Judiciário
Fim de casamento: o amor, quem diria, foi parar na Justiça
A gênese de qualquer enamoramento, segundo Freud, é essencialmente narcísica. É que o amor consiste em supor o ideal de si no outro. Assim, criamos uma imagem ideal naquele a quem elegemos como objeto amoroso, que vem completar justamente o que falta em nós para chegarmos ao ideal sonhado. Por isso se diz, popularmente, que o que se ama no outro é a própria carência. No amor, prometo dar ao outro o que não tenho e, neste ato, me faço objeto de seu desejo.
O caminho natural do enamoramento é transformar-se em namoro, paixão e, quase sempre, em acasalamento. A “última” etapa do enamoramento, a conjugalidade, costuma muitas vezes transformar este ideal sonhado em pesadelo.
No casamento, quando se depara com o cotidiano, e o véu da paixão já não encobre mais os defeitos do outro, é que se constata uma realidade completamente diferente daquela idealizada. Pensa-se que houve engano na escolha do cônjuge ou companheiro: “Fui enganado”, “fui traído”, “meu casamento foi uma farsa”, etc. Frases e lamentações desta natureza são constantemente ouvidas pelos advogados que trabalhamos com o Direito de Família. Instala-se então o litígio conjugal. As partes, não tendo capacidade para resolver seus próprios conflitos, transferem esta responsabilidade para um juiz. E o amor, quem diria… foi parar na Justiça!
Velha história
O Judiciário é o lugar aonde as partes depositam seus restos. O resto do amor e de uma conjugalidade que deixou a sensação de que alguém foi enganado, traído. Como a paixão arrefeceu e o amor obscureceu, o “meu bem” transforma-se em “meus bens”. É impressionante como as versões de um mesmo casamento apresentam-se completamente diferentes, segundo o ângulo de cada parte. Quem terá razão neste fim de casamento? Existe uma verdade para o litígio conjugal, ou são apenas versões que fazem a-versões?
O Direito, até recentemente, insistia em dizer que havia um culpado. Em geral, esta culpa era atribuída àquele que teve uma relação extra-conjugal. Muitas vezes este culpado da separação foi, de alguma forma “empurrado” a fazer isto, pela falta de afeto e carinho, e se o fez é porque a relação já havia acabado. É a velha história: quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? Em outras palavras, quem traiu primeiro: aquele que não deu carinho e afeto, propiciando um espaço e esvaziando a relação ou quem foi buscar fora do casamento outra relação? Aquilo que o Direito considerava como causa de uma separação, podia não ser a causa, mas a consequência.
Emenda 66 e o vazio inexorável
A discussão de culpa no ordenamento jurídico brasileiro foi sepultada em 2010, com a Emenda Constitucional 66, que simplificou o sistema de divórcio no Brasil. Eliminou prazos para o divórcio, acabou com o inútil instituto da separação judicial. Foi um avanço. Substituiu o discurso da culpa, pelo da responsabilidade, afastando o Estado de determinar sobre questões de foro tão íntimo e privado. A culpa é paralisante do sujeito. E é muito mais fácil colocar no outro a culpa pelas próprias mazelas. Assim não me responsabilizo pelos meus atos. Essa alteração constitucional, ao trazer mais responsabilidade ao sujeito, é como se nos ensinasse: não é você quem me faz infeliz. Sou eu quem permito que você me faça infeliz.
Quando a conjugalidade chegou mesmo ao final, quando o amor e o desejo acabaram e não há mais interesses comuns para dar continuidade à relação, a separação, embora dolorosa, faz-se sem ódio e sem brigas. Mesmo assim, há sempre uma sensação de perda. E novamente o ser humano depara-se com seu inexorável vazio. Mas contra isto não há remédio. Somos mesmo seres de “falta”, e, portanto, algo em nos sempre faltará.
Não se pode ter tudo
O litígio conjugal, além de ser um sintoma de que algo continua para ser resolvido entre o casal, é uma tentativa de não perder nada. Todos os clientes nos dizem: “Só quero os meus direitos”! Mas estão sempre com a sensação de que estão perdendo algo e transferem e localizam esta perda para o valor da pensão alimentícia, na discussão de guarda de filho, no patrimônio, etc. Instala-se então o litígio para que um saia vitorioso, como se houvesse um perdedor e um ganhador. Ambos querem ganhar o máximo possível, como se pudessem tamponar a inevitável perda da separação. Não é possível ter tudo. Perde-se aqui, mas ganha-se ali. Em brigas de casais, não existe um vitorioso.
A separação, quando inevitável, como ato de responsabilidade, e às vezes um compromisso com a saúde, deve funcionar como um remédio, e também como um processo de libertação. Afinal, “se o anel que tu me deste era vidro e se quebrou…”.
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