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Fiocruz usa verbas da saúde indígena em diárias de coordenador para o exterior com a mulher
A Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, usou R$ 310 mil de um programa voltado ao fortalecimento da saúde indígena para bancar viagens ao exterior do coordenador da ação, o pesquisador Guilherme Franco Netto. Os valores chegam a superar a referência usada pelo órgão responsável.
Os recursos foram repassados a Netto, bolsista do programa, em diferentes momentos ao longo de dois anos para cinco viagens ao exterior –três vezes a Coimbra (Portugal), uma vez a Paris (França) e outra ao estado do Colorado (EUA).
O dinheiro é proveniente de um contrato entre o Ministério da Saúde e a fundação. Em viagens aos dois primeiros países, Netto teve a companhia de sua esposa, Lorena Covem Martins, que também é bolsista do programa coordenado pelo marido.
Em contraste com os R$ 310 mil destinados para Netto, o bolsista que menos recebeu em diárias foi contemplado com apenas R$ 176. A segunda colocada no ranking de diárias depois de Netto recebeu menos de um sexto do obtido pelo pesquisador, totalizando R$ 51,4 mil.
Fora Netto, apenas cinco pessoas foram contempladas com subsídios maiores que R$ 10 mil por mês –o maior deles, de R$ 12 mil. Ao todo, 845 integrantes do projeto receberam diárias.
Já a esposa do coordenador se posicionou em quinto lugar no ranking dos valores totais de diárias durante o programa, com um total de R$ 31 mil.
Em 2022, de 31 de outubro a 18 de novembro, ele viajou a Paris para “atividade de pesquisa acadêmica e formação em pesquisas relacionadas a territórios sustentáveis e saudáveis”. Nesse período, recebeu R$ 49,7 mil.
O valor fica acima da referência usada pelo programa –que segue as tabelas de diárias da Fiotec (Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde), braço da Fiocruz.
Conforme o Manual de Procedimentos de Projetos da Fiotec, não há limite de valor para diárias. Porém, a fundação sugere que os pagamentos sigam os valores sugeridos no site do órgão.
O documento diz que a diária de referência para os três países visitados por Franco Netto seria de US$ 460 (cerca de R$ 2,3 mil). Em 18 diárias ao exterior, caso da viagem a Paris, o valor de referência seria de R$ 41 mil (o que fica abaixo do montante recebido durante o período na capital francesa).
Segundo a Fiocruz, a esposa Lorena, que esteve em Paris na mesma data de viagem do pesquisador, “viajou sob seu próprio custeio”.
No mesmo ano, ele já havia viajado para Coimbra entre 25 de abril e 29 de maio para a “representação da Fiocruz no contexto da implementação dos acordos de cooperação formalizados entre a fundação e a Universidade de Coimbra”. Nesse período, ele recebeu R$ 75,5 mil em diárias (pouco abaixo do teto de referência do programa, de R$ 78,2 mil para 34 dias de viagem).
Procurado, Netto afirmou que “toda a comunicação da Fiocruz com a imprensa é feita por meio da Coordenação de Comunicação Social”.
Já a Fiocruz, detentora do contrato de R$ 64 milhões comandado pelo pesquisador, diz que as viagens de Netto foram para desenvolver atividades relacionadas à cooperação técnica com universidades desses países.
O órgão afirma ainda que atua como pesquisador visitante e que, entre as atividades, organizou e preparou seminários relacionados ao tema “Ecocídio e Globalização dos Cerrados Brasileiros: resistências e lutas dos povos e comunidades originários e tradicionais pelos direitos à saúde e à vida”.
No ano passado, em janeiro de 2023, Netto voltou a Portugal e recebeu mais R$ 85,5 mil em diárias. Os registros mostram uma viagem a Coimbra de 31 de janeiro a 1º de abril (pouco mais de dois meses). Naquele momento, o governo federal havia declarado estado de emergência sanitária e iniciado uma operação para a recuperação da saúde da população Yanomami.
O projeto pretende colaborar com o desenvolvimento de estratégias que fortaleçam o Sasisus (Subsistema de Saúde Indígena) para garantir aos povos indígenas o acesso à atenção integral à saúde, considerando as vulnerabilidades e diversidades dessa população.
Os valores são transferidos por meio de TED (Termos de Execução Descentralizada), ferramenta que permite “puxar” recursos de outras pastas para que aproveitamento dos serviços.
Netto acumula uma série de outras viagens. Ficou de 31 de janeiro a 1º de abril em Coimbra. No mês seguinte, em 6 de maio, voltou à cidade portuguesa, onde ficou até o dia 10 de junho para atuar no mesmo escopo do projeto.
De 8 a 15 de setembro, ele esteve em viagem no estado americano do Colorado, segundo a fundação, para a “sistematização de dados e informações para subsidiar o relatório da pesquisa “Ecocídio e planejamento de iniciativas da Fiocruz nos Cerrados”.
Também há viagens pelo território nacional. Entre os dias 31 de agosto e 4 de setembro, ele estava em Goiânia (Goiás), também pelo programa, para participar de uma “imersão de treinamento como Guia de Terapia da Natureza e da Floresta”. Ele dá cursos presencial e online sobre interação do homem e a natureza, segundo divulga em suas redes sociais.
Há viagens registradas ainda para Salvador, Fortaleza e Teresina.
Segundo a Fiocruz, as diárias devem ser destinadas a cobrir despesas com hospedagem, alimentação e transporte em viagens previstas nos projetos. A fundação determina que o benefício deve estar relacionado “estritamente às metas e atividades” do projeto e os gastos devem ser comprovados assim que estejam concluídas as atividades informadas.
Ainda segundo a Fiocruz, as viagens realizadas pelo pesquisador foram programadas e estavam previstas no projeto. Além disso, afirmou que o é servidor de carreira da Fiocruz e, sendo coordenador do programa, também pode atuar como pesquisador do projeto.
O pesquisador recebe o valor mensal da bolsa de pesquisa de R$ 4,7 mil, e o salário de R$ 28,4 mil de salário pela Fiocruz, onde é coordenador de saúde e ambiente, setor em que sua esposa faz parte da equipe.
OPERAÇÃO DARDANÁRIOS
Guilherme Franco Netto foi preso em 2020 por ordem 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, durante a operação Dardanários, que investigou desvios na área de saúde e atingiu também o então secretário de Transportes Metropolitanos de São Paulo, Alexandre Baldy.
Segundo o Ministério Público Federal, ele era suspeito de intermediar a contratação de uma empresa investigada com a própria Fiocruz por R$ 4,5 milhões.
A Fiocruz afirmou que a prisão ocorrida na Operação Dardanários foi anulada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e não há qualquer processo constituído contra o servidor.
A situação da saúde indígena ainda é tema sensível no governo Lula (PT), que ainda não conseguiu dar uma resposta efetiva para resolver o problema dos yanomamis um ano após decretar emergência em saúde pública.
Recentemente, o governo reconheceu em plano enviado ao STF uma série de problemas na gestão da saúde indígena. Entre os itens apontados, falta de pessoal qualificado, corte de verbas, equipamentos obsoletos ou insuficientes, alta rotatividade de gestores e de projetos e dificuldades logísticas.
Durante o governo Bolsonaro, o garimpo ilegal explodiu no território, causando o surto de malária, a contaminação dos rios por mercúrio e alastrando a desnutrição pelos indígenas. Procurada há uma semana para falar sobre o caso, a assessoria do Ministério da Saúde não respondeu.
Relatórios da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) revelados pela Folha de S.Paulo mostraram que os postos sanitários foram deixados em situação precária, com remédios vencidos, seringas orais reutilizadas indevidamente e fezes espalhadas em unidades de atendimento, além de desvio de comida e de medicamentos para tratamento de malária.