Judiciário
Embriaguez no trabalho: uma nova percepção doutrinária e jurisprudencial
O alcoolismo no afeta o desenvolvimento de uma empresa, seja pelo comprometimento dos relacionamentos profissionais e interpessoais ou até mesmo nos casos de indisciplina, insubordinação, desequilíbrio e queda de produtividade
O foco do presente artigo é dissertar sobre o alcoolismo dentro da relação de emprego e a sua caracterização como falta grave segundo o entendimento doutrinário e jurisprudencial.
O alcoolismo é um problema social grave e recorrente no mundo todo. Os reflexos são de ordem pessoal, violando a própria autoimagem do indivíduo, além de prejudicar a família, o lar, as relações pessoais e profissionais.
No Brasil, o alcoolismo é causa frequente de atraso e faltas injustificadas no trabalho (DINIZ, 2020). O empregado que comumente procede dessa forma prejudica o ambiente laboral, potencializa eventuais acidentes de trabalho e, consequentemente, reduz os lucros e maximiza os prejuízos da empresa.
Entende-se como alcoolismo a alteração do discernimento psicológico de uma pessoa em virtude do consumo de bebidas alcoólicas, alterando seu humor, memória, modificando seus sentidos, sua capacidade motora, concentração e integridade física.
Portanto, a embriaguez é considerada como o estado em que um sujeito perde o controle de suas ações em decorrência do consumo de substâncias químicas, abrangendo não somente o álcool, mas demais drogas. O sistema nervoso é total ou parcialmente afetado, prejudicando drasticamente sua coordenação (GARCIA, 2013).
Não é demasiado difícil refletir que essa realidade dentro do ambiente laboral afeta o desenvolvimento de uma empresa, seja pelo comprometimento dos relacionamentos profissionais e interpessoais ou até mesmo nos casos de indisciplina, insubordinação, desequilíbrio, queda de produtividade e outras situações ocasionadas pelo alcoolismo.
Justamente por isso a legislação tratou a gravidade do problema nas relações empregatícias por meio da Consolidação das Leis do Trabalho, no ano de 1943, estabelecendo como justa causa a embriaguez habitual ou em serviço (Art. 482, alínea “f”).
Ocorre que, com o avanço da medicina e outras áreas da ciência, o alcoolismo deixou de ser visto tão somente pela ótica da moralidade, ou como simples desvio de conduta do empregado, mas também como uma doença que demanda acompanhamento e tratamento. Atualmente, a embriaguez habitual é enfrentada como uma questão de saúde pública.
Para tanto, a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou a Síndrome de Dependência Alcoólica (alcoolismo ou embriaguez habitual) como doença grave. Trata-se de um transtorno que o indivíduo adquire com o decurso do tempo. A análise abrange fatores biológicos e culturais, como a relação entre o sujeito, o álcool e a comunidade em que está inserido no que diz respeito às condições econômicas e sociais (LADISLAU, 2015).
A OMS define a síndrome como sendo toda forma de ingestão de álcool que exceda o nível de consumo tradicional ou os bons costumes dos hábitos sociais. Esse nível exacerbado é capaz de gerar no indivíduo compulsão, dependência física e emocional, descontrole no consumo, abstinência e alterações no discernimento e leitura da realidade.
O conjunto de comportamentos e atitudes impulsiona o consumo de álcool de forma continua e periódica, gerando, portanto, a dependência (MARTINS, 2013).
Destaca-se que o consumo de álcool é dividido em diferentes níveis pela Organização Mundial de Saúde, vejamos:
- Consumo de risco – é um padrão de consumo que pode vir a implicar dano físico ou mental se esse consumo persistir.
- Consumo nocivo – é um padrão de consumo que causa danos à saúde, quer físicos quer mentais. Todavia não satisfaz os critérios de dependência.
- Dependência – é um padrão de consumo constituído por um conjunto de aspectos clínicos e comportamentais que podem desenvolver-se depois de repetido uso de álcool, desejo intenso de consumir bebidas alcoólicas, descontrolo sobre o seu uso, continuação dos consumos apesar das consequências, uma grande importância dada aos consumos em desfavor de outras atividades e obrigações, aumento da tolerância ao álcool (necessidade de quantidades crescentes da substância para atingir o efeito desejado ou uma diminuição acentuada do efeito com a utilização da mesma quantidade) e sintomas de privação quando o consumo é descontinuado.
Perceba que o documento trata da embriaguez, e não do simples ato de beber. Em outras palavras, é plenamente possível que uma pessoa consuma bebida alcoólica sem apresentar sintomas de embriaguez. Nesse sentido, não há de se falar em patologia (LADISLAU, 2015).
Por outro lado, a legislação trabalhista vigente trata da embriaguez como justa causa sob duas hipóteses: habitual ou em serviço. O intuito do legislador na época era proteger o próprio trabalhador e o ambiente de trabalho de possíveis acidentes ocasionados pela embriaguez em serviço.
Em suma, a embriaguez habitual é considerada uma doença crônica, um vício, uma enfermidade que pode ocorrer dentro ou fora da empresa (PANTALEÃO, 2020). É a vontade incontrolável de consumir bebidas alcoólicas pela ingestão reiterada e contínua – dependência.
Por esse motivo, a doutrina e jurisprudência compreendem a embriaguez habitual como doença, e não como vício social, o que implica em dizer que o trabalhador merece uma assistência médica para tratamento antes de ser extinto o contrato de trabalho por justa causa.
Em contrapartida, a embriaguez ocasional (eventual) se dá necessariamente no ambiente de trabalho, durante a jornada de trabalho ou pelo fato do trabalhador se apresentar embriagado (DINIZ, 2020). Não é caracterizada como uma doença, mas sim como um consumo imprudente, um ato faltoso isolado e caracterizado como grave.
Portanto, na embriaguez eventual a Justiça do Trabalho autoriza a dispensa por justa causa de forma imediata, sob pena de perdão tácito, pois se entende que o empregado é saudável, ou seja, não alcoólatra (NASCIMENTO, 2020).
Perceba que na embriaguez eventual não é necessária a habitualidade para configurar a justa causa, ou seja, uma só vez que o trabalhador se apresente ébrio no serviço já é suficiente para fundamentar a rescisão do contrato de trabalho, sendo necessária a produção de provas robustas por meio de documentos, testemunhas, perícias, gravações, etc (PIOVESAN,2019).
Nota-se, portanto, uma matéria demasiada polêmica entre os tribunais, tendo em vista a diferença entre o ébrio, considerado doente, e o trabalhador que esporadicamente ingere bebidas alcoólicas, considerado saudável.
Entre parênteses, a lei trabalhista tipifica como justa causa apenas a embriaguez, e não o mero ato de beber. Em outras palavras, somente o trabalhador embriago pode ser demitido por justa causa, a menos que o próprio regulamento empresarial proíba o simples consumo nas dependências da empresa, por exemplo – o que caracterizaria indisciplina ou mau procedimento (PIOVESAN, 2019).
Nessa toada, o ato de beber no intervalo para almoço e descanso por si só não possui o condão de caracterizar a justa causa, desde que o trabalhador não fique embriagado (LADISLAU, 2015). Contudo, esse assentamento encontra divergências entre doutrinadores.
Vejamos um julgado a respeito da questão:
DEMISSÃO POR JUSTA CAUSA – EMBRIAGUEZ – A demonstração de que o empregado ingeriu alguma quantidade de álcool não tem o condão de caracterizar, por si só, a embriaguez, capaz de ensejar a justa causa na forma capitulada na letra f do art. 482 da CLT, mormente quando o teste de bafômetro realizado pela própria empregadora revelou que a graduação alcoólica na corrente sanguínea do empregado se encontrava muito aquém daquela estipulada pelo Código Brasileiro de Trânsito como característica da embriaguez.
(TRT12ª R. – Proc. RO-V- 06722/01- Ac. 04383/02 – 1ª T – Rel. Juiz Gerson Paulo Taboada Conrado)
Por ouro lado, pela nova perspectiva da embriaguez habitual caracterizada como doença, surge para o empregador o dever da responsabilidade social. Em outras palavras, é necessário que a empresa opte pelo encaminhamento do empregado para tratamento médico adequado ao invés de rescindir o contrato de trabalho, ainda que implique na suspensão das obrigações contratuais e consequente afastamento pelo INSS (Art. 75 do Decreto nº 3.048/99).
Caso a empresa não siga essa orientação e oficialize a demissão por justa causa do trabalhador ébrio sem qualquer auxílio ou encaminhamento médico, a dispensa pode ser considerada discriminatória – gerando o direito à reintegração ou consequente indenização – nos termos da Súmula nº 443 do Tribunal Superior do Trabalho (LADISLAU, 2015).
Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego.
Perceba que a reversão da justa causa nos casos de alcoolismo como doença grave muito se deve ao fato de que o trabalhador não possui plena consciência dos próprios atos, em virtude da patologia, requisito indispensável para configuração da falta grave.
Trata-se do entendimento firmado pelos tribunais:
ALCOOLISMO. NÃO CARACTERIZAÇÃO DA JUSTA CAUSA. REINTEGRAÇÃO. Revela-se em consonância com a jurisprudência desta casa a tese regional no sentido de que o alcoolismo crônico, catalogado no Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde – OMS, sob o título de Síndrome de dependência do álcool, é doença, e não desvio de conduta justificador da rescisão do contrato de trabalho. Registrado no acórdão regional que – restou comprovado nos autos o estado patológico do autor-, que o levou, inclusive, – a suportar tratamento em clínica especializada não há de se se falar em configuração da hipótese de embriaguez habitual, prevista no art. 482, “f”, da CLT, porquanto essa exige a conduta dolosa do reclamante, o que não se verifica na hipótese. Recurso Revista não conhecido, integralmente
(RR – 153000- 73.2004.5.0022, Relatora Ministra: Rosa Maria Weber, 3ª Turma. Data de Publicação: 06/11/2009)
Vejamos outra acertada conclusão:
ALCOOLISMO. JUSTA CAUSA. Não se pode convalidar como inteiramente justa a despedida do empregado que havia trabalhado anos na empresa sem cometer a menor falta, só pelo fato de ele ter sido acometido pela doença do alcoolismo, ainda mais quando da leitura da decisão regional não se extrai que o autor tenha alguma vez comparecido embriagado no serviço. A matéria deveria ser tratada com maior cuidado científico, de modo que as empresas não demitissem o empregado doente, mas sim tentasse recuperá-lo, tendo em vista que para uma doença é necessário tratamento adequado e não punição.
(RR – 383922-16.1997.5.09.5555, Data de Julgamento: 04/04/2001, Relator Ministro: Vantuil Abdala, 2ª Turma, Data de Publicação: DJ 14/05/2001)
Nota-se, portanto, que no caso de uma pessoa saudável que comparece embriagada nas dependências da empresa a justa causa é aplicável, incidindo também o mau procedimento (PIOVESAN, 2019). Há a intenção, o desvio de conduta, a voluntariedade em ficar bêbado, o que justifica o poder de disciplina do empregador para preservar o ambiente de trabalho e evitar possíveis riscos.
Contudo, comprovada a dependência alcoólica como doença grave, tanto a jurisprudência e a doutrina compreendem a dispensa como discriminatória, devendo o empregado ser reintegrado – não excluindo a possibilidade de indenização por danos morais – ou caracterizando a dispensa como sem justa causa. O ato é considerado atentatório aos princípios constitucionais e basilares do direito à vida, da dignidade da pessoa humana e do trabalho (PIOVESAN, 2019).
Portanto, é recomendável que o empregador utilize todos os recursos disponíveis para recuperar e preservar a saúde do trabalhador ébrio e produza provas nesse sentido (PANTALEÃO, 2020).
Entretanto, caso o trabalhador recuse o tratamento médico oferecido pela empresa ou pelo órgão competente, a dispensa por justa causa torna-se possível em virtude das frustradas tentativas de recuperação (LADISLAU, 2015).
De outro norte, havendo a recuperação do empregado, o mesmo retornará ao serviço ocupando a função que antigamente exercia. Ainda, caso a doença se agrave, é necessário adotar as medidas necessárias para que o contrato de trabalho seja encerrado corretamente, por exemplo, pela aposentadoria por invalidez (PIOVESAN, 2019).
CONCLUSÃO
Em apertada síntese, o alcoolismo deixou de ser mero desvio de conduta e passou a ser tratado como questão de saúde pública – catalogado como doença grave pela OMS.
Nesse contexto, o posicionamento jurisprudencial e doutrinário enxerga a dispensa por justa causa em decorrência da embriaguez com novos olhos, muito em razão da CLT, datada de 1943, estar desatualizada nesse aspecto.
A embriaguez ocasional (ou eventual) continua sendo passível de justa causa, tendo em vista que o empregado nessa situação é saudável, incidindo apenas o desvio de conduta.
Contudo, a embriaguez habitual pela esmagadora maioria dos tribunais é considerada doença grave, e, exatamente por isso, requer da sociedade, do poder público e do empregador o tratamento médico adequado para recuperação do ébrio. Portanto, a justa causa nessa situação tende a ser revertida judicialmente.
Finalmente, há de se dizer que o empregador deve tomar cautela nesse tipo de situação, reunindo um acervo probatório robusto para eventuais demandas judiciais, o que pode incluir: documentos, testemunhas, laudos, exames médicos, e qualquer informação que o oriente no caso concreto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Constituição Federal. Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 25 nov. 2022.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Alcoolismo. Justa Causa. Processo: RR – 383922-16.1997.5.09.5555, Relator: Ministro Vantuil Addala, 2ª Turma. Data de Julgamento: 04/04/2001.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso Revista nº. 153000- 73.2004.5.0022. Relator: Ministra: Rosa Maria Weber. Data de julgamento: 06/11/2009.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula nº 443. Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego. In: BARROSO, Darlan; JUNIOR ARAUJO, Marco Antonio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
DINIZ, Marcelo. Embriaguez no trabalho – Doença ou motivo para justa causa?. [S. l.], 10 mar. 2020. Disponível em: https://advdiniz.com.br/embriaguez-no-trabalho-doenca-ou-motivo-para-justa-causa/. Acesso em: 5 fev. 2023.
LADISLAU, Roberta Elva. Embriaguez habitual ou em serviço – a nova percepção do Direito Trabalhista. [S. l.], 5 maio 2015. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/44176/embriaguez-habitual-ou-em-servico-a-nova-percepcao-do-direito-trabalhista. Acesso em: 10 fev. 2023.
MARTINS, Luciene Fabíola. Embriaguez no trabalho: doença ou motivo para justa causa?. [S. l.], 2020. Disponível em: https://mascaro.com.br/boletim/junho-2014-edicao-180/embriaguez-no-trabalho-doenca-ou-motivo-para-justa-causa/. Acesso em: 5 fev. 2023.
PANTALEÃO, Sergio Ferreira. Embriaguez no trabalho – doença ou motivo para justa causa?. [S. l.], 15 dez. 2020. Disponível em: https://www.guiatrabalhista.com.br/tematicas/embriaguez.htm. Acesso em: 10 fev. 2023.
PIOVESAN, Marcia Maria Rosa. Justa causa: a extinção contratual diante a embriaguez habitual ou em serviço. [S. l.], 2019. Disponível em: https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/10907/Justa-causa-a-extincao-contratual-diante-a-embriaguez-habitual-ou-em-servico. Acesso em: 3 fev. 2023.
SANTA CATARINA. Tribunal Regional do Trabalho. 12ª Região. Demissão por Justa Causa – Embriaguez. RO 06722/01, Ac. Da 1ª T. Nº 04383/02, Rel. Juiz Gerson Paulo Taboada Conrado, J. 27.01.1997, DJSC 02.05.2002.
SOLVER RH (ed.). Boletim 25 – Embriaguez no trabalho – doença ou motivo para justa causa?. [S. l.], 2020. Disponível em: https://www.solver-rh.com.br/embriaguez-no-trabalho/. Acesso em: 3 fev. 2023.
Servidor público, advogado, especialista em ações trabalhistas bancárias e pós-graduando em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela instituição Damásio Educacional.