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A fraude eleitoral que “apressou” projeto da urna eletrônica
Há 30 anos, anulação da votação para deputados federais e estaduais no Rio de Janeiro devido a evidências de manipulação colocou em xeque o sistema baseado em cédulas de papel no Brasil
Segura e inviolável, a urna eletrônica brasileira foi criada com dois objetivos muito claros: tornar o processo eleitoral mais rápido — em um país de dimensões continentais –; e acabar com fraudes. O episódio mais emblemático sobre este segundo ponto aconteceu há exatos 30 anos.
Em 19 de outubro de 1994, os sete juízes do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Rio de Janeiro decidiram, unanimemente, anular as eleições para deputados federais e estaduais no estado, convocando nova votação para o mês de novembro.
Havia fortes evidências de fraude. O número de votos em branco havia caído de 20% para 10% de 1990 para 1994. Pelo menos uma urna não estava devidamente lacrada. Em uma seção, foram encontradas pelo menos 20 cédulas sem assinatura dos mesários. Em uma das zonas eleitorais, um juiz descobriu irregularidades em 185 cédulas. Em outra, 200 cédulas foram preenchidas com a mesma caligrafia.
No meio disso tudo, autoridades eleitorais do Rio receberam telefonemas com ameaças de morte. O então juiz eleitoral do Rio Luiz Fux, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a recontagem de 380 mil votos de uma zona eleitoral onde se acreditava que 90% das urnas tivessem sido fraudadas.
“As fraudes foram generalizadas e culminaram com a anulação geral do pleito”, afirma o jurista Henrique Neves da Silva, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Essa grave situação precipitou um processo que já estava em curso: a ideia de transformar as eleições brasileiros em um modelo eletrônico. “Havia muita intervenção humana no processo. E onde tem intervenção humana há pelo menos três atributos ligados ao humano: a lentidão, a prática de erros e muitas fraudes”, explica o analista de sistemas e matemático Giuseppe Janino, um dos cérebros por trás da criação da urna eletrônica.
“Esses problemas, identificados no processo convencional, foram efetivamente os causadores da anulação das eleições para deputado federal e estadual no Rio de Janeiro”, comenta. “Identificaram-se falhas e várias fraudes no processo. Entendeu-se que havíamos batido no fundo do poço na questão da integridade e da credibilidade do processo eleitoral brasileiro.”
Neves da Silva comenta que, diante do “péssimo exemplo” que havia ocorrido no Rio, o TSE apressou-se para “desenvolver as primeiras urnas eletrônicas”.
A criação da urna eletrônica
No rescaldo da confusão fluminense, o então ministro do STF Carlos Velloso assumiu a presidência do TSE, em dezembro de 1994. A prioridade da sua gestão era que, já em 1996, a votação fosse eletrônica ao menos em parte do país.
Foi montado um grupo de especialistas em direito eleitoral e em informática, batizado de Comissão de Informatização das Eleições Municipais de 1996. Até agosto de 1995, eles definiram as premissas do projeto. Em setembro, os gargalos técnicos já haviam sido resolvidos. A partir de então, o desafio era conseguir implantar o sistema e efetivar sua logística a tempo do pleito do ano seguinte.
A informatização era um plano antigo das autoridades eleitorais brasileiras. Tanto que o Código Eleitoral de 1932, a primeira norma brasileira específica para o tema, tinha um artigo prevendo o “uso das máquinas de votar”, após uma regulamentação feita “oportunamente pelo Tribunal Superior”.
Mas a tecnologia ainda não permitia tamanho avanço. Em 1958, o inventor brasileiro Sócrates Puntel (1917-1990) criou uma máquina de votar e chegou a apresentá-la para autoridades — mas dificuldades em transportá-la impossibilitaram sua adoção. Em 1978, o TRE de Minas Gerais também desenvolveu uma engenhoca semelhante, novamente descartada por não ser acessível, resistente e facilmente transportável. Em 1989, eleitores de um município de Santa Catarina votaram por meio de computadores, de forma experimental.
Neves da Silva lembra que desde os anos 1980, “o cadastro de eleitores no Brasil passou a ser centralizado e informatizado”. Isto já resolveu um tipo de problema: as fraudes no alistamento. A partir de então, cada eleitor seguramente só era registrado uma única vez.
Em 1996, houve a estreia do modelo atual — 57 municípios já votaram pelo sistema eletrônico. “As fraudes manuais foram eliminadas e até mesmo os erros naturais de contagem e manipulação de papéis passaram a ser evitados”, diz o jurista. “Isso porque, com o processo de votação eletrônico, a mão humana foi retirada das fases de apuração, totalização e proclamação dos resultados, que eram uns dos principais focos dos fraudadores.”
“A ideia de redemocracia, de governo aberto a partir do uso de ferramentas tecnológicas, é muito forte no Brasil, e também corroborada por uma série de tratados internacionais”, comenta a cientista política e socióloga Mayra Goulart, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ela explica que a urna eletrônica se insere nesse contexto, já que a ideia é “usar a tecnologia para disponibilizar informação e aumentar a participação do cidadão na política”. Tal participação vem tanto no ato de “selecionar os representantes” quanto na “participação do processo político, exercendo funções de controle”.
“No caso específico do Brasil, caracterizado por uma relação de muito poder das elites locais, que acabam tendo um domínio muito grande sobre a população que vive nos território por elas comandadas, havia a tradição do ‘voto de cabresto’, expressão que implica justamente que a ascendência dessas elites poderia ser determinante pare restringir a liberdade de voto”, contextualiza Goulart. “A urna eletrônica surge para romper com esse cenário de atraso e conferir liberdade política para esses cidadãos.”
Fraudes mais comuns
Alguns tipos de fraudes eram recorrentes nos tempos das cédulas de papel. Uma delas, conforme contam os especialistas, era o “voto formiguinha”. O fraudador chegava na fila e aliciava um eleitor para o esquema, dando a ele um papelzinho em branco e orientando-o a colocar esse papel na urna — e trazer a cédula oficial para o golpista, em troca de dinheiro.
Então essa cédula era preenchida conforme os interesses do fraudador e dada a um outro eleitor — que tinha de depositá-la na urna em vez do seu voto, trazendo uma nova cédula em branco para receber a recompensa. E assim sucessivamente.
Outro método era o da “urna emprenhada”, ou seja, já cheia de votos dentro antes mesmo do início da eleição. “Havia também fraude na mesa apuradora, quando escrutinadores de má fé, no momento em que abriam os votos, aproveitavam-se da possibilidade de subtração ou inserção de cédulas”, conta Janino. “E votos em branco, havia apuradores que colocavam grafite embaixo da unha e assim os preenchiam.”
Neves da Silva diz também que “os resultados eram modificados na fase de apuração, quando eram inseridos manualmente nos boletins e posteriormente, quando copiados para a totalização”.
“Ou seja: havia muitas fraudes dentro do processo convencional e isso foi o grande motivador para a total quebra de paradigma”, avalia Janino. “A decisão foi mitigar a mão do homem do processo, substituindo-a pela tecnologia.”
Sistema consolidado
Em 28 anos de adoção, nunca houve nenhuma comprovação de fraude no sistema eletrônico. A cientista política Goulart lembra que, depois de o modelo ter sido amplamente questionado — sobretudo por apoiadores do ex-presidente e então candidato Jair Bolsonaro, que insuflava esse discurso — nas eleições anteriores, o tema parece superado. “2024 marca um desgaste desse tipo de discurso. Foi um processo eleitoral em que o questionamento às urnas não se fez presente na maioria dos discursos”, diz ela.