Judiciário
Vamos discutir a relação? Tudo é relacional, a corrupção também
A questão não é a corrupção em si, mas a forma como ela se relaciona com as demais coisas
Se você pretende realmente entender como o mundo funciona pare de olhar para as coisas individualmente e repare nos relacionamentos. O importante não são as coisas em si, mas a relação entre essas coisas. Compreender algo é justamente entender como esse algo se relaciona com as demais coisas.
Para se ter uma visão clara do problema da corrupção sistêmica (e de qualquer outro problema complexo) olhe para os relacionamentos e não para os indivíduos. Tenha sempre em mente que, independentemente da amplitude e profundidade que se examine algo, tudo faz parte de um sistema. A corrupção sempre está inserida em um sistema. E sistema significa interações, conexões, relacionamentos.
Corrupção não é sobre a linha reta que une corruptos e corruptores, mas sim sobre uma teia de interconexões onde tudo tem relação com o resto.
Vejamos um exemplo em seu nível micro. Um empresário pagando propina para um prefeito de uma pequena cidade para receber algum benefício. Parece um ajuste bilateral, uma linha reta entre corruptos, mas na realidade é um pequeno sistema de corrupção. Por menor que seja, não é uma relação linear entre o prefeito e o empresário, nem tampouco um evento pontual.
Na verdade, esse sistema está sempre inserido ou é conexo com outros sistemas, como partidos políticos, carteis, órgãos públicos e o sistema eleitoral. Esse microssistema, composto a princípio de um empresário e um agente político, pode ser alimentado ou alimentar outros sistemas. Suponha que, no exemplo, o benefício “comprado” pelo empresário e “vendido” pelo prefeito seja simplesmente uma omissão, como a não fiscalização do lixo tóxico da empresa, permitindo que este seja despejado no rio que passa pelo pequeno município. Quais serão as repercussões desse microssistema de corrupção em outros sistemas?
Repare como o que importa não são os “objetos” envolvidos, mas sim a relação entre o empresário e o prefeito. E esta, ao contrário do que aparenta, nunca é apenas bilateral. Diversos outros sistemas serão afetados. A população, a fauna, outras cidades e o ecossistema por onde o rio passar. Perceba também como a relação entre o empresário e o político não é episódica. Não é um raio que atinge uma pedra durante uma tempestade, sem maiores consequências. Um sistema complexo nunca opera como um sistema fechado, sempre há troca de informações com o resto do mundo, com o meio ambiente. As repercussões dessa troca são de difícil previsão em termos de proporções e impacto justamente porque a relação de causa e efeito nos sistemas complexos não são lineares.
Para navegar num cenário de corrupção sistêmica, e dissipar a neblina que encobre as interconexões e o verdadeiro propósito dos sistemas que estão ao nosso redor, é fundamental ter em mente que um problema complexo não significa dizer que ele é “complicado”. Embora usado de maneira indistinta no cotidiano, são conceitos diferentes.
Complexidade significa múltiplas interdependências. Quanto mais interações, mais complexo é o problema. No mundo real não existem sistemas isolados e independentes. Tudo está interconectado. Todas as coisas exercem e sofrem interferências recíprocas. O mundo é contínuo, do átomo à mais distante galáxia. O modo como esses sistemas estão conectados ditam seu comportamento. Por isso é que as interconexões de um sistema são tão importantes. Isso é especialmente relevante nos sistemas sociais, onde a corrupção está inserida.
Embora o mundo seja uma grande teia de relacionamentos, nossa tendência é enxergar linhas retas independentes, como se fossem pequenas frações autônomas da realidade. Em outras palavras, esquecemos que tudo é relacional. Para entender o significado de qualquer coisa precisamos relacioná-la com as demais e com o seu ambiente. Contexto é tudo.
Portanto, ao analisar um problema complexo é preciso lembrar que nosso “padrão de fábrica” é enxergar um recorte estático do ambiente onde aquele problema está inserido, deixando várias porções de fora.
Esse nosso jeito de ver o mundo em pedaços independentes tem uma explicação evolutiva e proporcionou avanços na nossa compreensão do mundo. Delimitar e reduzir um sistema é uma boa estratégia para, numa primeira aproximação, tentar entender um problema. Essa é a nossa configuração default e é muito útil. Sem esse reducionismo pedagógico seria extremamente difícil compreender o mundo.
O fato de ser útil, entretanto, não implica que seja um retrato fiel. E aqui reside a armadilha. Fazer distinções não implica em criar separações reais no mundo natural. Um dos grandes obstáculos na solução de um problema complexo é pensarmos que se trata de desafio isolado, evento pontual ou questão restrita a uma área em particular. Problemas complexos não são fotografias, que respeitam as fronteiras do enquadramento. Em sua essência eles são filmes em 3D sem a função pausar, em constante mudança. A fotografia ajuda a ter uma boa noção do problema, mas nunca representa exatamente o problema em toda a sua complexidade.
Portanto, a corrupção não é um problema exclusivamente “jurídico”. A violação às leis, normalmente tratada pelo “Direito”, é apenas um “recorte” da realidade, uma fotografia, que facilita nossa compreensão. Da mesma forma, usamos distinções criadas pelo homem que nos ajudam a investigar e desvendar o mundo, como a Física, a Química e a Biologia.
Entretanto, é fundamental ter em mente que esses limites são artificiais e traçados para fins didáticos, ou seja, as fronteiras entre as disciplinas da ciência são úteis para organizar os diversos ramos do conhecimento, mas, no mundo real, essas fronteiras não existem. As disciplinas da ciência são apenas diferentes aspectos da mesma realidade. Seria como olhar para o mesmo fenômeno com diferentes lentes.
Contudo, embora cada lente utilizada destaque apenas uma faceta do fenômeno, isso não significa que o resto fique apartado de forma estática, sem influenciar o objeto analisado.
Assim, não há uma real separação entre Economia e Psicologia. Não existe Biologia sem Química, nem está sem Física. São todas lentes utilizadas para enxergar a mesma realidade sob diversas perspectivas.
Para se lidar com problemas no mundo real é imprescindível não perder a visão do todo e lembrar que um problema complexo nunca é apenas “jurídico”, “político”, “cultural” ou “econômico”. Normalmente ele é um amálgama de tudo isso, em proporções que estão constantemente variando.
A dificuldade do combate à corrupção sistêmica ocorre justamente porque proporciona vibrações em outros sistemas, como o político, o econômico e o social. E isso é frequentemente ignorado por pessoas que lidam com problemas complexos.
A corrupção é um problema de alta complexidade. E, portanto, não deve ser vista como uma ilha isolada no meio do oceano. Quando lidamos com problemas complexos praticamente tudo é continente. Um continente dinâmico, em constante mudança, que se adapta conforme interage com outros sistemas.
Portanto, para entender o funcionamento da corrupção sistêmica no Brasil você pode olhar, num nível micro, para a relação entre um agente público e um particular ou, ampliando a visão, para o funcionamento de uma organização criminosa que atua em várias esferas de poder. Pode, ainda, ampliar ainda mais essa análise e olhar para o funcionamento do sistema político do país e suas conexões com outros sistemas, como a Política, a Economia e a História.
O importante não é quantas vezes você aumenta ou diminui esse zoom na sua análise. O modelo desenhado vai depender do seu objetivo e da necessidade do caso concreto. O essencial é não confundir o seu modelo com a realidade, ou seja, não esquecer que as partes e outros sistemas que ficaram de fora do foco (do recorte) continuam interagindo e interferindo no sistema em análise e a qualquer momento pode ser necessário ajustar esse foco.
Portanto, tenha em mente que a corrupção “simples” não existe. O que existe é uma corrupção “simplificada”. Isto é, recortamos aquele fato do emaranhado de interconexões para que o fenômeno fique compreensível e, assim, possamos dar um tratamento (penal) ao caso. Esse tipo de intervenção pontual, embora útil e necessária, não cura a doença. Além disso, gera um efeito colateral. Passa a falsa sensação de que o remédio funciona indistintamente e que, dessa forma, basta ser replicado em grande escala para resolver a corrupção sistêmica. É justamente aqui que reside o grande equívoco e as consequentes desilusões.
AUTOR
SÉRGIO BRUNO CABRAL FERNANDES – Promotor de Justiça no Distrito Federal e mestre em Direito pela Universidade Cornell (EUA)