Educação & Cultura
A quem interessa um sistema “nacional” de cultura
Uma política de distribuição de dinheiro, ao invés de enriquecer, empobrece a cultura?
Desde a promulgação da Constituição de 1988, sobretudo após o sucesso orçamentário do Sistema Único de Saúde (SUS), cada área das políticas públicas busca criar o seu próprio sistema. No caso da cultura, o movimento, para tanto, intensificou-se a partir do começo do século em curso: primeiramente com debates [1]; depois, com a criação de normas. Agora, vivencia-se a fase da implantação.
Todos esses passos foram dados sob uma espécie de indução que envolve promessa e efetivo repasse de dinheiro, além da adesão a ideias e fórmulas pré-concebidas, fatores altamente desestimulantes da reflexão, pois sempre aparecem com a advertência (ou seria ameaça?) de que tais benefícios não podem esperar, em face do risco de serem perdidos, diante de eventuais demoras.
O passo mais significativo para a criação do sistema de cultura ocorreu com a promulgação da Emenda Constitucional nº 71/2012, que inseriu o Art. 216-A na Constituição Brasileira [2], cometendo, todavia, grandes equívocos, dois dos quais passam a ser enfocados.
O primeiro deles decorre do engessamento do SNC, o único sistema detalhado na Constituição em normas que são as mais difíceis de serem alteradas, o que é uma incongruência porque se trata daquele que deveria ser o mais flexível e adaptável dos sistemas, exatamente por se referir ao elemento potencialmente dinâmico da sociedade, a cultura.
O segundo problema a ser destacado reside na designação e, mais que isso, no efetivo tratamento de “nacional” dado ao sistema da cultura, algo que precisa ser explicado.
A ideia de uma cultura nacional é própria do Estado-Nação configurado no início do século XX, instituidor de modelos autoritários, a partir da ideologia de que a cada Estado (conceito jurídico-político) deveria corresponder uma única Nação (conceito político-social) e, para tanto, as diferenças culturais deveriam ser eliminadas, motivo pelo qual atuava-se em favor práticas culturais padronizadas, incluindo costumes, festas, datas comemorativas, língua etc.
Zygmunt Bauman é cirúrgico sobre o tema ao dizer que “a promoção pelo Estado da ‘cultura nacional’ foi uma proclamação da cultura como ‘sistema’ – uma totalidade encerrada em si mesma. Funcionava pela eliminação de todos os resíduos de costumes e hábitos que não se encaixassem no modelo unificado, destinado a se tornar obrigatório na área sob a soberania do Estado, agora identificada como território nacional” [3].
Francisco Campos, o intelectual mais apreciado do período autoritário de Getúlio Vargas, a esse respeito doutrinava que “a moderna teologia política é o resultado de uma cultura de massa, pois que, em cada época, os processos espirituais de integração política só podem ser determinados pelas formas expressivas ou dominantes da sua cultura” [4]. Defendia, portanto, uma cultura estatal ou estatizada com base na justificativa de que “o princípio de liberdade não garantiu a ninguém o direito ao trabalho, à educação, à segurança. Só o Estado forte pode exercer a arbitragem justa, assegurando a todos o gozo da herança comum da civilização e da cultura” [5].
Não é à toa que uma das principais legislações da Era Vargas, o Decreto-Lei nº 25/1937, se direciona a “organiza[r] a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional” [6], regido pelo critério da excepcionalidade dos bens a serem salvaguardados. Em sentido diferente é a democrática e pluralista Constituição de 1988, na qual o mesmo conteúdo é designado de “patrimônio cultural brasileiro”, pois interessa é que os bens representativos sejam vinculados ao Brasil, ainda que simples, desde que portem referência [7] até mesmo a um pequeno grupo social, sem a necessidade de perpassar toda a nação.
Problema adicional de nacionalizar um sistema de cultura, no Brasil, está na direta agressão à forma federativa de estado, que é cláusula jurídica irrevogável (pétrea), isso porque uma das principais características do federalismo é a de fazer conviver elementos de unidade (nacionais), como os direitos humanos, com elementos de diversidade (locais), estes que residem exatamente nas diferenças de culturas [8].
Seria possível cogitar que, no caso brasileiro, a palavra “nacional”, para adjetivar o sistema de cultura, não tem peso algum, pois tanto o Art. 216-A da Constituição, quanto a assombrosa Lei nº 14.835/2024 se esmeram em repetir expressões do tipo “diversidade das expressões culturais” [9], porém, as práticas de adesão, formulários, cursos nacionais, procedimentos, centralização de competências, de critérios para distribuição de recursos e da regulamentação do funcionamento do sistema, o tornam o mais centralizado de todos, superando até o SUS que, aliás, quando escrito por extenso, não possui a dita expressão “nacional”.
Claro que a interação (não a integração) de entes públicos para se ajudarem e cumprirem suas responsabilidades constitucionais comuns relativas à cultura deve ocorrer, porém, de modo a não ferir e nem mesmo ameaçar os valores acima mencionados, que hoje estão sob forte risco.
Resta saber quem se beneficia de um sistema “nacional” para o tema estudado, vindo à mente aqueles que querem controlar e limitar as potencialidades da diversidade cultural, pois como diz Zygmunt Bauman, “sistemas não gostam de áreas indefinidas nem de terras de ninguém”. E a consequência de tal controle e excludência, sempre atrelados a determinados objetivos, leva a uma situação ambígua, na qual se pode até adotar uma política de distribuição de dinheiro que, todavia, ao invés de enriquecer, empobrece a cultura.
Notas:
[1] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Federalismo Cultural e Sistema Nacional de Cultura: contribuição ao debate. Fortaleza: Edições UFC, 2010.
[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 de agosto de 2024.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura: tradução Carlos Alberto Madeiro – 1ª ed. – Rio de Janeiro: 2022, p. 59.
[4] CAMPOS, Francisco. O Estado nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001, p. 21.
[5] CAMPOS, Francisco. Obra citada, p. 59.
[6] BRASIL. Decreto-Lei nº 25, de 10 de novembro de 1937. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0025.htm. Acesso em: 15 de agosto de 2024.
[7] MAGALHÃES, Allan Carlos Moreira. Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo: comunidade e poder público na seleção dos bens culturais (Portuguese Edition). Editora Dialética. Edição do Kindle.
[8] ARRETCHE, Marta. Democracia, federalismo e centralização no Brasil (p. 195). SciELO – Editora FIOCRUZ. Edição do Kindle.
[9] BRASIL. Lei nº 14.835, de 4 de abril de 2024. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2024/lei-14835-4-abril-2024-795455-veto-171432-pl.html. Acesso em: 15 de agosto de 2024.
Sobre o autor
Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética – SP)