Nacional
Justiça Eleitoral no jogo político
Na atual conjuntura, a Justiça Eleitoral parece estar ‘fazendo seu trabalho’ ao atuar com grande protagonismo
A grande repercussão do inquérito conduzido no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em torno dos atentados contra as sedes dos Três Poderes somada à perda de direitos políticos do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR) e a decisão pela inelegibilidade de Jair Bolsonaro (PL) projetam, em escala inédita, o protagonismo da Justiça Eleitoral na política brasileira. O perfil do impacto dessas ações se distingue das intervenções tutelares voltadas para o arbitramento e a produção normativa sobre a competição eleitoral que consolidaram o lugar ocupado pelas diferentes instâncias da Justiça Eleitoral nos últimos anos.
Em um sentido, esta intervenção judiciária parece corresponder às fragilidades democráticas desencadeadas com o lavajatismo e a violência conjuntural de grupos políticos contra as instituições. Entretanto, em outro sentido, podemos apontar uma nova versão da hiperpolitização do sistema de Justiça que sedimenta-se para além de “conjunturas críticas” e reposiciona o Judiciário no jogo político.
A controversa noção de “judicialização da política” aparece desde a segunda metade do século 20 na ciência política para tentar explicar o fenômeno de crescimento da importância do poder Judiciário no sistema político, em especial dos tribunais superiores. Nesse quadro, diferentes abordagens apontam os limites e virtudes do Judiciário como um poder contramajoritário capaz de desconstituir decisões de governo e influenciar no direcionamento de políticas públicas. Na base dessa discussão destacam-se mecanismos institucionais como o controle de constitucionalidade que confere às cortes a prerrogativa de dizer a última palavra sobre a “adequação às regras” de decisões governamentais, de atos legislativos e, nos anos mais recentes, de julgar as regras do jogo político-eleitoral.
A tutela judicial da competição político-eleitoral é um fenômeno global do mundo democrático. Desenvolve-se e adquire legitimidade no sistema político impulsionada por reorientações estratégicas dos próprios grupos políticos. Nesse quadro, as regras eleitorais confundem-se, incrementalmente, com as apostas políticas impulsionando a judicialização de campanhas eleitorais, e, por consequência, o protagonismo dos atores do sistema judiciário.
Na problematização geral dessa dinâmica, uma segunda dimensão que pode ser adicionada diz respeito às lógicas que envolvem as estratégias de poder das elites judiciárias. No caso brasileiro, o ativismo dos agentes da Justiça foi o pressuposto para assegurar a base do sistema de tutela judicial, o que ocorre, também, no âmbito da justiça eleitoral. Esse modelo resultou em um volume expressivo de prerrogativas de função, em arcabouços legais robustos e na reivindicação simbólica do “controle técnico” dos processos políticos. Todos esses elementos vão além do vago princípio político contramajoritário, inerente à “separação dos Três Poderes”.
A simbologia da “supremacia da Constituição” construída nos embates em torno do sentido das suas regras é um processo que varia em diferentes conjunturas. No caso brasileiro, no imediato pós-Constituinte, entra em pauta o potencial de “mudança social” que o jogo interpretativo da regra constitucional pode proporcionar. Ao longo das décadas de 90 e 2000, as recomposições e realinhamentos políticos de diversas categorias de profissionais do direito se entrelaçam com os avanços e recuos do ativismo na jurisdição constitucional. O que é invariável nessa dinâmica é a crescente mise en forme do embate político e, ao mesmo tempo, o efeito de maior captura do sistema jurisdicional pelos embates políticos mais radicalizados, em especial nos últimos cinco anos.
Uma parte do crescimento do protagonismo político das instituições judiciais está relacionado a um investimento dos seus agentes na construção de espaços “autônomos” em relação ao campo da política representativa e eleitoral observado ao longo das mais de três décadas da Constituição de 1988. O investimento neste incremento institucional favorece a simbologia de um poder de Estado “neutro” e metapolítico (encarregado da guarda da moralidade pública). O protagonismo central nos escândalos políticos que mobilizam a simbologia redentora da persecução penal às elites políticas e empresariais fornece pistas dessa dinâmica.
A trajetória incremental da legitimidade do sistema judicial enquanto órgão de tutela dos processos políticos se entrecruza, também, com o enfraquecimento da legitimidade simbólica do Legislativo e mesmo, mais recentemente, do poder Executivo. Ou seja, o incremento das operações de (des)crédito público, com a produção midiática de sucessivos escândalos envolvendo membros dos poderes políticos em diferentes esferas contribui para a percepção de ineficiência dos políticos, em termos gerais.
Nesse sentido, a fragmentação das identidades partidárias e o enfraquecimento da legitimidade de instituições democráticas se ajustam a essa dinâmica de hiper-tutela da Justiça sobre o campo da política. Nas últimas duas décadas, em sucessivas “crises políticas”, a manipulação de regras jurídicas estiveram no centro dos escândalos políticos, seja mediante sentenças judiciais com ampla repercussão pública proferidas por juízes de primeiro grau, de decisões do Supremo Tribunal Federal ou, ainda, de denúncias do Ministério Público fortemente impulsionadas pela grande mídia e demais setores interessados.
Na atual conjuntura, a Justiça Eleitoral parece estar “fazendo seu trabalho” ao atuar com grande protagonismo como patrocinadora de uma escalada punitiva contra ameaças de ruptura do regime democrático. A questão que parece em aberto é o que resultará desse processo para o jogo político-institucional. Ou seja, o incremento da persecução penal e de restrição de direitos eleitorais será capaz de atenuar efeitos de radicalização nocivos ao sistema democrático? Ou, alternativamente, potencializará níveis de radicalização que tendem a implicar circularmente o sistema de justiça como um pólo do jogo político?
FABIANO ENGELMANN – Professor de ciência política da UFRGS
JULIANE SANT’ANA BENTO – Professora do Departamento de Direito Público e Filosofia do Direito e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRGS. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Justiça e Poder Político NEJUP-UFRGS.
Fonte: Jota