Judiciário
Ministros do STF querem reter poder individual de moderar a República
Indicação de Flávio Dino reforça necessidade de a corte mitigar efeitos da radicalização da direita
Pesquisa da Quaest indica que 66% dos brasileiros são favoráveis a limitar decisões monocráticas do Supremo Tribunal Federal (STF). Assim, não se sustenta a narrativa de que a Proposta de Emenda à Constituição para limitar a ação individual de ministros da corte, aprovada no Senado, se resume a uma reação da direita contra o papel fundamental que a corte vem demonstrando ao frear o golpismo bolsonarista.
As reações de ministros contra a PEC 8/2021 parecem ter sido desproporcionais. Por exemplo, em vez de fazer críticas construtivas à proposta, Roberto Barroso, presidente do STF, afirmou que as mudanças “não são necessárias e não contribuem para a institucionalidade do país”. Há inevitavelmente, na fala do ministro, um tom de censura à vontade popular que em tese o Legislativo representa. Fica no ar a sugestão de que cada um dos 11 ministros da corte quer moderar a República.
Porém, mais do que a voz das ruas, cabe refletir se a missão-mor do STF — o controle da constitucionalidade dos atos legais e, assim, a manutenção da Carta Magna — pode ser cumprida legitimamente apenas de modo colegiado. Nesse espírito, o tribunal implementou há um ano mudanças no regimento interno segundo as quais o ministro relator deve enviar à apreciação do plenário as decisões monocráticas que compreendem casos de prisão, afastamento de detentores de cargo público e suspensão de políticas públicas.
Conforme explicado em reportagem, a PEC “… veda a concessão de decisão monocrática no Supremo e nos demais tribunais, caso esta suspenda a eficácia de lei ou ato normativo, com efeito, geral, ou seja, que afetam a coletividade, ou suspenda ato dos presidentes da República, do Senado, da Câmara dos Deputados ou do Congresso Nacional”. Vê-se que o Senado busca por meio da proposta reequilibrar ainda mais a relação entre os Poderes. Mais do que uma pauta de um grupo político extremista, trata-se de aperfeiçoar a legitimidade da instituição escolhida pelos constituintes de 1988 para, na prática, moderar a República.
Tal legitimidade, porém, tem grandes chances de entrar em decadência. Isso porque o processo de indicação de ministros para a corte — um procedimento político por excelência — cria um vício de origem que fica saliente quando cada magistrado se manifesta individualmente nos autos: uma liminar reflete interesses partidários escamoteados em linguagem jurídica ou é o resultado da interpretação da Constituição à luz de evidências e da convicção estritamente pessoal de quem decide?
Para além da indicação inevitavelmente política, existe o inescapável ambiente de qualquer capital do poder: imersos nas redes sociais brasilienses e, em última instância, da influência dos mais diversos tipos de capital — econômico, simbólico, cultural, político —, a imagem do juiz que presta satisfações apenas à sua consciência e ao ordenamento jurídico dificilmente se concretiza de fato e na mente da opinião pública. Aos olhos do cidadão comum, o notório saber jurídico — requisito para ser indicado à suprema corte — quer dizer, na verdade, notório apadrinhamento político.
Por exemplo, pense como o espectro político-jurídico do centro para a direita vai receber a indicação do ministro da Justiça, Flávio Dino (PSB), para o STF em meio a tamanha polarização política. Decisões monocráticas que ele eventualmente tome e afetem interesses de grupos que não apoiam o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estariam sob fogo cruzado, tal como ocorre quando os indicados por Jair Bolsonaro (PL) — Nunes Marques e André Mendonça — tomam decisões alinhadas às pautas da extrema-direita.
Portanto, mais que tensionar o ambiente político do país, a PEC 8/2021 tem o potencial de derrubar a narrativa bolsonarista de que o STF virou um antro de ditadores — crítica que tem como alvo preferencial o ministro Alexandre de Moraes. Preocupa apenas na PEC uma emenda estranhamente apresentada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que prevê que as advocacias das duas casas do Legislativo federal devem ter a oportunidade de se manifestarem quando o Supremo analisar constitucionalidade de lei federal.
Conhecido por suas posturas em tese centristas, Pacheco abre as portas para uma ascendência do Legislativo sobre o Judiciário típica de regimes autoritários. O poder de manifestação hoje já existe no caso da Advocacia-Geral da União (AGU). Mais do que a visão de governo, porém, a AGU oferece aos julgamentos do governo uma perspectiva de Estado, algo que dificilmente viria da Câmara dos Deputados e do Senado Federal ainda que sob o filtro de servidores de carreira que integram a advocacia de ambos os colegiados.
Tendo ocupado o lugar do MDB como maior partido centrista do Brasil, o posicionamento do PSD de Pacheco — que votou em massa a favor da PEC — ilustra bem a linha tênue que os atuais tempos trazem para delimitar a abertura da porteira ao golpismo de direita e a tarefa mais que necessária de aperfeiçoar as instituições democráticas. A fronteira que nos conduz a esse último cenário será bem traçada se o Legislativo e o Judiciário sopesarem a legitimidade que emana das páginas ainda vivas da Constituição e a vontade do povo: não se trata de satisfazê-lo em absoluto, como numa receita de populismo-autoritário, senão de impedir que a poeira se acumule e faça turva a leitura da Carta Magna.