Internacional
Por que a Ucrânia invadiu a região russa de Kursk?
Pela primeira vez desde o início da guerra, tropas ucranianas avançam pelo território russo. Para analistas, investida é sinal de uma nova – e arriscada – estratégia
Após mais de dois anos de combates para repelir a invasão russa, a Ucrânia parece estar mudando de estratégia – e deu o “primeiro passo” nesse sentido ao enviar seus soldados em missão à região russa de Kursk.
A análise é da especialista em política externa e de segurança Jen Spindel, que leciona na Universidade New Hampshire, nos Estados Unidos. “A Ucrânia não pode continuar lutando essa guerra da mesma forma que o fez nos últimos dois anos. O país simplesmente não tem gente nem armas o suficiente para isso”, afirma. “A Rússia é muito maior, tem mais militares.”
Essa mudança de estratégia “rumo a uma guerra de exaustão em vez de uma guerra em pé de igualdade”, “mais assimétrica”, já havia sido recomendada por Spindel e outros especialistas em artigo publicado na revista americana Foreign Affairs. Isso significaria não confrontar em campo aberto o Exército russo, que sob muitos aspectos está em vantagem; em vez disso, as tropas ucranianas deveriam recorrer a táticas mais adequadas à sua força e ao seu equipamento. E é justamente isso que parece estar acontecendo em Kursk.
“A Ucrânia está mostrando que o território russo não é mais intocável, e que vai atacá-lo para forçar a Rússia a deixar de bombardear e causar destruição na Ucrânia.”
O avanço sobre Kursk é o primeiro de tropas oficiais ucranianas em território russo desde o início da guerra, em fevereiro de 2022. Até então só tinha havido pequenas incursões, em 2023, e todas protagonizadas por tropas de dissidentes russos que lutam no lado ucraniano.
Por que a Ucrânia invadiu Kursk?
Passada uma semana desde o início do avanço ucraniano, Kiev vem evitando fornecer um quadro geral sobre a operação. O presidente Volodimir Zelenski apenas mencionou “ações para empurrar a guerra para o território do agressor”. Um militar ucraniano do alto escalão disse à agência de notícias AFP no fim de semana que “milhares” de soldados ucranianos estão envolvidos na operação, que visaria forçar a dispersão da linha de combate russo e “desestabilizar” a situação.
Nesta segunda-feira (12/08), o comandante-chefe do Exército ucraniano, Oleksandr Syrskyi, se pronunciou pela primeira vez sobre a “operação ofensiva na região de Kursk”. Segundo o general, a Ucrânia controla cerca de 1.000 km² em solo russo.
Também nesta segunda, o presidente russo Vladimir Putin afirmou em reunião com altos oficiais militares que a ofensiva era uma tentativa de Kiev de “melhorar sua posição para futuras negociações”, mas sem perspectiva de sucesso. O principal objetivo da Rússia agora seria “espremer” e “expulsar o inimigo”.
Segundo fontes russas, a invasão ucraniana começou em 6 de agosto, com o avanço das tropas por ao menos dez quilômetros Rússia adentro. Outros veículos afirmam que os soldados avançaram por cerca de 30 quilômetros, tomando pequenos vilarejos pelo caminho, e que a situação estaria mudando de forma muito rápida. Já o Ministério da Defesa russo alega ter detido o avanço ucraniano e estar combatendo em dois subdistritos na fronteira.
Uma das principais preocupações de Moscou é a usina nuclear de Kursk. Os combates, porém, estariam sendo travados a pelo menos 30 quilômetros de distância dali, segundo o noticiário russo.
“Bom para a moral das tropas, mas insignificante para a guerra”
O avanço ucraniano seria “resultado de um planejamento cuidadoso” por parte de Kiev e do “fracasso total da inteligência russa”, analisa o coronel das Forças Armadas da Áustria e historiador militar Markus Reisner.
Reisner atribui a Kiev uma “clara vitória” em termos de propaganda, já que a ação desviou todas as atenções da região ucraniana do Donbass para a russa Kursk, mais ao norte. As forças russas têm avançado lentamente em Donbass na direção de cidades como Chasiv Yar e Pokrovsk. Se a Ucrânia for capaz de manter o controle da região de Kursk, isso irá forçar um reagrupamento das tropas russas e reduzir a pressão no Donbass, opina o historiador.
Especialista em assuntos militares no Conselho Europeu para Relações Exteriores, Gustav Gressel é menos otimista, referindo-se à ação em Kursk como “boa para a moral [das tropas], mas insignificante na guerra”.
“Não houve nenhum sinal de que a Rússia esteja retirando tropas do leste para deter o avanço ucraniano”, afirma Gressel. Porém, nos últimos dias houve relatos – não confirmados – de que a Rússia estaria deslocando parte das tropas do nordeste da Ucrânia para Kursk.
Ainda assim, Gressel pondera que a Rússia, por ter vantagem militar em relação à Ucrânia, é quem sai ganhando com a extensão do front: “A Rússia é a principal beneficiária de uma extensão da linha do front para dentro do território russo, porque isso demanda as forças ucranianas ainda mais.”
Instrumento de barganha?
Alguns especialistas, porém, afirmam que o avanço da Ucrânia sobre Kursk pode ter outros objetivos, como a melhora da posição de Kiev nas negociações de paz com a Rússia – essa é a suspeita de Putin.
Outra hipótese é que a ação vise aumentar a moral das tropas ucranianas, que “há um ano e meio estão ‘só’ defendendo suas posições em uma desgastante guerra de atrito”, analisa o colunista e especialista em Ucrânia Winfried Schneider-Deters. Ele argumenta que, para os soldados, essa ofensiva é importante – mais ainda por se dar em território inimigo.
“É possível que a liderança ucraniana queira demonstrar à Rússia, mas principalmente ao Ocidente, que a Ucrânia não esgotou suas forças”, afirma Schneider-Deters, e “que, com um maior fornecimento de armas ocidentais, ainda tem a possibilidade de vencer a guerra”.
EUA reagem com cautela
Para Schneider-Deters, o avanço ucraniano sobre Kursk marca uma ruptura e já era esperado há tempos, mas antes teria sido provavelmente barrado pelo Ocidente – principalmente pelos Estados Unidos – devido à preocupação com a expansão do conflito. Que a Ucrânia tenha conseguido se impor desta vez, é algo que o analista considera “correto”.
Até bem pouco tempo, Washington, Berlim e outros governos proibiam a Ucrânia de usar suas armas contra o território russo. Isso mudou em maio de 2024, após a ofensiva russa em Kharkiv. A permissão, no entanto, ficou limitada à região fronteiriça. Mísseis como os ATACMS dos EUA continuam permitidos apenas em território ucraniano ocupado.
Até agora, os EUA reagiram com cautela à investida contra Kursk. Jen Spindel palpita que Washington manteve muitas conversas telefônicas de alto nível com Kiev para desescalar a situação.
Até onde as tropas ucranianas vão avançar?
Spindel pontua que, para atingir seus objetivos, a Ucrânia não precisa ir “particularmente longe” geograficamente. “Não acho que ninguém queira ver isso escalar para um conflito onde a Ucrânia envia tropas até Moscou, ou drones ou aviões”, afirma, justificando que quanto mais as tropas ucranianas avançarem, maior será o risco de ficarem sem suprimentos.
Segundo ela, os avanços ucranianos recentes sobre áreas militares e de armazenagem de armas são “significativos o suficiente para caracterizarem uma operação clara dentro da Rússia, mas não ousados a ponto de arriscar uma escalada muito maior da guerra”.
A Ucrânia, segundo a professora, precisa se equilibrar e demonstrar apreço por seus parceiros no Ocidente. Mas ela diz acreditar que o ataque a Kursk não será o último.
“Minha aposta é de que veremos cada vez mais operações como essa, mas que a Ucrânia tentará mantê-las surpreendentes, como foi com Kursk”, afirma. “A Ucrânia não pode se equiparar ao tamanho das tropas russas, mas pode continuar a recorrer a táticas superiores e à surpresa para tentar desestabilizar a Rússia.”