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Judiciário

Contas rejeitadas: nem tudo o que reluz é ouro

A irregularidade na prestação de contas junto ao TCU ou TCE, ou a presença na lista de gestores com contas reprovadas emitida a cada ano eleitoral, por si só, não torna inelegível o gestor

Dúvida frequente, de dois em dois anos, e que causa verdadeiro frisson dentre aqueles que pretendem submeter seus nomes ao crivo do povo brasileiro, relaciona-se com o fato do ex-gestor ter seu nome incluído na lista expedida pelo Tribunal de Contas da União-TCU e Tribunais de Contas dos Estados-TCE e/ou ter contas rejeitadas com trânsito em julgado, pelos mesmos Órgãos, antes da fase de convenções.

A razão do alvoroço é que se tornou comum e popular a afirmação de que quem está na lista não pode se candidatar porque teve contas julgadas irregulares, o que faz dele inelegível. Ledo engano. Nem toda conta julgada irregular ou rejeitada conduz à inelegibilidade e afirmo isso porque a rejeição de contas de convênio pelo órgão competente, TCE ou TCU, pode vir a conduzir à inelegibilidade, mas não torna o cidadão inelegível, e isto porque compete à Justiça Eleitoral assim o reconhecer.

Imaginem a hipótese de um ex-gestor ou mesmo gestor atual que chegando ao comando do município, sem que tenha havido a transição constitucional, se depara com o município inadimplente porque o seu antecessor deixou de prestar contas de verba federal ou estadual recebida mediante convênio. Cabe a ele acionar o Prefeito que o antecedeu e representar ao MP dando notícia da omissão para que sejam adotadas as medidas cabíveis e suspender a inadimplência. Se já instalada a Tomada de Contas Especial, servem também tais medidas para resguardá-lo de eventual julgamento junto ao órgão de contas que lhe seja desfavorável, vez que a obrigação passa a lhe competir. Se não tiver adotado tais providências, uma vez prestadas as contas de forma intempestiva, elas serão sempre consideradas irregulares, ainda que a despesas tenha sido considerada válida, ocasião em que lhe será aplicada multa pela prestação de contas fora do prazo.

Observem que aqui estamos tratando apenas das contas que podem ser julgadas pelos órgãos de contas. Em se tratando de contas gerais de gestão, consoante já decidiu o Supremo Tribunal Federal, a competência para julgamento é reservada às Câmaras Municipais, tese que sempre foi por mim defendida mesmo antes de integrar o TRE/MA de 2009 a 2013 como Membro Titular na Classe dos Juristas. Durante muito tempo preguei sobre esse tema no deserto, mas esse aspecto abordarei em texto futuro.

O dever de prestar contas dos recursos recebidos e geridos possui natureza constitucional, estando previsto nos Arts. 70 e 71 da CF/88. Verbis:

Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.  

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:

I – apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento;

II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

Com efeito, os mencionados dispositivos estabeleceram a obrigatoriedade de prestar contas e quem tem a competência para apreciá-las. Aplica-se ao TCE no tocante a convênios estaduais por aplicação do princípio constitucional da simetria com o centro. A omissão no dever de prestar contas caracteriza improbidade administrativa, consoante estabelecido no Art. 37, § 4º da Constituição e no Art. 11, inciso VI da Lei Federal n.º 8.429/92 com as alterações produzidas pela Lei n.º 14.230/2021. Senão vejamos:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:  

4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:

VI – deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades;

Convém observar que, nos dias atuais, a improbidade administrativa, para ser caracterizada, exige a concorrência de alguns elementos, quais sejam a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, imparcialidade e de legalidade do dever de prestar contas, quando esteja obrigado a fazê-lo, mas desde que disponha de condições para isso, objetivando ocultar irregularidades.

No exemplo em apreço, o que se tem é uma obrigação não adimplida do prefeito anterior em prestar contas de convênio firmado com a União. Em casos desse jaez, se aquele que deveria prestar contas se omite no dever de fazê-lo, compete ao novo gestor adotar as medidas desde muito definidas na Instrução Normativa n.º 1 da Secretaria do Tesouro Nacional, segundo a qual, para suspender a inadimplência do ente federativo o novo alcaide deverá acionar judicialmente o seu antecessor, bem como representar ao Ministério Público para a adoção das medidas cabíveis.  

Quando se analisa processos semelhantes ao exemplo, subtrai-se o entendimento de que o novo gestor terá ou tem as contas do convênio julgadas irregulares com imputação de multa, a qual deverá ser mantida durante toda a fase recursal, seja após manejo dos eventuais embargos de declaração ou do recurso de reconsideração, pela omissão no dever de prestar contas do convênio. Não adiantará pleitear aprovação com ou sem ressalvas sob o argumento de ausência de má-fé, prescrição ou o que quer que seja visto que a conduta omissiva já se perfectibilizou. A multa não será retirada. O (os) recurso (s) poderá (ão) até vir a ser conhecido (s) se presentes os requisitos de admissibilidade, mas não será (ão) provido (s). A omissão no dever de prestar contas é ação continuada que perdura até que sejam apresentadas as contas e somente a partir dessa data poderia ser contado eventual prazo prescricional (o Supremo Tribunal Federal entende ser hoje de cinco anos enquanto parte do TCU entendia e entende ser decenal). Se não tiver operado a prescrição dentro desses parâmetros e sendo a multa aplicada uma sanção decorrente da conduta omissiva de prestar contas, acionar o ex-gestor e representar ao MP contra ele, entende o TCU por manter a multa em casos como tais. Registre-se que as contas, mesmo intempestivas, podem ser consideradas aptas a comprovar a regularidade da utilização dos recursos, não gerando imputação de débito.

É importante destacar que a rejeição de contas ou, para melhor entendimento, o reconhecimento de irregularidade na prestação de contas pelo TCU ou TCE, ou a simples presença na lista de gestores com contas reprovadas emitida a cada ano eleitoral pelo TCU – ou TCE, se as contas forem de convênio com o Estado – (e isto na hipótese de falha na elaboração da lista), por si só não torna inelegível o responsável pelas contas. O TCU ou TCE encaminha a lista daqueles que tiveram contas julgadas irregulares à Justiça Eleitoral, a quem compete, após processo em que se garanta o contraditório e a ampla defesa, declarar a inelegibilidade de quem pretenda ser candidato. Não cabe, portanto, ao TCU, julgar se uma pessoa é elegível a um cargo político. Neste sentido, dispõe o Art. 1º, inciso I, alínea “g” da Lei Complementar n.º 64/90 com as alterações promovidas pela Lei Complementar n.º 135/2010 (Lei de Ficha Limpa):

Art. 1º São inelegíveis:

I – para qualquer cargo:

g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;        

Como se vê, a rejeição das contas pelo TCU (órgão competente para apreciar as contas objeto de convênio firmado com a União) ou TCE, se o convênio for com o Estado, só configura inelegibilidade quando a irregularidade das contas for insanável e configure ato doloso de improbidade administrativa, salvo de tiver sido suspensa ou anulada pelo Judiciário. No caso do exemplo em testilha, a conduta omissiva não pode ser reconhecida como improbidade administrativa, vez que a omissão não foi dolosa, tanto que as contas foram prestadas, mesmo intempestivamente, e foram consideradas satisfatórias, tanto que não houve imposição de débito, atraindo a incidência, na espécie, da Lei Complementar n.º 184/2021. In Litteris:

LEI COMPLEMENTAR Nº 184, DE 29 DE SETEMBRO DE 2021

Art. 1º  Esta Lei Complementar altera a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, para excluir da incidência de inelegibilidade prevista na alínea “g” do inciso I do caput do art. 1º da referida Lei os responsáveis que tenham tido suas contas julgadas irregulares sem imputação de débito e com condenação exclusiva ao pagamento de multa.

Art. 2º O art. 1º da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, passa a vigorar acrescido do seguinte § 4º-A:

“Art. 1º ……………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………

4º-A. A inelegibilidade prevista na alínea “g” do inciso I do caput deste artigo não se aplica aos responsáveis que tenham tido suas contas julgadas irregulares sem imputação de débito e sancionados exclusivamente com o pagamento de multa.

Indiscutível, pois, não haver, no caso sub examine, inelegibilidade do gestor ou ex-gestor, haja vista que não houve imputação de débito na rejeição das suas contas, não configurando improbidade administrativa sua conduta omissiva, vez que não visava ocultar irregularidades, pelo menos em tese, e não houve prejuízo ao erário, vez que não houve imputação de restituição de qualquer valor.

Um eventual pedido de registro de candidatura poderia até ser atacado mediante Ação de Impugnação de Registro de Candidatura-AIRC, contudo sem possibilidade de êxito, pelo menos não por esse motivo.

Flui remansosa a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral em casos dessa natureza:

“[…] Inelegibilidade. Rejeição de contas públicas. Art. 1º, i, g , da LC 64/90. […] 4. De acordo com o entendimento desta Corte, ‘a inelegibilidade da alínea g não incide nas hipóteses em que, a despeito da omissão do dever de prestar contas ou de sua apresentação extemporânea, for demonstrada a regular aplicação dos recursos financeiros e a falta de prejuízo ao erário’ […].” (Ac. de 10.11.2022 no RO-El nº 060031754, rel.  Min. Benedito Gonçalves.)

“[…] 1. Consoante a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, a inelegibilidade do art. 1º, I, g , da LC 64/90 não incide nas hipóteses em que demonstrada a regularidade da aplicação dos recursos financeiros e a ausência de prejuízo ao erário, a despeito da omissão do dever de prestar contas ou de sua apresentação extemporânea. […] 2. O acórdão embargado incorreu em omissão acerca de premissa fática fundamental para a solução da controvérsia. No caso, conforme expressamente assentado no acórdão regional, o Tribunal de Contas da União concluiu em sede de tomada de contas especial pela regularidade da aplicação de recursos oriundos de convênio federal, afastando, inclusive, a imputação de débito. […]” (Ac. de 20.5.2014 nos ED-AgR-REspe nº 27272, rel. Min. João Otávio de Noronha.)

Assim sendo, ante a previsão legal expressa e ainda pelo fato não se enquadrar nos ditames da alínea “g” do Inciso I do Art. 1.º da Lei Complementar n.º 64/90, tem-se que a rejeição de contas que se enquadre nesses parâmetros, sem imputação de débito e apenas com aplicação de multa decorrente da intempestividade, não conduz ao reconhecimento da inelegibilidade pela Justiça Eleitoral.  

Como se vê, em se tratando de rejeição de contas sem imputação de débito e com aplicação apenas de multa, não há que se falar em inelegibilidade. Em matéria eleitoral, nem tudo o que reluz é ouro.

Sobre o autor

Imagem do autor Sérgio Murilo de Paula Barros Muniz

Sérgio Murilo de Paula Barros Muniz

Sérgio Murilo de Paula Barros Muniz, advogado municipalista e eleitoralista. Professor especialista livre docente em Direito Processual Civil. Professor de Direito Eleitoral e Partidário. Mestre em Direito e Afirmação de Vulneráveis pela Universidade Ceuma. Membro Titular do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão por dois biêniosconsecutivos, de 2009 a 2013, Classe dos Juristas. Membro do Colégio Permanente de Juristas Eleitoralistas do Brasil-COPEJE, Membro Consultor da Comissão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Membro da Comissão de Advocacia Eleitoral da OAB-MA, Vice-Presidente do Observatório do Poder Judiciário da OAB-MA e Presidente da Comissão de Transparência e Combate à Corrupção da OAB/MA.

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