Saúde
A nova lei de laqueadura tubária
Examinamos em que condições o(a) médico(a) obstetra é obrigado(a) a realizar uma laqueadura tubária e de que forma pode fazer uma recusa fundamentada
Implicações jurídicas e éticas para a prática obstétrica
Panorama Legislativo e Prático
A Lei nº 14.443/2022, que entrou em vigor em março de 2023, trouxe significativas alterações na regulamentação da esterilização cirúrgica, especialmente a laqueadura tubária, permitindo a realização do procedimento durante a cesariana, o que tem suscitado dúvidas e preocupações entre os profissionais de saúde, particularmente os obstetras.
Observa-se na prática que equipes de Obstetrícia manifestam inseguranças e desconfortos na condução dos casos de laqueadura prevista por lei, visto que, até o momento, algumas instituições não realizam laqueaduras tubárias durante a cesariana, exceto em situações de risco de morte materna ou impossibilidade de gestação futura por histórico médico.
Diante desse cenário, torna-se imperativo esclarecer se a nova legislação impõe ao obstetra a obrigação de realizar o procedimento e quais seriam as possíveis implicações legais em caso de recusa fundamentada do profissional. Ademais, é relevante examinar as restrições internas de determinadas instituições quanto à realização indiscriminada da laqueadura tubária, e se tais restrições se aplicam em casos de indicação médica.
Portanto, este estudo propõe-se a analisar as implicações legais e éticas da nova legislação para a prática obstétrica, com ênfase na autonomia do paciente e nos direitos fundamentais envolvidos.
Obrigação do Obstetra em Realizar o Procedimento
Inicialmente, cumpre observar que, conforme disposto no artigo 10 da Lei Nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, alterado pela Lei nº 14.443/2022, a esterilização voluntária é permitida nas seguintes hipóteses:
I – em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de 21 (vinte e um) anos de idade ou, pelo menos, com 2 (dois) filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de 60 (sessenta) dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, inclusive aconselhamento por equipe multidisciplinar, com vistas a desencorajar a esterilização precoce; (Redação dada pela Lei nº 14.443, de 2022)
II – risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos.
Não obstante, é importante verificar as disposições dos parágrafos do referido dispositivo:
§ 1º É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado, após a informação a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão e opções de contracepção reversíveis existentes.
§ 2º É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.
§ 2º A esterilização cirúrgica em mulher durante o período de parto será garantida à solicitante se observados o prazo mínimo de 60 (sessenta) dias entre a manifestação da vontade e o parto e as devidas condições médicas. (Redação dada pela Lei nº 14.443, de 2022)
§ 3º Não será considerada a manifestação de vontade, na forma do § 1º, expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente.
§ 4º A esterilização cirúrgica como método contraceptivo somente será executada através da laqueadura tubária, vasectomia ou de outro método cientificamente aceito, sendo vedada através da histerectomia e ooforectomia.
§ 5º Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges. (Revogado pela Lei nº 14.443, de 2022)
§ 5º (Revogado). (Redação dada pela Lei nº 14.443, de 2022)
§ 6º A esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei.
Assim, é primordial verificar a manifestação de vontade da paciente, registrada em documento escrito e assinado, após ter sido informada sobre os riscos da cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de reversão e alternativas contraceptivas reversíveis disponíveis. Tal manifestação referente à esterilização cirúrgica durante o período de parto será garantida se observados o prazo mínimo de 60 (sessenta) dias entre a manifestação da vontade e o parto, além das condições médicas apropriadas.
Isto é, não existam condições médicas adequadas para a realização do procedimento, o médico pode, fundamentadamente, recusar-se a realizá-lo, sob pena de infringir a lei e colocar em risco a saúde da paciente.
É importante frisar que, atualmente, por meio do método clínico da “Medicina Centrada na Pessoa”, um dos aspectos mais importantes na relação formada entre o paciente e o médico é o reconhecimento da autonomia do paciente, possibilitando-se a construção da tomada de decisões compartilhadas, de um plano conjunto no manejo do tratamento médico1.
Em paralelo, há uma tendência doutrinária e jurisprudencial que começa a ganhar corpo: o consentimento entendido como processo, isto é, há um processo de obtenção do consentimento informado e escolha esclarecida, o qual “estabelece não um ato, mas um processo, que tem como resultado o surgimento de responsabilidades compartilhadas”2.
Assim, quanto à obrigação do obstetra em realizar o procedimento, entende-se que cabe ao médico o ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de esclarecer e obter o consentimento informado da paciente3, bem como de demonstrar que, mesmo havendo consentimento tempestivo para a realização do procedimento, este não foi realizado devido à falta de condições médicas adequadas para tanto.
Restrições Decorrentes de Orientações Religiosas
A despeito de algumas instituições possuírem orientações religiosas que influenciam suas práticas médicas, é crucial salientar que qualquer entidade deve observar os ditames legislativos vigentes.
Deveras, a Lei nº 9.263/96 autoriza a esterilização voluntária exclusivamente nos casos elencados no art. 10, após atendimento de requisitos relacionados à idade, número de filhos, consentimento expresso e procedimentos preliminares4.
Um caso emblemático que ilustra os desafios éticos e legais na aplicação da nova lei é o de Janaína de Mococa, onde uma esterilização compulsória foi judicialmente determinada para uma mulher dependente química. Esta decisão foi posteriormente considerada uma grave violação dos direitos fundamentais da paciente, ressaltando a importância de uma abordagem ética e rigorosa na aplicação da legislação.
“3.7.2.O caso Janaína de Mococa: esterilização compulsória determinada pelo judiciário
O caso foi objeto da Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público – SP, cidade de Mococa, para compelir a Prefeitura Municipal a realizar cirurgia de laqueadura ou esterilização compulsória no ato do parto de uma mulher dependente química, moradora de rua e que gestava o sexto filho. Os outros cinco filhos nasceram com problemas de saúde e foram inseridos em programas de adoção. A mulher, que reincide no uso de drogas após internações, não manifestou seu consentimento ao procedimento, mormente porque sua capacidade já é duvidosa. Também não foi submetida à ação de Interdição e sua representação processual não ocorreu porque a ACP seguiu sem curador especial, violando-se ampla defesa e contraditório.
O pedido inicial foi deferido em tutela de urgência mesmo sendo a esterilização irreversível , contrariando o disposto no CPC quanto à proibição de irreversibilidade da medida. O cabimento da ACP era bastante questionável, já que na hipótese estava ausente qualquer interesse individual indisponível em favor da hipossuficiente . A ordem foi concedida para ser executada pelo serviço de saúde municipal e reiterada sob pena de descumprimento da ordem judicial. A Municipalidade recorreu.
O caso foi submetido ao TJSP pela Apelação da Prefeitura de Mococa de n. 1001521-57.2017.8.26.0360 , na 8ª Câmara de Direito Público, e em 23.05.2018 foi julgada procedente por unanimidade com declaração de votos convergentes. O Des. Relator Paulo Dimas declarou em seu voto que a ação era verdadeira aberração jurídica com pedido impossível na ordem jurídica – não existe nenhuma autorização legislativa para a esterilização forçada no direito brasileiro – e ressaltou tratar-se de esterilização compulsória eugênica .
O Tribunal considerou também que foi violada a dignidade de Janaína, sua intimidade, liberdade, seu corpo, autonomia e seu direito de defesa . A Lei n. 9263/96 autoriza a esterilização voluntária exclusivamente nos casos elencados no art. 10 e após atendimento de requisitos relacionados à idade, número de filhos, consentimento expresso e procedimento preliminar . A ablação dos órgãos sexuais como útero, trompas e ovários só é permitida por exigência médica para salvaguardar a vida da pessoa como diz a regra do artigo 13 , CC , ou através do livre e informado consentimento de pessoa capaz que esteja apta aos ditames da lei do planejamento. Em nenhum dos contextos se enquadrava o caso de Janaína, mas cuidava-se de uma mulher pobre, drogada, doente e esquecida pelo Estado, sociedade e família, tornando-se um problema social de raízes sólidas na criminalidade ascendente e na dependência química dos desfavorecidos.
Janaína é o retrato da omissão estatal com relação a pessoas em situação de rua, à educação sexual e preventiva da fertilidade, ao enfrentamento ao crime organizado, aos pontos de distribuição das drogas e ao tratamento com reinserção dos dependentes à sociedade. A consequência são as Janaínas e os filhos das Janaínas deixados em lares adotivos. O fato é que ordens ilegais desse jaez não solucionam a reiterada omissão estatal e se configuram como gravíssima violação aos direitos humanos básicos dessa mulher:
(…) Janaína é dependente química, hipossuficiente e vulnerável, mãe de seis filhos em situação de abandono, pobre, ébria habitual, já internada compulsoriamente, oscila nas declarações de vontade e quiçá, pode ou não ser capaz, age de forma irresponsável no planejamento familiar, e oferece riscos de nova gestação. E isso não lhe retira o direito de ser tratada com dignidade, liberdade e igualdade, sem preconceito social e discriminação no gozo de direitos fundamentais e da personalidade, pois esse é o papel do Estado Social e Democrático de Direito (artigos 1º, II e III, 3, I, III e IV, 5, II, III e X, da Constituição) .
O Estado via poder executivo violou seus direitos e o Estado juiz também. Na declaração de voto convergente do Des. Leonel Costa, constou “estamos diante de uma aberração teratológica inusitada, louvando-se a intervenção serena e na defesa dos valores constitucionais e democráticos do Douto Procurador do Município que contestou a ação e interpôs recurso de Apelação” .
Os julgadores remeteram as peças do processo à Corregedoria Geral de Justiça e à Corregedoria Geral do Ministério Público para abertura de processos administrativos disciplinares contra o promotor de justiça e o magistrado. O Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública ajuizou ação Indenizatória em favor de Janaína e contra o Estado de São Paulo pela violação de seus direitos fundamentais. Foi noticiado que o juiz Renato Augusto Pereira Maia condenou o Estado ao pagamento de indenização no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais) por inadmissível preconceito social com pessoas pobres e violação da autonomia de vontade. A decisão está sujeita ao reexame necessário pelo duplo grau de jurisdição .” (Dufner, 2023)
Sendo assim, a natureza religiosa da instituição não é uma condição sine qua non para a realização do procedimento, pois no caso concreto, deve ser apurado se as exigências legais foram devidamente cumpridas.
Em relação ao questionamento sobre a permanência da restrição em casos de indicação médica (paciente com patologias que ponham sua vida em risco em futuras gestações), cumpre informar que cabe ao médico avaliar as condições médicas para a realização do procedimento, bem como garantir o consentimento tempestivo da paciente.
Por fim, frise-se que, embora o Código de Ética Médica não exija que o consentimento do paciente seja formalizado por escrito, é recomendável que, diante da evolução na prestação de serviços médicos e dos altos índices de processos ético-profissionais e judiciais contra médicos, se adote uma maior formalidade na concessão e no registro de informações5.
Conclusão
Em vista do exposto, conclui-se que a obrigação do obstetra em realizar a laqueadura tubária está condicionada ao cumprimento dos requisitos legais e à existência de condições médicas adequadas. Assim, a recusa fundamentada é permitida, desde que justificada e assegurada a saúde da paciente.
Noutro ponto, as instituições, independentemente de suas orientações religiosas, devem observar a legislação vigente e não podem impor restrições indiscriminadas à laqueadura tubária, desde que cumpridas todas as exigências legais e médicas.
Por fim, a interrupção legal de gestação deve ser tratada com cautela e respeito às decisões judiciais, garantindo o atendimento humanizado e a devida regulação para outra unidade em caso de recusa fundamentada.
Diante de toda análise, verifica-se que a nova legislação, ao promover a autonomia do paciente e estabelecer diretrizes claras para a prática médica, exige uma abordagem ética e jurídica rigorosa, sendo imprescindível que os profissionais de saúde estejam bem-informados sobre as implicações da lei e desenvolvam práticas que assegurem tanto a segurança jurídica quanto o atendimento humanizado.
Notas
1 BALINT, Michael. The doctor, his patient and the illness . 2. ed. Filadélfia: Churchill Livingstone, 2000.
2 DANTAS, Eduardo; NOGAROLI, Rafaella. Consentimento informado do paciente frente às novas tecnologias da saúde (telemedicina, cirurgia robótica e inteligência artificial). Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde , Coimbra, n. 13, ano 17, p. 25-63, jan./jun. 2020.
3 NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Referências In: NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Debates Contemporâneos em Direito Médico e da Saúde – Ed. 2023. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/debates-contemporaneos-em-direito-medico-e-da-saude-ed-2023/1804175589. Acesso em: 31 de Julho de 2024.
DUFNER, Samantha. Capítulo 3. Direitos Humanos das Mulheres In: DUFNER, Samantha. Famílias Multifacetadas – Ed. 2023. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/familias-multifacetadas-ed-2023/1929471953. Acesso em: 31 de Julho de 2024.
5 NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Referências In: NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Debates Contemporâneos em Direito Médico e da Saúde – Ed. 2023. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/debates-contemporaneos-em-direito-medico-e-da-saude-ed-2023/1804175589. Acesso em: 31 de Julho de 2024.
Sobre o autor
Mestre em Direito, Governança e Políticas Públicas pela UNIFACS – Universidade Salvador | Laureate International Universities. Pós-graduado em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário pelo Centro Universitário Estácio. Pós-graduado em Licitações e Contratos Administrativos pela Universidade Pitágoras Unopar Anhanguera. Atualmente, pós-graduando em Direito Societário e Governança Corporativa pela Legale Educacional. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio da Bahia. 1º Tenente R2 do Exército Brasileiro. Membro da Comissão Nacional de Direito Militar da Associação Brasileira de Advogados (ABA). Membro da Comissão Especial de Apoio aos Professores da OAB/BA. Professor Orientador do Grupo de Pesquisa em Direito Militar da ASPRA/BA. Membro do Conselho Editorial da Revista Direitos Humanos Fundamentais e da Editora Mente Aberta. Advogado contratado das Obras Sociais Irmã Dulce, com atuação em Direito Administrativo e Militar.