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Judiciário

O júri perdoa; o STF, não

Supremo desafiou a soberania dos vereditos do júri e subverteu a lógica do julgamento segundo a íntima convicção

O júri estava para começar quando o promotor, velho tribuno daqueles corredores que antes negara nossa proposta de uma tese comum, nos chamou de volta à sala-secreta – minha chefe, uma igualmente experiente defensora pública, e eu, seu então estagiário.

O caso: um homem foi traído pela mulher e tentou matá-la a facadas. Dez facadas. Felizmente, ela sobreviveu. Aliás, estava ali agora. A vítima de uma tentativa de homicídio qualificado, um crime hediondo,[1] tinha acabado de chegar ao fórum da Barra Funda e quis falar com o promotor antes da sessão. Era urgente.

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“O filho precisa dele”, disse-nos a vítima ainda ofegante. “Eu até consigo pagar as contas, mas o menino sente falta do pai.” O pai era o réu que aguardava o julgamento, preso há dois anos. Dois anos de espera, de saudade. Dois anos para o perdão: “Eu sei que não tem o que fazer agora, e sei que nada disso importa aqui, mas eu o perdoo”, terminou ela em tom triste, com pesar.

O promotor refletiu um pouco, era uma situação delicada. Dois anos de prisão de um lado, dez facadas de outro. Ele andava pela sala em círculos, pensativo, enquanto a vítima permanecia em silêncio. Ela já havia dito tudo o que queria e agora seu olhar se perdia em um dos cantos da sala. Por fim, ele parou e deu um leve sorriso para nós, como quem diz com os olhos: “certo, vocês conseguiram”. A tese comum voltou à mesa.

A “conversa da tese comum” antes de um júri é praxe entre defensores públicos e promotores, sobretudo entre aqueles que já se conhecem dos corredores. Tese, porque será defendida perante o Conselho de Sentença composto pelos sete jurados. Comum, porque ao contrário do que sucede na maioria dos casos, é pactuada entre defesa e acusação e será sustentada por ambas as partes. É um acordo, um pleito conjunto.

Naquele dia, defesa e acusação concordaram em pedir clemência ao júri. Não era um dia de disputa, não houve réplica e nem tréplica. Não seria um júri “da noite”, só “da tarde”. Cada parte sustentou seus próprios argumentos do porquê não punir. Alguns mais fortes do que outros. Diferentes formas de um mesmo apelo.

Por volta das quatro horas, estava acabado. O veredito dos jurados se traduz nas suas respostas aos quesitos da lei: Sim, houve crime, a vítima foi esfaqueada (materialidade, primeiro quesito). Sim, foi o réu, ele confessou (autoria, segundo quesito). E sim, os jurados o absolvem apesar de tudo isso (quesito genérico).[2]

Apesar da vitória, não há grande alegria em um resultado como esse. Nem alívio. Apenas uma espécie agridoce de “justiça restaurativa”. Mesmo o réu ainda estava descrente e abalado. Ele se levantou devagar e olhou para a vítima do outro lado da sala, que o olhou de volta. Examinaram-se por um momento, em silêncio. Lembro de me perguntar se existia qualquer margem para reconciliação ali. Ainda não sei dizer. Como também não sei dizer se o crime irá ou não se repetir, mas dessa vez com resultado fatal. Pairava na sala ainda um sentimento estranho, uma pergunta: fizemos a coisa certa?

Foi então que aconteceu. Um jovem da plateia fez sinal para que eu fosse até ele. Era o irmão do réu, um adolescente de uns quatorze anos. Me pediu para falar com o irmão antes dos policiais recolherem-no. Perguntei ao juiz se era possível e ele, sem tirar os olhos da ata, assentiu.

O jovem atravessou a portinhola que separa a área de acesso ao público e caminhou ao encontro do réu. Não houve qualquer hesitação: os dois irmãos imediatamente se abraçaram e choraram juntos. O réu, bem maior que o irmão e ainda algemado, precisou “laçar” o caçula com seus braços tatuados, e o apertava contra o peito. O jovem o segurava com ainda mais força, como se não quisesse deixá-lo ir de novo. Acho que ele ainda não tinha se dado conta de que o irmão seria solto nas próximas horas. Foi um momento de grande emoção, mas não só para os dois. Uma senhora do júri também chorava com eles.

Naquele momento, o réu deixou de ser réu e foi um irmão. Por alguns instantes, pôde ser apenas isso e mais nada. Antes, na sala-secreta, ele fora também um pai. Não sei dizer qual imagem os jurados viram ao absolvê-lo. Talvez um deles tenha se lembrado daquela briga em casa que quase fora mais do que uma briga, e agradecido por nascer em um corpo menos propenso à raiva e mais autocontido. Ou até se perguntado como teria sido estudar direito e estar na cadeira do juiz, da acusação ou da defesa, e não na de jurado.

No fundo, a barreira que nos separa é um nada. Estamos todos tão propensos ao erro quanto ao acerto, somos ambíguos, falíveis e chegamos até ali sobretudo por circunstâncias alheias ao nosso querer. Os jurados inocentaram o réu, mas, de certa forma, também a si mesmos.

Jamais saberemos se os jurados pensaram no réu como pai, marido, irmão ou se pensaram em algo banal como o que iriam jantar depois. Mas eu penso até hoje no abraço entre os dois irmãos. Foi uma expressão de afeto, acolhimento e até de inocência. Um recomeço.

Talvez não seja possível perdoar um homicida. Mas é possível a um júri conceder-lhe clemência. Os motivos que nos levam a ser clementes são diversos e pessoais. Eles pertencem à esfera subjetiva que designamos por íntima convicção,[3] que não se sujeita a critérios jurídico-racionais de verificação e controle. Noutras palavras: o poder do júri não se subordina a razões, ao menos não da mesma forma que ocorre com o juiz estatal.[4]

A nossa Constituição prevê a “soberania” (art. 1º, inc. I) como primeiro fundamento do Estado brasileiro[5] e, ao mesmo tempo, reconhece a “soberania” dos veredictos do júri (art. 5º, inc. XXXVIII, “c”).[6] O duplo uso do termo “soberania”, próprio das discussões de Teoria do Estado, não é por acaso:[7] é uma opção consciente do legislador de transferir ao cidadão parcela do poder estatal de julgar.[8] O júri forma, por assim dizer, um Estado no Estado.

No momento de adesão ao contrato social, ou de “(re)fundar o Estado”[9],  nos encontramos sob o “véu da ignorância”[10] e não sabemos qual será o nosso papel na sociedade ora nascente.[11] Em tal cenário, nossa razão nos leva a desenhar instituições que assegurem mesmo ao mais desfavorecido na loteria da vida um mínimo existencial.[12]

Algo similar ocorre com o júri.[13] Se não sabemos qual será a nossa cadeira em um júri – dos jurados, do magistrado, da acusação, da defesa, da vítima ou do réu –, nossa intuição moral se inclinaria a um sistema que garanta até ao elo mais fraco dessa corrente a possibilidade de um julgamento não só legal, como também humano. Com sua grandeza e imperfeição.

Em um dos melhores diálogos do filme A Lista de Schindler, o capitão nazista Amon Göth e o empresário Oskar Schindler conversam sobre o que é poder. Para Göth, “poder é controle”. Já para Schindler, “poder é quando temos toda a justificativa para matar (ou condenar), e não o fazemos”. Ele continua: “(…) é o que o Imperador disse. Um homem rouba uma coisa, ele se ajoelha no chão. Ele implora por sua vida, ele sabe que vai morrer. E o Imperador… Perdoa ele. (…) Isso é poder”.[14] Esse é também o enredo do terceiro e último ato da ópera A Clemência de Tito, de Mozart, quando o Imperador Tito perdoa Sesto por seus delitos mesmo quando “Roma está abalada, a Majestade ofendida, as leis violadas, a amizade traída, o mundo, o céu, todos querem a sua morte”.[15]

A clemência é, assim, a expressão maior do poder ou da soberania do júri. Podemos absolver mesmo quando temos todas as razões do mundo para punir. Podemos absolver mesmo quando as teorias da pena gritam em sentido contrário. E podemos fazê-lo mesmo quando o Estado, na forma do juiz togado, puniria em nosso lugar. E isso não é contra a prova dos autos. É apesar delas.

O Supremo Tribunal Federal (STF), o mesmo que decidiu no mês passado que a soberania do júri permite a prisão imediata após a condenação, independentemente da pena aplicada ao réu,[16] decidiu no último dia 2 que a soberania não vai tão longe a ponto de permitir uma absolvição por clemência sem reservas (Tema Geral 1087). Para a nossa Suprema Corte, a clemência dos jurados poderá ser revista se não for “compatível com a Constituição, com os precedentes vinculantes do Supremo Tribunal Federal e com as circunstâncias fáticas apresentadas nos autos”.[17]

Contudo, a capacidade de perdoar em situações em que o Estado não o faria é justamente o fundamento da soberania do júri. Sem isso, ele perde a razão de ser. Em todo o resto, isto é, na avaliação de autoria e materialidade, o júri é um juiz togado, só que pior. É na clemência que ele encontra sua maior expressão. Submeter a íntima convicção do jurado ao crivo dos tribunais é substituí-la pela convicção dos tribunais. Como se tivéssemos que justificar as razões do nosso voto perante a Justiça Eleitoral.[18]

A clemência sempre será “compatível com a Constituição”, porque decorre da soberania constitucional dos vereditos do júri. E se a filtrarmos pelos “precedentes vinculantes do Supremo Tribunal Federal” e “pelas circunstâncias fáticas apresentadas nos autos”, no fim, estamos selecionando quais clemências valem e quais não valem. Uma forma de paternalismo e didatismo estatal,[19] que substitui a intima convicção por uma suprema convicção.

Nosso corpo de jurados, hoje, tem 11 ministros.


[1]Art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990: “São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados:

I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII e IX);”.

[2]Art. 483 do Código de Processo Penal:  Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:

II – a autoria ou participação;

III – se o acusado deve ser absolvido;

[3]Nos termos da metafísica de John Searle, a “íntima convicção” traduziria algo como uma esferaepistemologicamente subjetiva, pois seu critério de verdade depende das preferências e desejos do observador: SEARLE, John R. Mente, linguagem e sociedade. Filosofia no mundo real. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 47/48.

[4]Adaptação da formulação do professor Luís Greco, do direito como “tentativa de subordinar o poder a razões”: GRECO, Luís. As razões do direito penal: quatro estudos. Tradução e organização de Eduardo Viana, Lucas Montenegro e Orlandino Gleizer. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019.

[5]Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

[6]Art. 5º, inc. XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

  1. a) a plenitude de defesa;
  2. b) o sigilo das votações;
  3. c) a soberania dos veredictos;

[7]Por todos, ver o ótimo artigo de Hugo Soares a respeito da clemência no Tribunal do Júri:  Soares, H. (2021). Clemência no Tribunal do Júri? Reflexões derivadas do argumento a fortiori trazido no voto-vogal do Min. Fachin em sede do ARE 1225185, Tema/RG 1.087. Revista Brasileira De Direito Processual Penal, 7(2), 1513. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i2.468. O autor discute a questão sob a ótica da teoria constitucional e da teoria dos direitos fundamentais (p. 1515).

[8]Op. Cit. Soares. 2021. p. 1522.

[9]Op. Cit. Soares. 2021. p. 1521.

[10]Conceito originalmente desenvolvido por Rawls em: Rawls, John. A Theory of Justice. Cambridge, Massachusetts :The Belknap Press of Harvard University Press, 1971. p. 118.

[11]Op. Cit. Rawls, 1971. p. 118.

[12]Op. Cit. Rawls. 1971. p. 118.

[13]Op. Cit. Soares. 2021. p. 1521/1522.

[14]A Lista de Schindler. Direção: Steven Spielberg. Produção: Steven Spielberg. Roteiro: Steven Zaillian. EUA: Universal Pictures, 1993. 1 DVD (195 min), son., color. Cena disponível em:

[15]Mozart, Wolfgang Amadeus. La Clemenza di Tito. Libreto: Caterino Mazzolà. Viena: Teatro Nacional, 1791. Libreto disponível em:https://opera-guide.ch/operas/la+clemenza+di+tito/libretto/de/

[16]NOGUEIRA, Thúlio Guilherme; DRUMMOND, João Pedro. O Tribunal do Júri não deveria ser, por definição, uma garantia? JOTA, 22 set. 2024. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/o-tribunal-do-juri-nao-deveria-ser-por-definicao-uma-garantia-20062023. Acesso em: 04 out. 2024.

[17]Tese disponível em:https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-fixa-tese-sobre-possibilidade-de-recorrer-de-absolvicao-pelo-juri-em-contrariedade-as-provas/#:~:text=A%20absolvi%C3%A7%C3%A3o%20por%20quesito%20gen%C3%A9rico,e%20a%20autoria%20do%20delito.

[18]Op. Cit. Soares. 2021. p. 1530.

[19]Op. Cit. Soares. 2021. p. 1523.

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