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Judiciário

O princípio da liberdade de expressão nas relações privadas

O exercício do direito de resposta, na forma da Lei nº 13.188/2015, pode ser muito mais satisfatório para o lesado pelo abuso ou excesso da liberdade de expressão, por seu efeito simbólico, que a reparação pecuniária, a qual terá função complementar

1. Demarcando-se a liberdade de expressão e suas possibilidades

A liberdade de expressão, no âmbito do direito público constitucional, ostenta consolidação histórica de mais de dois séculos, como uma das garantias das liberdades individuais. O mesmo não se pode dizer de sua interlocução com o direito privado, máxime dos direitos da personalidade, caracterizada por tensões, colisões e pouca densidade teórica.

A história da liberdade de expressão é atravessada pelas vicissitudes por que passou a imprensa, nos dois últimos séculos, ao ponto de ser confundida com a liberdade de imprensa, que é uma de suas espécies. Desde a Primeira Emenda à Constituição dos EUA, de 1791, essa aparente confusão se estabeleceu, pois ela estabeleceu a proibição ao Congresso federal americano (depois a Suprema Corte a estendeu aos Estados-Membros e aos demais poderes) de fazer qualquer lei “restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa” (abridging the freedom of speech, or of the press), cuja expressão pode ser entendida como relativa a duas espécies ou a apenas uma, sendo a segunda desdobramento da primeira.

Os publicistas entendem, em geral, que a liberdade de expressão é mais ampla, não podendo conter-se na liberdade de imprensa. Esta, por seu tuno, é específica, dados seus propósitos de informar e comunicar. Com efeito, a liberdade de expressão acompanha a história da humanidade, desde quando as primeiras sociedades se organizaram em torno de poderes públicos ou privados estabelecidos por consenso ou pela força.

Nenhum poder, público ou privado, aceita sem tensão e conflito a liberdade de expressão, porque esta é limitadora daquele. Quanto maior o grau de despotismo, maior a contenção da liberdade de expressão, na mesma proporção, seja ela oral ou reproduzida em qualquer meio de divulgação.

A história dos povos é marcada pela repressão, perseguição ou morte daqueles que contrariaram os interesses do poder político, do poder religioso, do poder econômico e quaisquer outros poderes sociais dominantes. Assim, a história da liberdade de expressão ou de sua repressão é parte fundamental da história das sociedades politicamente organizadas.

As artes, em quaisquer de suas modalidades – literatura, artes plásticas, música, arte dramática, artes populares e tradicionais, artes rupestres etc. –, inexistem sem a liberdade de expressão. Elas nem sempre agradam aos poderes dominantes. As ciências, a reflexão crítica exposta, a produção intelectual em geral inexistem sem liberdade de expressão, pois esta é de sua essência mesma, na medida que se realizam a partir das dúvidas, dos questionamentos e da problematização dos saberes instituídos. A censura prévia, as ameaças ou atentados à liberdade pessoal de artistas, autores, pensadores, cientistas são constantes nas sociedades, de acordo com o grau de despotismo que sofrem ou sofreram.

Podemos citar, como exemplos de graus máximos de atentados à liberdade de expressão, as aterrorizantes fogueiras da inquisição religiosa nas quais foram imolados os dissidentes do credo oficial, ou as não menos aterrorizantes fogueiras de livros no auge das ditaduras, com intuito de destruir obras e pensamentos divergentes.

A liberdade de expressão atinge sua plenitude de reconhecimento jurídico com o advento do constitucionalismo contemporâneo, máxime com a afirmação das liberdades públicas. Mas logo se percebeu que, sem democracia, a liberdade de expressão era uma quimera. Os regimes ditatoriais contemporâneos também buscaram legitimidade na aparente legalidade constitucional, ainda que imposta, inclusive para impedir ou restringir a liberdade de expressão. Sem democracia, portanto, não se pode falar de liberdade de expressão.

Esses são os pontos de partida da atual compreensão da liberdade de expressão, que nos permitem sindicar de sua interação com outras garantias fundamentais, em uma perspectiva civil constitucional. Dito de outro modo, interessam-nos os pontos de intercessão da liberdade de expressão e os institutos civilísticos correlacionados, notadamente os direitos da personalidade, cuja incorporação ao direito privado é recente.


2. A liberdade de expressão em face dos direitos da personalidade

Quando os direitos da personalidade emergiram como categorias fundamentais do direito privado no plano legislativo, nas últimas décadas – no Brasil, apenas com o advento da Constituição de 1988 e do Código Civil de 2002 –, foi inevitável que muitas de suas dimensões esbarrassem nas dimensões próprias da liberdade de expressão. Dois problemas, desde então, se apresentaram, ante a aparente colisão: o da supremacia a priori de uma contra outra; ou da harmonização possível entre elas.

A supremacia a priori tem sido relacionada à prevalência do que se entenderia como interesse público sobre o interesse privado. Nessa linha de pensamento, a liberdade de expressão ostentaria maior grau de interesse público. Assim, os direitos da personalidade, que tutelariam apenas interesses privados, deveriam sempre ceder à garantia da liberdade de expressão. Esse entendimento tem sido encontrado em nossa doutrina jurídica – principalmente de direito público – e nos fundamentos de diversos julgados de nossos Tribunais, inclusive do Supremo Tribunal Federal.

Porém, se atentarmos para os enunciados normativos da Constituição de 1988, por exemplo do inc. X do art. 5º (“X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”), é difícil inferir deles a submissão necessária a priori ao que se entenderia por interesse público da liberdade de expressão.

Em verdade, a Constituição estabelece exatamente o não prevalecimento da liberdade de expressão sobre os direitos da personalidade, como se vê neste preceito do capítulo destinado à comunicação social: “Art. 220. […] §1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”. A referência expressa ao inc. X, ao contrário do que se tem expressado na doutrina e na jurisprudência, significa que a inviolabilidade dos referidos direitos da personalidade é oponível, inclusive, à liberdade de expressão.

Entendemos, portanto, que não há prevalência a priori da liberdade de expressão sobre os direitos da personalidade, pois a Constituição os pôs no mesmo plano. Essa orientação contrasta firmemente com alguns dos fundamentos da decisão do STF, na ADPF nº 130, que entendeu não recepcionada (modalidade de inconstitucionalidade, adotada no Brasil) inteiramente a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/1967), por incompatibilidade com a Constituição de 1988, como veremos a seguir.


3. A liberdade de imprensa não pode sobrepor-se aos direitos da personalidade

Constam de ementa do acórdão da ADPF nº 130, julgada em 2009, alguns problemáticos enunciados argumentativos (os grifos são nossos):

  1. “[…] as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras”.
  2. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios”.
  3. Determinação constitucional de momentânea paralisia à inviolabilidade de certas categorias de direitos subjetivos fundamentais, porquanto a cabeça do art. 220 da Constituição veda qualquer cerceio ou restrição à concreta manifestação do pensamento”.
  4. “[…] a excessividade indenizatória é, em si mesma, poderoso fator de inibição da liberdade de imprensa, em violação ao princípio constitucional da proporcionalidade”.

Esses excertos da ementa do acórdão conduzem a conclusões, a nosso ver, equivocadas e merecedoras de crítica doutrinária, pois:

  • a) parecem atribuir prevalência a priori sobre os direitos da personalidade, invertendo o que estabelece, por exemplo, o inc. X do art. 5º da Constituição;
  • b) por serem de “mútua excludência”, rejeitam a incidência conjunta ou harmônica dos preceitos regentes da liberdade de imprensa e da garantia dos direitos da personalidade;
  • c) ao mesmo tempo, parecem restringir-se essencialmente à oponibilidade ao poder político, quando aludem ao “controle social sobre o poder do Estado”, deixando na opacidade a identidade ou não da aplicabilidade da decisão quando a ofensa disser respeito estritamente às relações privadas (imprensa particular versus pessoa física particular), sem repercussões políticas. Todavia, podem também ser entendidos como dirigidos igualmente ao Estado-Juiz, para inibi-lo de ponderar esses interesses em conflito, ainda que estritamente privados;
  • d) deles parecem resultar que a responsabilidade civil pelos danos morais, injustamente causados aos particulares no exercício abusivo ou excessivo da liberdade de imprensa, apenas pode ser exigida judicialmente após a consumação do dano, ficando vedadas as medidas preventivas que possam impedir o dano inevitável ou interrompê-lo, quando continuado;
  • e) a alusão à “paralisia à inviolabilidade” dos direitos da personalidade, que a Constituição não prevê, inova a ordem constitucional, pois o que é inviolável não pode ser suspenso por decisão judicial, o que desfiguraria essa magna garantia;
  • f) cerceiam a independência jurisdicional, quando advertem sobre a “excessividade indenizatória”, sem definir o seu significado.

Ao que parece, o STF decidiu ainda sob o impacto da história da censura arbitrária, ideológica e violenta que se abateu sobre a imprensa, enquanto perdurou a ditadura militar. O fato de ter sido a Lei de Imprensa editada durante esse triste período de nossa história recente não é razão suficiente para considerá-la inteiramente imprestável, inclusive no que concerne à responsabilidade civil preventiva ou reparadora pelos danos causados às pessoas, em virtude de excessos e abusos, que são regras comuns encontradas nas legislações nacionais emanadas de regimes democráticos. Se essa razão fosse suficiente, então todas as leis editadas durante a ditadura militar (entre os exemplos, a Lei dos Registros Públicos) deveriam ser consideradas não recepcionadas pela Constituição de 1988.

O STF inverteu o fim do preceito constitucional, resultando no impedimento da vítima em prevenir a ofensa pelo exercício abusivo e excessivo da liberdade de imprensa. É insustentável que se possa livremente violar os direitos da personalidade, notadamente os relativos à intimidade, à vida privada, à imagem e à honra, para apenas após o seu cometimento pugnar por receber uma indenização por dano moral – sempre sob o risco de configurar “excessividade indenizatória” –, que jamais permite ao ofendido a restituição ao estado anterior. A ofensa perdura enquanto alguém tiver acesso à informação ofensiva divulgada pelos meios de comunicação, jornais impressos, gravações, vídeos da época. Em tempos de internet, a ofensa é praticamente perpétua.

Com essa decisão, o STF erigiu a liberdade de imprensa em valor ou princípio constitucionais absolutos ou ilimitados. A doutrina jurídica, aqui e alhures, tem sustentado que não há, nas Constituições democráticas, princípios absolutos, que não admitem discussão, limitação, controle, incidência conjunta com outros ou balanceamento. Princípios que tais são próprios de ordens autocráticas, como vigoraram durante o Estado absoluto, primeira etapa do Estado moderno, ou nas ditaduras contemporâneas.

Ao bloquear medidas preventivas de ofensas, ou a interrupção das ofensas continuadas ou repetidas pelos veículos de imprensa, condenou permanentemente as vítimas à imolação moral.

A responsabilidade civil preventiva não é censura, porque não tem por fito impedir a liberdade de imprensa, mas evitar o dano.

A Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei nº 13.709/2018) é exemplo de responsabilidade civil preventiva, que pode ser aplicada, analogicamente, às publicações da imprensa. A LGPD, art. 6º, VIII, estabelece que as atividades de tratamento de dados pessoais pelos agentes (pessoas físicas e jurídicas) deverão observar o princípio de prevenção, mediante a adoção de medidas para prevenir a ocorrência de danos em virtude desse tratamento, além do dever de demonstrar e comprovar a observância, o cumprimento e a eficácia das normas de proteção dos dados.

O limite da liberdade de expressão é o dano, que deve ser prevenido e não apenas reparado a posteriori.

O próprio STF, contrariando a orientação que prevaleceu na ADPF nº 130, decidiu no caso Ellwanger (HC nº 82.424) que a liberdade de imprensa não incluía a incitação ao racismo; também decidiu (RHC nº 146.303) que a incitação ao ódio público contra qualquer denominação religiosa e seus seguidores não está protegida pela liberdade de expressão, cujo exercício não é absoluto. Percebe-se, nesses casos, o afastamento da prevalência a priori da liberdade de expressão, inclusive da liberdade de imprensa.


4. Inviolabilidade dos direitos da personalidade

Além dos direitos da personalidade referidos no paradigmático inc. X do art. 5º, a Constituição especifica outros, os quais também são invioláveis, inclusive em razão do exercício da liberdade de expressão, porque são inerentes à pessoa humana e à sua dignidade (art. 1º, III).

A Constituição protege, igualmente, os direitos da personalidade relativos à vida, à liberdade, à identidade pessoal, à integridade psicofísica e moral, à diversidade e integridade genéticas, à igualdade das pessoas vulneráveis (criança, idoso ou com deficiências).

A constitucionalização dos direitos fundamentais muito contribuiu para se confirmar essa relevância jurídica, pois os direitos da personalidade, ambientados nas relações privadas, são espécies do gênero direitos fundamentais. Contudo, nem todos os direitos fundamentais, corporificados ou não na Constituição, são direitos da personalidade, porque aqueles vão mais longe que estes, na medida em que atribuem direitos a organizações que não são pessoas e envolvem direitos sociais, econômicos e culturais, que não são direitos da personalidade, por não serem inerentes à pessoa humana.

Os direitos da personalidade fizeram percurso oposto ao dos demais institutos jurídicos fundamentais: em vez de migrarem do direito civil para a Constituição, vieram desta para o direito civil infraconstitucional.

O Código Civil de 2002 dedica um capítulo da parte geral aos direitos da personalidade, selecionando aqueles que produzem efeitos mais agudos nas relações civis, a saber: direito à integridade física, proibindo-se atos de disposição ao próprio corpo, salvo para fins de transplante e, gratuitamente, após a morte, para fins científicos ou altruísticos; vedação de tratamento médico ou intervenção cirúrgica não consentidos; direito à identidade pessoal (direito a ter nome e a impedir que seja usado de modo a expor ao ridículo ou com intenção difamatória; proibição de usar o nome alheio, sem autorização, para fins publicitários; proteção ao pseudônimo); direito à imagem; direito à honra; direito à vida privada.

Essa fragmentação normativa não deve perder o sentido da estrutura existencial da pessoa, que exige uma proteção unitária e integral, não admitindo ser substancialmente parcelada em multiplicidade de aspectos, desconectados uns dos outros, cada um dos quais se apresenta como um interesse juridicamente tutelável de modo autônomo, como bem adverte o jurista peruano Carlos Fernández Sessarego em suas obras.

Os direitos da personalidade, por serem inerentes à pessoa em si, não se originam de qualquer relação jurídica. Neles, a relação jurídica é derivada, ou seja, dá-se por efeito reflexo de sua violação por outrem, geradora de deveres e obrigações de fazer, ou de não fazer ou de reparar o dano.

Os direitos da personalidade na perspectiva do direito civil constituem o conjunto de direitos inerentes à pessoa, notadamente a pessoa humana, que prevalecem sobre todos os demais direitos subjetivos privados.

Sua natureza não patrimonial, em desacordo com a cultura jurídica ocidental de valorização do indivíduo proprietário, fez com que permanecessem à margem do direito civil. Foi preciso que se avançasse na compreensão de que sua violação deveria se enquadrar no âmbito dos danos e, fundamentalmente, dos danos morais, espécies do gênero danos não patrimoniais.

Os principais desafios que a aplicação dos direitos da personalidade enfrenta, inclusive no cotidiano do sistema judiciário, máxime os que se enquadram no direito à privacidade, são: a) sua abdicação no inconsciente coletivo em prol da sensação de mais segurança, multiplicando-se aspectos do que já se denominou sociedade de vigilância; b) o argumento da primazia a priori da liberdade de expressão; c) a exposição pública dos dados pessoais, voluntária ou praticada ilicitamente por terceiros na sociedade da informação, nos meios de comunicação e nas chamadas redes sociais.

No sentido que defendemos é o Enunciado nº 613 das Jornadas de Direito Civil (CJF/STJ): “A liberdade de expressão não goza de posição preferencial em relação aos direitos da personalidade no ordenamento jurídico brasileiro”.


5. Responsabilidade civil pelo abuso ou excesso da liberdade de expressão

Qualquer ofensa a direito de personalidade, inclusive por abuso ou excesso da liberdade de expressão, é fato ilícito que dá ensejo à prevenção ou compensação do dano moral decorrente. A interação entre danos morais e direitos da personalidade é tão estreita que se deve indagar a possibilidade da existência daqueles fora do âmbito destes. Ambos sofreram a resistência de grande parte da doutrina em considerá-los objetos autônomos do direito.

As trajetórias dos dois institutos ficaram indissoluvelmente ligadas, com reconhecimento expresso na Constituição de 1988, que os tratou em conjunto, principalmente no já mencionado inc. X do art. 5º. A interação não é ocasional, mas necessária. A referência na Constituição aos danos morais inclui implicitamente os danos existenciais, que comprometem o projeto de vida da pessoa e sua vida em relação, de modo permanente, quando ocorrem simultaneamente em razão do mesmo fato.

A inserção constitucional dos direitos da personalidade e dos danos morais consagra a evolução pela qual ambos os institutos jurídicos têm passado. Os direitos da personalidade, por serem extrapatrimoniais, encontram excelente campo de aplicação nos danos morais, que têm a mesma natureza não patrimonial. Ambos têm por objeto bens integrantes da interioridade da pessoa, que não dependem da relação com os essenciais à realização da pessoa, ou seja, aquilo que é inerente à pessoa e deve ser tutelado pelo direito (vida, liberdade, integridade física, psíquica e moral, vida privada, intimidade, imagem, sigilo de comunicações e correspondências, identidade pessoal, direitos morais de autor), inclusive ante a cláusula geral da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição).

Os direitos da personalidade, nas vicissitudes por que passaram, sempre esbarraram na dificuldade de se encontrar um mecanismo viável de tutela jurídica, quando da ocorrência da lesão. Ante os fundamentos patrimonialistas que determinaram a concepção do direito subjetivo, nos dois últimos séculos, os direitos de personalidade restaram alheios à dogmática civilística. A recepção dos danos morais foi o elo que faltava, pois constituem a sanção adequada ao descumprimento do dever absoluto de abstenção. Assim, danos morais são violações exclusivamente de direitos da personalidade, não tendo cabimento, no direito brasileiro, a invocação a “preço da dor” (pretium doloris). Essa concepção negativa foi substituída exatamente pela concepção positiva e objetivamente aferível, que vincula o dano moral com a lesão a direitos da personalidade.

Do mesmo modo, os danos morais se ressentiam de parâmetros materiais seguros, para sua aplicação, propiciando a crítica mais dura que sempre receberam de serem deixados ao arbítrio judicial e à verificação de um fator psicológico de aferição problemática: dor moral ou sofrimento. A jurisprudência dos tribunais, para obviar a dificuldade, vem delineando situações de autêntica inversão do ônus da prova, na medida em que estabelece presunções que a dispensam.

De modo mais amplo, os direitos de personalidade oferecem um conjunto de situações definidas pelo sistema jurídico, inerentes à pessoa, cuja lesão faz incidir diretamente a pretensão aos danos morais, de modo objetivo e controlável, não sendo necessária a prova do prejuízo ou o recurso à existência de dor moral ou psíquica, sofrimentos ou incômodos.

No que respeita aos danos morais, a prestação devida, pelo que seja considerado responsável, expressa-se em valor pecuniário. Porém, o direito lesado do credor corresponde a um ou diversos direitos da personalidade, que são destituídos de valor pecuniário, em virtude de sua natureza de direito absoluto indisponível, intransmissível e irrenunciável (Código Civil, art. 11). Os danos materiais constituem valor a menos no patrimônio do lesado, enquanto os danos morais compensam pecuniariamente a lesão de direitos eminentemente não patrimoniais. Esses direitos sem valor econômico correspondem “a um interesse do credor, digno de proteção legal”, na dicção do Código Civil português, cuja regra é aplicável ao direito brasileiro, porque amparados na Constituição e na legislação brasileiras, com oponibilidade a todas as pessoas, cada uma sujeitando-se à prestação de abstenção de violá-los.

A responsabilidade opera-se pelo simples fato da violação (damnu in re ipsa); assim, verificada a lesão a direito da personalidade, surge a necessidade de reparação do dano moral. Por exemplo, a violação da vida privada ou da intimidade por qualquer modalidade de mídia basta por si, sem necessidade de comprovação de móvel intencional.

Qualquer dano moral pode ser prevenido, quando são fortes os indícios de que ele irá ocorrer. Ou interrompido, quando é continuado em sucessivas ou periódicas ofensas na mídia tradicional ou eletrônica. Se apenas puder ser reparado a posteriori, o dano pode causar consequências irrecuperáveis à higidez psíquica ou até mesmo dano existencial, com destruição permanente e injusta da reputação vítima. Na impiedosa relação de custo e benefício, a violação consciente dos direitos da personalidade da vítima pode ser economicamente vantajosa.

Como salientamos acima, a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD estabelece que as atividades de tratamento de dados pessoais pelos agentes (pessoas físicas e jurídicas) deverão observar o princípio de prevenção, mediante a adoção de medidas para prevenir a ocorrência de danos em virtude desse tratamento, além do dever de demonstrar e comprovar a observância, o cumprimento e a eficácia das normas de proteção dos dados.

O Código Civil argentino, de 2014, art. 1.710, estabelece expressamente o “dever de prevenção do dano”, no sentido de que toda pessoa tem o dever, no que dela dependa, de evitar causar dano não justificável, de adotar as medidas razoáveis para evitar que se produza um dano ou diminuir sua magnitude, de não agravar o dano, se já se produziu. Para isso, prevê a “ação preventiva”, ou tutela inibitória.

Os danos morais não podem ser submetidos a limites ou prefixações legais, porque os direitos da personalidade e, consequentemente, sua lesão são incomensuráveis. A Constituição não franqueou ao legislador ordinário fazê-lo. A vida, a liberdade, a honra, a intimidade, por exemplo, não têm preço, porque não tem preço a dignidade da pessoa humana, como já dizia Kant.

Nessa linha, o STJ editou a Súmula nº 281, cujo enunciado estabelece: “a indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na Lei de Imprensa”, cujo princípio permanece, ainda que o STF tenha decidido que a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição.

Modalidade de limitação da liberdade de expressão, ainda que a posteriori, é o direito de resposta e retratação, que não tem o sentido de reparação indenizatória do dano moral que daquela resultou.

6. Liberdade de expressão e direito de resposta e retratação

O exercício do direito de resposta, na forma da Lei nº 13.188/2015, pode ser muito mais satisfatório para o lesado pelo abuso ou excesso da liberdade de expressão, por seu efeito simbólico, que a reparação pecuniária, a qual terá função complementar. Na antes referida ADPF nº 130, o STF decidiu que o direito de resposta, “que se manifesta como ação de replicar ou de retificar matéria publicada, é exercitável por parte daquele que se vê ofendido em sua honra objetiva, ou então subjetiva, conforme estampado no inciso V do art. 5º da Constituição Federal”.

É sempre oportuna a advertência de Hannah Arendt, expressada em suas obras, de que devemos diferenciar entre verdades factuais e opiniões, porque a liberdade de expressão é uma farsa se não se garantir a informação objetiva e os próprios fatos não forem aceitos.

Em relação ao art. 20 do CC/2002, tem sido discutida a constitucionalidade da proibição nele contida de divulgação ou publicação de dados e informações de uma pessoa, “salvo se autorizadas, ou necessária à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública”, ante a possível colisão entre a liberdade de informação e de imprensa e a garantia da intimidade e da vida privada, que a CF tutela. A tese de ser possível a interpretação constitucionalmente adequada desse artigo terminou vencedora no STF, em 2015, no caso das biografias não autorizadas (ADI nº 4.815), tendo o Tribunal dado interpretação conforme à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais.

Também nessa decisão o STF pendeu para a liberdade de expressão, em detrimento da inviolabilidade da intimidade, da privacidade e da honra da pessoa biografada, restando a esta a reparação pelos danos decorrentes e o direito de resposta, a posteriori. Reafirmamos que a Constituição não determina essa prevalência. Ao contrário, a CF, art. 220, remete expressamente ao inc. X de seu art. 5º, que garante a inviolabilidade do direito à privacidade. A reparação dos danos apenas a posteriori importa negativa da prevenção ou da não continuidade do dano, em virtude da publicação da biografia comprovadamente ofensiva e danosa à pessoa do biografado.

As empresas provedoras de dados de informações pessoais e de redes sociais têm atitude ambígua em relação à privacidade: de defesa, no interesse do business of privacy, e de negação, quando dificulta ou impede a pretensão das pessoas em suspender a divulgação dos dados pessoais e de informações ofensivas. Todavia, o art. 8º da Lei do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) estabelece que a “garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet”, não estabelecendo qualquer primazia a priori de uma sobre outra.

O direito de resposta, gratuito e proporcional à matéria ofensiva, foi regulamentado pela Lei nº 13.188/2015, facultado ao ofendido em qualquer meio de comunicação social, distribuição, transmissão ou plataforma de distribuição, inclusive na internet. Considera-se matéria ofensiva o conteúdo que atente, ainda que por equívoco de informação, contra a honra, a intimidade, a reputação, o conceito, o nome, a marca ou a imagem de pessoa física ou jurídica identificada ou passível de identificação. Não são consideradas matérias ofensivas os comentários realizados por usuários da internet nas páginas eletrônicas dos veículos de comunicação social. A retratação espontânea ou a retificação não impedem o exercício do direito de resposta. É de sessenta dias o prazo, que a lei qualifica como de decadência, para o exercício do direito de resposta, mediante ação judicial, se não for atendido no prazo de sete dias pelo meio de divulgação e transmissão, o qual ainda responderá por perdas e danos.

Para muitos, o direito de resposta constitui verdadeiro corolário do direito de informação e da liberdade de expressão, na medida em que permite a reposição da verdade. Sob outra perspectiva, expressa a necessidade de limite do exercício do poder privado de comunicação e informação, o qual, como os demais poderes, não pode ser considerado ilimitado.

Além do direito de resposta, impõe-se o direito à retratação, quando matéria divulgada pela mídia ofende injustamente a honra de pessoa, seja figura pública ou privada. Nesse sentido, decidiu o STJ (REsp nº 1.771.866) que o direito à retratação e ao esclarecimento da verdade possui previsão constitucional, não tendo sido afastado pelo STF no julgamento da ADPF nº 130/DF; para o STJ o direito à retratação tem fundamento nos arts. 927 e 944 do CC.


7. Quando os princípios incidem, se aparentam colidir entre si?

Cabe ao intérprete e aplicador identificar se o princípio de liberdade de expressão incidiu ou não, isto é, ante as circunstâncias, se seu suporte fático se concretizou no mundo dos fatos, ou se foi outro princípio que incidiu, como exemplo, o da garantia da privacidade, afastando o primeiro.

Quando um princípio aparenta entrar em colisão com outro, resolve-se essa aparente antinomia de acordo com as circunstâncias do caso concreto, que indicarão qual deles incidirá. Esclareça-se que a análise das circunstâncias não é espaço para o arbítrio judicial, pois o aplicador não deve substituir o juízo jurídico por suas convicções de moralidade, de política ou de ideologia. Nesse sentido, estabelece o CPC, art. 489, §2º, que no caso de colisão entre normas o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada.

Texto jornalístico reproduziu trecho de afirmação gravada que acusava presidente de tribunal de mau uso de verbas públicas, nepotismo e tráfico de influência. A decisão recorrida condenou o órgão de imprensa em danos morais, com fundamento na inviolabilidade da honra, da intimidade e da imagem (art. 5º, X, da CF). Todavia, o STF (RE nº 208.685-1) reformou a decisão por entender que, no caso, a notícia reproduziu denúncia encaminhada ao TST, e que:

a colisão será solucionada levando-se em conta o peso ou a importância relativa de cada um. A solução, portanto, não pode deixar de lado os conhecidos princípios da razoabilidade e da ponderação dos bens envolvidos. Na espécie, o dano moral pretendido pelo recorrido somente se justificaria se positivado o abuso do direito de informar.

Nessa decisão, o STF, ao contrário do que decidiu na ADPF nº 130, não atribuiu prevalência a priori à liberdade de expressão, optando pela necessidade de ponderação ou balanceamento com o princípio constitucional da inviolabilidade da privacidade. Nela é perceptível a repercussão da lição de Ronald Dworkin, para quem, se os princípios entram em colisão, deve-se resolver o conflito levando em consideração o exato peso de cada um deles. Um dos princípios prepondera sobre o outro no caso concreto, mas ambos permanecem válidos e integrados ao ordenamento jurídico.

Para nós, o peso, referido por Dworkin, é dado pelas circunstâncias da situação concreta, até porque não há “pesos” a priori entre os princípios jurídicos, pois estão situados no mesmo plano da hierarquia normativa. De qualquer forma, o sentido figurado de “peso” deve ser entendido como meio de identificação do suporte fático concreto, que provoca a incidência do princípio jurídico adequado (segundo a concepção de Pontes de Miranda), como norma jurídica que é, o que termina por afastar a própria ideia de colisão. Consequentemente, a colisão de princípios jurídicos é apenas aparente, pois somente o princípio jurídico adequado pode incidir sobre o suporte fático concreto, de acordo com as circunstâncias.

Devemos considerar uma categoria fundamental que explique a força normativa do princípio, tal como se desenvolveu no Brasil. Referimo-nos à incidência da norma jurídica, entre as categorias jurídicas sistematizadas por Pontes de Miranda, que sempre valorizou os princípios ao longo, por exemplo, do monumental tratado de direito privado, em seus sessenta volumes. Pontes de Miranda alude a todo momento aos princípios e ele previu, ou anteviu, soluções jurídicas que só vieram a se tornar comuns e pacificadas na jurisprudência brasileira algumas décadas após. A partir justamente dos princípios.

E aí ressurge a importância da categoria da incidência jurídica, no lugar de ponderação, ou de dimensão de peso, para a interpretação dos princípios. Ou a norma jurídica incidiu ou não incidiu. A incidência envolve a referência à hipótese normativa, que é o suporte fático hipotético, que toda norma contém. A ocorrência da incidência, para a interpretação, é essencial, em primeiro lugar. Verifica-se se a norma jurídica pode incidir, pois muitas vezes ela está obstada por uma razão temporal, em razão de o legislador ter postergado seu início de vigência.

Em segundo lugar, o intérprete há de verificar o âmbito de incidência da norma jurídica, inclusive do princípio jurídico, que diz com seus fins sociais e com a abrangência material (exemplo, direito civil, quando não pode incidir em matéria penal). Ainda: a abrangência de acordo com os limites da competência formal do legislador (federal, estadual ou municipal).

Em terceiro lugar, cabe ao intérprete a verificação da incidência adequada, que se dá quando demonstra que o suporte fático hipotético ou hipótese normativa se realizou no mundo da vida ou mundo dos fatos. Neste ponto, esclarecemos nossa divergência com Pontes de Miranda, que propugnava pela incidência automática, como se ocorresse relação de causa e efeito, sem necessidade de interpretação, de observância ou aplicação reais. Para nós, a incidência da norma jurídica (principiológica ou não) não pode dispensar a interpretação, que leva em conta não apenas a correspondência da situação fática com a hipótese normativa, mas também as circunstâncias que a cercam (fáticas, temporais, especiais).

A operação da incidência, assim esquematizada, é a mesma, tanto para os princípios jurídicos, quanto para as demais normas jurídicas. A maior ou menor determinação de conteúdo ou de aparente autonomia semântica são indiferentes para a incidência da norma jurídica, e não integram a natureza ou a estrutura desta. Não é requisito para existência, validade e eficácia da norma jurídica, seja ela princípio ou não, a determinação ou indeterminação do seu conteúdo.

A incidência da norma jurídica sobre o suporte fático que se concretizou provoca a emersão do fato jurídico no mundo do direito. E quando o fato jurídico surge, brotam suas eficácias todas: direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e situações passivas de acionados.

As consequências jurídicas sempre existem para todas as normas jurídicas, sejam elas princípios jurídicos ou não. No exemplo da liberdade de expressão, o abuso ou o excesso de seu exercício em violação dos direitos da personalidade acarretam a compensação pelos danos morais, sendo esta a consequência jurídica que não precisa ser explicitada, pois emerge do conjunto do sistema jurídico.

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