Internacional
Como protestos pró-palestinos ameaçam autocratas árabes
Em alguns países do Oriente Médio, manifestações em apoio aos palestinos evocam atos pró-democracia de 2011. Líderes autoritários já temem que protestos tomem rumos domésticos e se tornem críticos aos regimes no poder
No fim de outubro, os egípcios foram autorizados a fazer algo que não podiam fazer há anos: protestar. O governo autoritário do país não apoia o direito à liberdade de reunião. Mas, há cerca de duas semanas, o presidente Abdel Fattah el-Sissi permitiu que manifestações pró-palestinas ocorressem – sob condições rigorosas e em locais determinados.
Forças de Israel têm bombardeado incessantemente a Faixa de Gaza há semanas, em retaliação aos ataques terroristas do grupo fundamentalista islâmico Hamas em 7 de outubro, que mataram cerca de 1.200 israelenses. A ofensiva de Tel Aviv, por sua vez, já deixou mais de 11 mil palestinos mortos, segundo as autoridades de saúde do enclave, controlado pelo Hamas desde 2007.
No Egito, alguns dos protestos foram claramente patrocinados pelo Estado, disseram observadores, relatando que manifestantes foram levados de ônibus aos locais e entoaram gritos de apoio a Sissi e aos territórios palestinos. Mas outros protestos foram mais orgânicos – e alguns inclusive saíram do controle das autoridades.
Em um deles, vários moradores se dirigiram para a Praça Tahrir, no centro do Cairo – o local se tornou símbolo dos protestos de 2011 no Egito, parte do movimento pró-democracia conhecido como Primavera Árabe, que eventualmente derrubou o ditador Hosni Mubarak. Ali, manifestantes pró-palestinos mudaram o foco do conflito Israel-Hamas para um coro frequentemente ouvido em 2011 e direcionado às autoridades egípcias: “Pão, liberdade, justiça social!”
“A causa palestina sempre foi um fator de politização para os jovens egípcios de todas as gerações”, afirma Hossam el-Hamalawy, pesquisador e ativista egípcio que vive atualmente na Alemanha e escreve um boletim informativo sobre a política egípcia.
“Na verdade, para muitos ativistas políticos egípcios – sejam os que lideraram a revolução [de 2011], sejam os que participaram de protestos anteriores –, sua porta de entrada para a política foi a causa palestina. A revolta de 2011 no Egito foi literalmente o clímax de um processo que começou com a segunda intifada palestina uma década antes.”
Para evitar que mais protestos pró-palestinos se transformem em manifestações contra o governo, as autoridades egípcias reprimiram ainda mais a dissidência, prendendo mais de 100 pessoas e reforçando a segurança nas praças públicas, relata Hamalawy.
Temor de que atos tomem rumo doméstico
Mas o regime do Egito não é o único da região que teme que a causa palestina – com a qual muitos que vivem no Oriente Médio simpatizam profundamente – possa ameaçar o status quo político local.
Os líderes da região “sempre viram a causa palestina como uma forma de as pessoas descarregarem sua raiva”, explica Joost Hiltermann, chefe do programa para o Oriente Médio e Norte da África do think tank International Crisis Group.
“Mas isso é uma faca de dois gumes. Quando as circunstâncias em um país são muito ruins, os protestos podem muito bem tomar um rumo doméstico e se tornar uma crítica ao regime no poder.”
Como resultado, os líderes autoritários têm tido que “jogar um jogo muito cuidadoso”, diz Hiltermann, a fim de não perder o controle dos protestos e, ao mesmo tempo, continuar dizendo o que seus cidadãos querem ouvir.
O governo do Bahrein, por sua vez, também proibiu protestos em seu território depois de 2011, mas permitiu que manifestantes pró-palestinos fossem às ruas no último mês. Estes foram os maiores atos desde os protestos da Primavera Árabe há 12 anos.
A imprensa relatou que alguns dos participantes portavam cartazes que mostravam o rei do Bahrein de mãos dadas com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. A polícia de choque acabou sendo chamada para dispersar os protestos.
Grandes manifestações pró-palestinas também ocorreram na Tunísia, onde o presidente cada vez mais autoritário do país, Kais Saied, tem visivelmente mantido um certo equilíbrio sobre a questão. Ele tem usado a empatia dos habitantes locais com os palestinos para atender seus próprios interesses e, potencialmente, aumentar sua popularidade.
“Parte da motivação de Saied ao adotar uma postura estridente e despertar a ira popular pode ser desviar a atenção das terríveis dificuldades econômicas do país”, escreveram especialistas do International Crisis Group em um artigo no início do mês.
Inicialmente, Saied apoiou um projeto de lei que tornava a normalização das relações com Israel uma ofensa criminal. Mais recentemente, porém, ele voltou atrás, dizendo que tal lei prejudicaria as perspectivas econômicas e diplomáticas futuras da Tunísia.
Descontentamento generalizado
A situação “expõe a fraqueza dos regimes árabes, incluindo o Egito, sua incapacidade de influenciar o que está acontecendo, de proteger os palestinos ou de garantir um cessar-fogo”, afirma Hamalawy.
“E isso está provocando um descontentamento generalizado. É o que se vê em todas as mídias sociais: as pessoas estão compartilhando notícias da Palestina com entusiasmo, bem como memes, charges e piadas que ridicularizam Sissi e outros governantes árabes.”
Para o pesquisador egípcio, porém, isso não significa que os protestos pró-palestinos se transformarão em um novo movimento pró-democracia. Pelo menos não imediatamente.
“Não estamos à beira de outro 2011 porque há uma diferença substancial entre os dissidentes de agora e os de então”, diz Hamalawy, observando que o governo do Egito reprimiu praticamente todas as vozes de oposição.
Contudo, há alguns indícios pequenos e localizados de dissidência contínua, observa o especialista. “Portanto, quanto mais essa guerra [em Gaza] se arrasta, mais provável é que algo aconteça.”
Para evitar isso, as nações do Oriente Médio que normalizaram ou planejam normalizar as relações com Israel estão equilibrando declarações públicas inflamadas sobre o assunto com posturas mais contidas no privado.
“Em conversas extraoficiais, algumas autoridades árabes têm falado sobre o Hamas e a Faixa de Gaza com um tipo de linguagem que se espera ouvir de israelenses de extrema direita”, reportou a revista britânica The Economist. “Eles não nutrem qualquer simpatia por um grupo islâmico apoiado pelo Irã. Mas não ousam repetir tais comentários em público.”
“Hoje, líderes árabes podem estar dispostos a falar em nome da Palestina, mas poucos estão prontos ou são capazes de fazer o que dizem”, escreveu Marwan Bishara, analista político sênior do grupo de mídia Al Jazeera, em um artigo no final de outubro.
O que esperar das reuniões árabes
É também por isso que não se deve esperar muito das reuniões que estão sendo realizadas no Oriente Médio neste fim de semana, afirmam observadores de longa data da região.
A Arábia Saudita realiza neste sábado uma extraordinária cúpula conjunta islâmico-árabe. Anteriormente, o país havia planejado duas cúpulas, uma da Liga Árabe e outra da Organização de Cooperação Islâmica, mas as combinou “em resposta às circunstâncias excepcionais que estão ocorrendo na Faixa de Gaza palestina”, disse o governo em Riad.
O presidente do Irã, Ebrahim Raisi, chegou à Árabia Saudita neste sábado, marcando a primeira vez em anos que um líder iraniano visita o país, depois quer as duas nações retomaram os laços diplomáticos em março deste ano.
“Mas as reuniões não serão muito importantes”, diz Joost Hiltermann. “Os regimes querem ter certeza de que estão sendo vistos fazendo algo, mesmo que não estejam fazendo muito.”
Os líderes autoritários do Oriente Médio podem, por exemplo, pressionar os Estados Unidos a controlarem seu parceiro israelense, bem como ameaçar retirar, ou mesmo retirar, embaixadores, afirma Hiltermann. “E eles querem parecer mais santos do que o papa quando se trata da questão palestina. Mas eles não romperão as relações com Israel que são de seu interesse nacional. É tudo uma questão de falar da boca para fora sobre a causa palestina – como já os vimos fazer há décadas.”
Hamalawy concorda: “Haverá as declarações habituais de condenação, as relações públicas habituais. Mas não, não acho que algo substancial sairá disso, muito menos que alguém declare guerra.”