz, destacando também o papel fundamental da Alemanha na manobra. “A Alemanha está se erguendo e assumindo responsabilidade.”
E se a Alemanha estivesse sob ocupação?
Como é de praxe nas grandes manobras militares, a Air Defender 23 se orienta por uma situação fictícia, porém o mais realista possível. No caso, trata-se de uma resposta ao ataque a um dos países-membros da aliança militar. O portal de notícias alemão Tagesschau.de descreve assim o roteiro:
“Uma aliança militar do leste, com o nome inventado ‘Occasus’, já domina partes da Alemanha, e agora pretende também ocupar o porto de Rostock com tropas especiais. As forças aliadas tentam vencer essa ofensiva.” Além disso: “A população está debilitada pela pandemia de covid-19, as reservas de energia estão se esgotando, o inimigo realiza operações de sabotagem.”
“Tudo isso foi desenvolvido nos últimos dois anos como roteiro”, prossegue Tagesschau.de. “A Rùssia não é mencionada expressamente com uma sílaba sequer, e a Otan tem enfatizado repetidamente que a megamanobra tem caráter puramente defensivo, não é voltada contra Moscou.”
Previstos distúrbios no tráfego aéreo comercial
O treinamento provocará bloqueios temporários à aviação civil em três zonas do espaço aéreo alemão: no litoral norte e nas regiões leste e sudoeste. Esse deverá ser um dos maiores desafios do exercício, já que essas áreas fazem parte das rotas mais usadas pela aviação civil em todo o mundo, e seu impacto sobre o setor ainda é incerto.
Gerhartz disse esperar que voos comerciais não sejam cancelados, mas não descartou atrasos em pousos e decolagens. Do lado empresarial, a mesma expectativa foi reforçada pela associação europeia de linhas aéreas Airlines for Europe. Não prevendo cancelamentos, a entidade minimizou o impacto de eventuais atrasos, mas não descartou maiores inconveniências para os passageiros.
O especialista em tráfego aéreo Clemens Bollinger ressalta que, diferentemente do que acontece em outros países europeus, controladores aéreos civis e militares já trabalham juntos na Alemanha há 30 anos, justamente pelo fato de o tráfego no espaço aéreo alemão ser intenso.
Segundo ele, na França é comum militares interditarem para a aviação civil zonas inteiras, mas isso não ocorre na Alemanha. “Só a experiência e a perícia dos técnicos, sozinha, não basta para garantir pontualidade”, destaca Bollinger, ainda mais num momento em que o tráfego aéreo no espaço europeu retorna a patamares similares aos de antes da pandemia: “Há muitos fatores que podem gerar atrasos, como temporais, outros eventos climáticos ou congestionamento [do espaço aéreo].”
Manutenção de rotina aérea também é sinal à Rússia
“Ao optar por realizar o exercício militar paralelo ao tráfego aéreo regular de civis, a Otan envia uma mensagem política à Rússia”, sublinha Toben Arnold, do Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP). “Obviamente é uma sinalização clara no sentido de demonstrar, mesmo com um espaço aéreo super frequentado, a prontidão e disposição de defender o território da aliança.”
O tenente-general Gerhartz explica que os exercícios incluem simulações também em terra, como a evacuação a partir de aeroportos – cenário, ao que tudo indica, incluído após as cenas de caos no aeroporto de Cabul com a tomada do Afeganistão pelo Talibã em 2021, quando os Estados Unidos e países aliados encerraram suas operações no país.
Outros roteiros simulam o apoio a tropas terrestres, batalhas aéreas e a neutralização de foguetes de médio alcance. Para essa última missão, os militares americanos enviarão o mais moderno caça da Otan, o bombardeiro furtivo F-35. No Mar do Norte também será treinada a defesa contra submarinos e navios, acrescenta Arnold.
Megamanobra coincide com contraofensiva ucraniana
Apesar de muitos associarem o exercício à invasão da Ucrânia pela Rússia, Gerhartz, da Força Aérea alemã, não fez nenhuma menção aos russos durante a apresentação da Air Defender 23 à imprensa em Berlim.
Coube à embaixadora dos Estados Unidos na Alemanha, Amy Gutmann, tomar a iniciativa de citar nominalmente o presidente russo, Vladimir Putin, na ocasião, frisando que “preparar-se e prevenir-se nunca foi tão importante como hoje”.
O exercício da Otan pode ter efeitos colaterais nem tão indesejados assim: o de desafiar uma inteligência militar russa dividida entre estudar o treinamento e lidar com uma contraofensiva ucraniana cada vez mais intensa no sul e no leste do país.