AGRICULTURA & PECUÁRIA
Agricultura urbana e periurbana no enfrentamento das mudanças climáticas
Programa do governo federal pode trazer ganhos econômicos, sociais e ambientais para agricultores
O Brasil é um grande produtor e exportador de alimentos, mas ainda enfrenta desafios significativos relacionados à segurança alimentar, o que tende a ser agravado ainda mais com as mudanças climáticas. Principalmente nas áreas urbanas, há muita desigualdade na distribuição dos alimentos e os preços são altos em relação à renda de grande parte da população, limitando o acesso a alimentos saudáveis e nutritivos.
Além disso, a disponibilidade de alimentos processados e ultraprocessados muitas vezes supera a de alimentos frescos e saudáveis. Preencher os espaços urbanos e as adjacências com mais agricultores é uma excelente estratégia para lidar com esse desafio.
Segundo a ONU-Habitat, até 2050, espera-se que 68% da população mundial resida em território urbano. No Brasil, mais de 80% da população já vive nas cidades, ocupando apenas 0,63% da área do país. Isso revela um fato: o futuro da humanidade é urbano. Como lidar com esse desafio, promovendo um crescimento ordenado e focado na garantia de direitos fundamentais, é uma questão que se coloca.
Em paralelo, mais da metade da população brasileira convive com algum grau de insegurança alimentar, enquanto a produção agrícola no país é suficiente para alimentar, ainda que tecnicamente, o país inteiro três vezes – mais de 800 milhões de pessoas.
Analisando os dados citados, percebe-se que alimentar a população urbana é um desafio iminente. É nesse sentido que a promoção da Agricultura Urbana e Periurbana (AUP) surge como uma possibilidade promissora de produção de alimentos com benefícios para as cidades e seus citadinos. São exemplos: ampliação das áreas verdes, redução da pegada ambiental e dos desafios logísticos pela proximidade entre produtor e consumidor, mais resiliência para a cidade, geração de renda, educação ambiental e melhora na qualidade dos alimentos consumidos pela população.
Nessa direção, acaba de ser publicado o Decreto 11.700 de 12 de setembro de 2023, que prevê um programa com potencial de trazer muitos ganhos econômicos, sociais e ambientais para os agricultores que trabalham nas cidades ou no seu entorno.
Trata-se do Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana e o Grupo de Trabalho do Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana. Ele será executado no âmbito da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com o objetivo de promover a segurança alimentar e nutricional e assegurar o direito humano à alimentação adequada e promover a gestão intersetorial, participativa e articulada para a sua execução.
O primeiro destaque é a apresentação de um conceito para AUP no contexto jurídico brasileiro, conforme o artigo 2º, relacionado às mais diversas atividades agrícolas e às pequenas criações de animais desenvolvidas em áreas urbanas ou periurbanas, abrangendo a produção, o processamento, a distribuição e a comercialização de alimentos, plantas aromáticas, medicinais e ornamentais e inclui no conceito os processos de gestão de resíduos orgânicos.
No âmbito de execução, previsto no artigo 3º, o Decreto apresenta a sua transversalidade e multiplicidade de objetivos, integrando a promoção da segurança alimentar e nutricional e a garantia do direito humano à alimentação adequada com a promoção do uso sustentável de recursos naturais associado à oferta e ao consumo de alimentos saudáveis.
Já em seu artigo 4º, institui os princípios norteadores do Programa Nacional de AUP, a saber: direito humano à alimentação adequada (DHAA); à saúde; à cidade; participação popular e social; economia popular e solidária (cooperativismo e o associativismo); agroecologia e a produção orgânica, construção de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis; em circuitos curtos de comercialização.
O artigo 5º preceitua que: “O Programa Nacional de AUP tem o objetivo de promover: […] VI – o desenvolvimento de cidades mais saudáveis, sustentáveis e resilientes às mudanças climáticas, de modo a combater o racismo ambiental e incentivar a adoção de práticas de adaptação e mitigação das mudanças climáticas” (grifos nossos).
Em seguida, o artigo 6º dispõe sobre as linhas de ação, dentre as quais destacamos (i) a educação alimentar, nutricional e ambiental (inciso IV), (ii) a proteção e a conservação do meio ambiente, da biodiversidade e dos mananciais para a promoção da qualidade ambiental em áreas urbanas e periurbanas (inciso VII), (iii) a recuperação de áreas degradadas e a manutenção e manejo sustentável de áreas verdes integradas à produção de alimentos (inciso VIII), e (iv) a promoção de tecnologias de reuso de água, de captação de água de chuva e de revitalização de rios, córregos e nascentes urbanas.
Em termos mais procedimentais, o artigo 7º e seguintes preveem que é voluntária a participação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. A inclusão deles pode ser formalizada de diversas maneiras: contratos, convênios, acordos de cooperação, termos de execução descentralizada, termos de fomento ou instrumentos congêneres, tanto com órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal, como com consórcios públicos, e inclusive com entidades privadas. Isso abre portas para uma possibilidade bem grande de projetos. Vale mencionar, ainda, que o programa poderá ser custeado por recursos orçamentários de vários ministérios. Além disso, os recursos podem ser destinados pelos Estados, pelo Distrito Federal, pelos Municípios, por entidades privadas e por organismos internacionais.
Outro ponto que merece destaque é uma inovação no artigo 9º, inciso IV, o qual prevê articulações com pessoas jurídicas para financiamento da AUP, o que abre a possibilidade de acrescentar o programa na estratégia ESG das empresas brasileiras comprometidas com o meio ambiente, tendo em vista que a AUP surge como uma das soluções de adaptação das cidades às mudanças climáticas.
Vale observar que os Sistemas Alimentares são responsáveis por mais de um terço das emissões antrópicas de gases de efeito estufa1, podendo o percentual ser ainda maior. Stephen Gliessman2 menciona que os sistemas alimentares podem representar até 40% das emissões antrópicas, sendo urgente para a agricultura não apenas adote medidas de mitigação, mas, também, de adaptação Isso, por si só, já exige uma mudança para atender ao objetivo do Acordo de Paris (art. 2º, 1, a) de limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais, conforme Relatório Especial do IPCC sobre “Mudança do Clima e Terra”.
Entretanto, estima-se que, com o crescimento demográfico aliado ao ritmo atual de consumo, a produção de alimentos deve aumentar em 60% até 2050; com isso, há também aumento da demanda por água e energia3 (vínculo alimentos-água-energia). Concomitantemente, avançam os processos de desertificação e de perda de biodiversidade4. “Da agricultura depende a conservação do nosso planeta e a sobrevivência da raça humana. Ela não é o ramo econômico menos lucrativo, mas a atividade humana decisiva.” (PRIMAVESI, 1997, p. 156, grifos nossos).
Assim, é dever da política agrícola romper com o chamado sistema alimentar corporativo para que a agricultura volte a se fundar em uma base ecológica5, conformando-se aos princípios ecológicos/ambientais e climáticos. A questão climática deve ser um dos elementos-chave da política agrícola. “Um punhado de solo pode ser o lar de bilhões de organismos, pertencentes a milhares de espécies “(BRADY; WEIL, 2013, p. 8, grifos nossos).
Práticas, como a agroecologia (recomendada, inclusive, pelo IPCC6), preocupam-se como o solo (incluindo a preocupação com a água e com a biodiversidade/agrobiodiversidade), e não apenas com as plantas. Solos saudáveis produzem plantas saudáveis. “A partir dos princípios agroecológicos, os sistemas são desenhados e manejados sempre de forma a aproximá-los o máximo possível da natureza, ou melhor, dos processos ecológicos que a própria natureza executa. (ALCÂNTARA, 2017, p. 8-9, grifos nossos).
Ademais, importantíssima, e inter-relacionada com o Acordo de Paris, é a Convenção Internacional de Combate à Desertificação. Os governos precisam exigir uma agricultura ecológica pelo fato “de nenhuma tecnologia mecânico-química ser capaz de deter o implacável avanço do deserto.” (PRIMAVESI, 1997, p. 132, grifos nossos).
Assim, para mitigar as emissões de gases de efeito estufa oriundas da agropecuária, inevitavelmente interligadas com as emissões decorrentes de Mudança de Uso da Terra e Florestas, há necessidade e obrigação de transição para regimes agrícolas com base ecológica. Verifica-se ainda o dever convencional e constitucional de elaborar planos de transição para agriculturas de base ecológica e verdadeiramente sustentáveis sendo a agricultura urbana agroecológica chave para esse processo. Nesse contexto, o programa de AUP vem em boa hora e tem muito a contribuir.
[1] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E AGRICULTURA – FAO. Sistemas Alimentares são responsáveis por mais de um terço das Emissões globais de gases de efeito estufa. 2021. Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/115817-sistemas-alimentares-sao-responsaveis-por-mais-de-um-terco-das-emissoes-globais-de-gases-de>. Acesso em: 15 set. 2023.
[2] “(…) we can see that the agri-food system occupies a central place in the dilema and challenge that is climate change. It is estimated that agriculture and food system today are responsible for between 30% a 40% of all GHGs releases into the atmosphere (…) Those emissions must be dramatically reduced as rapidly as possible to preserve any chance of limiting planetary warming to 2º C. (…) At the same time, the agri-food system must adapt to the reality of a changing, unpredictable, and frequently unfavorable climate. Fortunately, we can work toward realization of these two goals at the same time by applying the agroecological principles” (GLIESSMAN, 2023, p. 371).
[3] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E AGRICULTURA – FAO. 2015. Se o atual ritmo de consumo continuar, em 2050 mundo precisará de 60% mais alimentos e 40% mais água. Disponível em: < https://brasil.un.org/pt-br/68525-fao-se-o-atual-ritmo-de-consumo-continuar-em-2050-mundo-precisar%C3%A1-de-60-mais-alimentos-e-40>. Acesso em: 15 set. 2023.
[4] Disponível em: <https://www.fao.org/3/i4997s/i4997s.pdf>. Acesso em: 17 set. 2023.
[5] “Muitos agricultores estão convencidos de que comprando um trator a produção aumenta, e ficam decepcionados quando constatam que somente aumenta a compactação dos solos. Acreditam que a irrigação seria a solução milagrosa de todos os problemas. Mas 40 a 60% da água aspergida evapora no ar, custando energia. No Nordeste, além de pouco a pouco esgotar os rios, a irrigação não funciona nas épocas em que a ‘seca bate’, mesmo porque as represas reservam sua água para as populações urbanas. E por que se irriga? Porque os solos perderam sua capacidade de infiltração e conservação da água, porque lajes duras impedem a penetração das raízes no solo, restringindo-as à superfície que rapidamente seca. Irriga-se porque o vento leva a umidade, as chuvas se tornaram irregulares e mal distribuídas, enfim, porque se destruiu o ambiente solos” (PRIMAVESI, 1997, p. 109, grifos nossos).
[6] Segundo Fernandes (2013), em ‘meados do século 20, a perda (morte) de espécies acontecia a um ritmo estimado de cerca de uma espécie extinta em cada 13 anos. Hoje, segundo a IUCN, desaparecem em torno de 5 mil espécies por ano – ou 14 espécies a cada dia’. Não é por acaso que o desaparecimento vertiginoso de espécies coincide com a expansão da revolução verde”. (MACHADO; MACHADO FILHO, 2017. p. 83, grifos nossos).
ALCÂNTARA, Flávia Aparecida de. Manejo Agroecológico do Solo. Santo Antônio de Goiás: Embrapa Arroz e Feijão, 2017. Disponível em: <https://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/infoteca/bitstream/doc/1076545/1/CNPAF2017doc314.pdf>. Acesso em: 17 set. 2023.BRADY, Nyle C.; WEIL, Ray R. Elementos da Natureza e Propriedades dos Solos. 3ª ed. Porto Alegre: Bookman, 2013.GLIESSMANN, Stephen et al. Agroecology: Leading the Transformation to a Just and Sustainable Food System. 4ª ed. Boca Raton (Flórida), CRC Press, 2023.MACHADO, Luiz Carlos Pinheiro; MACHADO FILHO, Luiz Carlos Pinheiro. Dialética da Agroecologia. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2017.PRIMAVESI, A. Agroecologia, Ecosfera, Tecnosfera e Agricultura. São Paolo: Nobel, 1970.