CIÊNCIA & TECNOLOGIA
Os problemas antitruste envolvendo a criação do Threads
Além de acirrar disputa entre Zuckerberg e Musk, nova rede social traz desafios para os órgãos reguladores
Neste mês, o mundo foi surpreendido pelo surgimento de uma nova rede social, de nome Threads. Rede decorrente do Instagram, mas com proposta semelhante ao Twitter de Elon Musk, Mark Zuckerberg acirrou com esse novo passo ainda mais a rivalidade que já teve até capítulos envolvendo um desafio de luta livre[1].
O mais recente desdobramento da midiática briga entre dois dos bilionários mais famosos do mundo, no entanto, também trouxe novidades e desafios para os órgãos reguladores – em especial, para as autoridades antitruste.
Mal foi anunciada a nova rede, e os advogados de Musk já correram para publicar uma espécie de notificação extrajudicial, uma carta na qual em nome do Twitter acusam a Meta de plágio[2].
Além disso, o Twitter também acusa a Meta de roubar ex-funcionários da empresa para usar seus segredos a fim de acelerar o desenvolvimento do novo aplicativo. Alega o Twitter que a referida ação violaria lei americana, uma vez que o ordenamento cria obrigações de sigilo a ex-funcionários da empresa de Musk.
Vale recordar, no entanto, que no fim do ano passado o próprio Musk promoveu uma demissão em massa na companhia. Bastante polêmico, o movimento não foi calcado em razões econômicas, mas sim por um descontentamento de Musk com os moderadores e demais funcionários considerados “ativistas” pelo bilionário, e há indicativos de que metade dos quadros do Twitter foi afetado, com a demissão de 50% de seus 7.500 empregados.
O direito antitruste já tem voltado seus olhos, por si só, às novas necessidades regulatórias a partir das Big Techs. O governo Biden nos Estados Unidos, vale dizer, já contou com duas das maiores figuras da área: Tim Wu[3], um dos arquitetos da política econômica dessa administração, e Lina Khun, atual chairwoman da Federal Trade Commission (FTC). A intersecção entre direito trabalhista e antitruste segue a mesma toada, com investigação aberta recentemente a fim de averiguar cartelização[4] e outras condutas envolvendo a intersecção das duas matérias.
Assim, a tentativa aqui é a de trazer luz às principais questões antitruste a partir da criação do Threads.
Conforme já mencionado, foi divulgada carta por parte do time de advogados do Twitter a fim de endereçar (i) plágio e (ii) contratação de funcionários anteriormente demitidos do Facebook.
Muito embora uma eventual cópia possa ser considerada plágio, fato é que, por sobre o véu do antitruste, a configuração de uma eventual sanção a partir desse ponto é nebulosa. Isso porque, em primeiro lugar, seria necessário discutir qual seria o objeto do referido plágio – o algoritmo utilizado? O design da página? O mero fato de ser uma rede social voltada a textos pequenos? E em que medida, portanto, não se poderia considerar o mesmo para outros aplicativos com funções semelhantes, como a instituição dos Reels no próprio Instagram e o TikTok.
Também é possível é possível entender ainda que comprovada uma eventual cópia não necessariamente carecerá de aplicação de sanção. Isso porque, entendendo-se que o objeto de eventual cópia não é tutelado por direitos de propriedade intelectual, ainda que esta tenha efetivamente ocorrido, certo é que não cabe atuação de qualquer autoridade. Para que haja tutela antitruste, aliás, não somente deve ser comprovada a cópia, mas, para além dela, os efeitos prejudiciais ao mercado e à concorrência.
Com relação à contratação de trabalhadores demitidos do twitter, e diferentemente do que é afirmado na carta divulgada como sendo originária dos advogados do twitter, inexiste na legislação americana (e aqui no Brasil) qualquer proibição no sentido de que um concorrente esteja ainda que temporariamente impedido de contratar funcionários advindos de outro. Ademais, não há menção pública a existência e violação de qualquer cláusula de non compete.
As cláusulas de non compete (ou de não concorrência) dizem respeito a cláusulas contratuais presentes em contrato de trabalho que impedem um empregado de realizar concorrência ao empregador – seja por meio da migração para seu concorrente, seja em atuação autônoma. Apesar de ter uma razão de ser, qual seja, a de garantir a proteção dos segredos de negócios e o uso de informações sensíveis e estratégicas por concorrentes[5], as cláusulas de não concorrência têm sido usadas de modo abusivo, e até mesmo a legislação americana – da qual importamos o instituto[6] – está em processo de mudança.
O próprio direito norte-americano já consolidou em sua jurisprudência que tais cláusulas só trariam efeitos benéficos a concorrência em três situações, quais sejam (i) a fim de promover a proteção de direitos de propriedade intelectual do empregador; (ii) a fim de resguardar perdas decorrentes de investimento feito pelo empregador ao treinar seus empregados; e (iii) para evitar transferência de carteira de clientes.
Inexistindo a adoção deste tipo de cláusula pelo Twitter, não há que se falar em dano sofrido por parte da empresa, mas tão somente ao funcionamento regular da economia e do livre mercado, com recolocação de trabalhadores no mercado. Não cabe qualquer atuação do ponto de vista antitruste a fim de impedir a livre contratação das pessoas, e qualquer decisão que não levasse tal fato em consideração – ainda mais num cenário em que o próprio Twitter não se resguardou contratualmente tendo a possibilidade de fazê-lo – seria absolutamente excessiva.
Para além da questão relativa ao que a Meta fez uso ou não do Twitter, há ainda outras questões relevantes. Em apenas duas horas a nova rede já possuía 2 milhões de usuários[7] e estima-se que os lucros auferidos por Zuckerberg chegaram a algumas dezenas de bilhões[8]. A velocidade com que o Threads se desenvolve sem sombra de dúvidas se beneficiou da massa crítica de usuários que já fazem uso de outros produtos da Meta, seja do Facebook, do WhatsApp ou do próprio Instagram. Nesse sentido, inegável a tese de que foi realizado uso de uma plataforma para alavancar posição em outro mercado.
A conduta de leveraging ou alavancagem de poder de mercado [9] diz respeito à prática de, por meio do fornecimento de um produto ou serviço complementar àquele inicialmente adquirido, a promoção artificial de uma empresa em mercado relacionado, alavancando sua posição de mercado naquele em que, por mérito, não foi possível atingir uma posição de dominância, aumentando artificialmente seu market share no referido mercado relacionado.
O Threads foi, inclusive, criado de forma vinculada ao Instagram. Assim sendo, é possível importar suas informações (como as páginas seguidas) de um a outro, e aproveitá-las de forma automática.
Também não é possível excluir sua conta do Threads sem que haja uma exclusão de sua própria conta no Instagram. Essa situação acaba por obrigar a permanência dos usuários na rede social, e potencializa os efeitos de rede da nova empreitada, uma vez que a utilidade dos produtos da Meta para os consumidores aumenta à medida que mais usuários se inscrevem. Ademais, importante entender ainda qual o papel dos dados coletados pela Meta a fim de targetear seus usuários, e se há uma intercambialidade entre suas plataformas, situação que daria uma vantagem competitiva ao Threads, que já teria amplas informações sobre cada usuário e seu perfil sem ao menos necessitar de seu próprio funcionamento para tanto, apenas a partir do que já foi coletado pelas demais.
Ocorre, no entanto, que não necessariamente qualquer dessas questões apontadas traz problemas e malefícios à saúde concorrencial dos mercados envolvidos. Na realidade, assistimos uma grande empresa de tecnologia realizar uma entrada em um mercado relacionado, o que pode ser uma sinalização positiva no sentido de que grandes empresas de tecnologia também podem ser entrantes valiosos, trazendo uma nova pressão competitiva, e nos fazendo encarar as demais como concorrentes potenciais.
E aqui mais uma vez faz-se latente o desafio enorme que todas as autoridades estão enfrentando no que diz respeito às análises envolvendo mercados digitais: mensurar até que ponto as características próprias desses mercados merecem endereçamentos distintos, e contribuem na limitação da concorrência, e até que ponto merece haver maior rigor na aplicação da lei.
[1] Fonte: <https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2023/06/22/donos-do-twitter-e-da-meta-se-desafiam-para-uma-luta.ghtml>
[2] Fonte: <https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2023/07/06/twitter-ameaca-processar-meta-apos-lancamento-da-rede-social-threads.ghtml>
[3] Fonte:< https://www.politico.com/news/2022/08/02/bidens-antitrust-adviser-leaving-00049349>
[4] Processo Administrativo nº 08700.004548/2019-61.
[5] GONÇALVES, Rodrigo Allan Coutinho. CLÁUSULA DE NÃO-CONCORRÊNCIA. REVISTA DA AGU, v. 13, n. 39, 2014.
[6] RIVERA, Amanda Athayde Linhares Martins; DOMINGUES, Juliana Oliveira. O improvável encontro do direito trabalhista com o direito antitruste. Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional, p. 65, 2019.
[7] Fonte: < https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/threads-novo-aplicativo-da-meta-bate-recorde-e-consegue-2-milhoes-de-usuarios-em-2-horas/>
[8] Fonte: < https://forbes.com.br/forbes-tech/2023/07/lancamento-do-threads-faz-zuckerberg-ficar-us-61-bilhoes-mais-rico/>
[9] CRAVO, Daniela Copetti. Venda casada: é necessária a dúplice repressão? Revista de Defesa da Concorrência, v. 1, n. 1, p. 52-70, 2013.