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Anistia a Bolsonaro para torná-lo elegível é juridicamente possível?

O que dizem especialistas sobre a tentativa do PL de reverter o efeito das condenações pelo TSE do ex-presidente

Presidente da República Jair Bolsonaro

Em fase de análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 2.858/2022 prevê a anistia aos presos envolvidos nos atos antidemocráticos contra os Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Caso aprovada, a norma perdoará crimes penais, anulará multas aplicadas pela Justiça Eleitoral ou Comum, manterá direitos políticos e revogará medidas que limitem a liberdade de expressão nas redes sociais.

Além de conceder o perdão aos participantes do 8 de janeiro, a proposta também tem sido utilizada como ferramenta de articulação nas eleições das Casas Legislativas. Na última quinta-feira (17/10), o presidente nacional do Partido Liberal (PL), Valdemar Costa Neto, afirmou durante entrevista ao canal CNN Brasil que o perdão das penalidades eleitorais contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, também do PL, no Projeto de Lei da Anistia seria a “condição” para que a sigla apoiasse os candidatos nas eleições de comando da Câmara e do Senado Federal.

“Vamos lutar para incluir o Bolsonaro nisso, porque a condenação dele foi simplesmente absurda. Só porque ele conversou com os embaixadores e disse que era contra as urnas. Isso é uma opinião dele que tem que ser respeitada. Então, por isso, deixaram ele inelegível. Isso não existe no mundo, no planeta. Nós vamos reverter isso aí”, afirmou Costa Neto na entrevista. “Nós temos que convencer na Câmara os deputados votarem. Eu acredito que a gente convença porque esse embate com o Bolsonaro não pode ser resolvido dessa forma como foi no TSE”, declarou.

A fala de Costa Neto faz referência ao julgamento de junho de 2023, em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornou o ex-presidente inelegível até 2030. Por 5 votos a 2, os ministros entenderam que Bolsonaro cometeu abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação ao discursar contra o sistema eletrônico de votação para embaixadores em 18 de junho de 2022, em Brasília. Em outubro de 2023, o TSE condenou novamente Bolsonaro à inelegibilidade, desta vez por uso eleitoral das comemorações do Bicentenário da Independência, em 7 de setembro de 2022.

O instituto da anistia prevê a exclusão, por lei ordinária com efeitos retroativos, de um ou mais fatos criminosos do campo de incidência do Direito Penal. Ou seja, ela atinge todos os efeitos penais decorrentes da prática do crime, referindo-se a fatos e não a pessoas. Ocorre que, no caso concreto do ex-presidente, suas condenações foram em Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aije), sendo, portanto, infrações eleitorais, não estando ligadas diretamente a alguma condenação penal, como acontece com os envolvidos no ataques antidemocráticos. As investigações sobre uma suposta conexão entre Bolsonaro com os atos cometidos por seus apoiadores no 8 de janeiro ainda estão em curso.

É possível aprovar uma lei para reverter as duas condenações em Aije ou isso seria considerado inconstitucional?

Roberta Simões Nascimento, professora adjunta da Universidade de Brasília (UnB), diz que não vê inconstitucionalidade em uma eventual aprovação de norma que afaste os efeitos das condenações eleitorais de Bolsonaro. 

“Alguns juristas têm suscitado a suposta inconstitucionalidade por ‘desvio de poder’. Entretanto, discordo dessa tese, porque a anistia é o exercício de uma competência constitucionalmente atribuída ao Congresso Nacional. Reunida a maioria necessária para a aprovação da lei, a anistia será legítima. Do ponto de vista político, será tão mais legítima quanto maior o consenso político que se forme em seu entorno”, explicou.

Nascimento ressalta que a Constituição veda a anistia apenas aos crimes listados no art. 5º, inciso XLIII (tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os definidos como crimes hediondos). Pela condenação de Bolsonaro não se enquadrar em nenhum desses, entende que os efeitos da anistia poderiam atingi-los sem nenhum impedimento.

“A anistia funciona como uma borracha: apaga a pena e todas as suas consequências em relação a quem tenha sido contemplado pela anistia. Então, é como se as condenações nunca houvessem existido. Retorna ao status quo anterior à condenação. No caso do Bolsonaro, a rigor, são infrações eleitorais, daí a inelegibilidade. Ele não foi condenado à pena de prisão, mas a lógica é a mesma do que é previsto no art. 742 do CPP“, ilustra. 

Rafael Mafei, professor do curso de direito da ESPM, afirma que, com exceção aos crimes que são vedados pela Constituição, a anistia pode ser ampla a ponto de não se limitar à questão estritamente penal. “Evidentemente, vai haver uma discussão quanto a saber se, não por ser matéria eleitoral, mas por ser uma anistia que talvez não atenda aos seus propósitos próprios, essa eventual lei, se aprovada, vai ser ou não considerada constitucional”, pontua.

Isto porque, aponta o professor, ninguém pode executar atos que tenham efeitos ou propósitos anticonstitucionais. “No caso atual, a anistia estaria servindo para conferir um estímulo para que o grupo que atacou as instituições no 8 de janeiro e a Justiça Eleitoral ganhasse uma espécie de um passe livre para continuar fazendo isso. Nos mesmos atos que o Bolsonaro pede a anistia, o Silas Malafaia chama o Alexandre de Moraes de criminoso, e o Eduardo Bolsonaro pede o impeachment de ministros do Supremo”, ressalta o professor. 

Essa postura, segundo ele, não é propriamente o espírito de quem quer usar esse instrumento legislativo absolutamente excepcional para construir um caminho para a paz, mas sim de quem quer usá-lo como uma espécie de “aliança” para continuar podendo atacar as instituições sem sofrer os efeitos da pena. “O Instituto serve para garantir a base de quem está disposto a renunciar às armas e não para conferir uma espécie de uma imunidade para quem continua insistindo em atacar as instituições. Esse poderia ser um caminho de inconstitucionalidade, mas isso não tem nada a ver com a matéria ser legislativa, ou ser penal, eleitoral ou administrativa”, salientou. 

Alexandre Rollo, especialista em Direito Eleitoral e professor de pós-graduação em Direito Eleitoral do TRE-SP, também acredita, em tese, ser possível a anistia dos efeitos de uma condenação eleitoral, desde que não seja dirigida a uma pessoa específica. Se a situação for “totalmente dirigida” e não com um propósito mais abstrato, sem ligação com políticos específicos, haveria uma inconstitucionalidade por ser muito “pessoalizada”. 

“Eu acho que o principal argumento é essa questão de você transformar a anistia em uma espécie de rescisão de decisões da Justiça Eleitoral, não vejo que a anistia possa ser utilizada para isso”, disse o especialista. “Não é para isso que foi criado o Instituto da anistia, e eu acho que argumentos jurídicos não faltarão para o Supremo derrubar uma anistia como essa, voltada a uma pessoa que foi condenada pela Justiça Eleitoral porque quer ser candidato em 2026”, destacou Rollo. 

Álvaro Jorge, professor na FGV Direito Rio, lembra que no julgamento da ADPF 966, o ministro Luiz Fux disse que os crimes contra o Estado Democrático de Direito eram impassíveis de anistia. “Eu tenho a impressão de que o Supremo vai olhar, como vem olhando essas questões todas da última eleição e a sequência do 8 de janeiro, como um conjunto de fatos e não como fatos isolados”, pontuou. 

“Eventualmente, você encarando os fatos isolados, você os enxerga no limite da constitucionalidade, alguma coisa como uma tensão com as normas constitucionais, uma atuação no limite, mas não propriamente uma violação ao limite claro”, explicou. “As condenações do presidente Bolsonaro terão que ser olhadas um pouco mais na lupa para ver se o STF enxerga essa conexão entre esses atos pelos quais ele foi condenado na Justiça Eleitoral e um ataque mais amplo ao Estado Democrático de Direito”, disse Jorge.

“O STF vai ficar com uma batata quente na mão para discutir isso, porque, de qualquer forma, seja lá qual decisão tomar, já vai desagradar um pedaço da população e vai ser mais uma discussão sobre se o Supremo está ou não avançando sobre as prerrogativas do Congresso”, concluiu o especialista. 

‘Lei precisa ser geral e abstrata’

Por outro lado, de acordo com Juliana Freitas, doutora em Direito e fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), uma lei precisa ser geral e abstrata, não podendo ser subjetiva para alcançar pessoas específicas. “Isso é completamente inconstitucional e viola mesmo a própria concepção de como as normas e as leis são elaboradas no nosso sistema, no nosso Estado Democrático de Direito”, disse Freitas.

“Se houver a inclusão do ex-presidente Jair Bolsonaro existindo essas condenações em sede de Aije, a gente vê uma grande inconstitucionalidade, porque ele seria alcançado por um benefício, o da anistia, que não alcançaria outros condenados em Aije”, argumentou. Para ela, a eventual aprovação de uma lei no sentido de reverter as condenações trataria de uma contrariedade ao princípio da separação de Poderes no que toca o não-respeito à decisão do TSE, ao reconhecer a inelegibilidade do ex-presidente, em virtude das condenações em sede de Aije.

“Esse movimento me parece que tem uma certa tendência de existir, mas eu vejo com uma absoluta reserva por violar a Lei 64/1990, que prevê a Aije”, disse. De acordo com Freitas, há uma série de alegações que contaminam a constitucionalidade dessa iniciativa e, a principal delas, seria a violação ao princípio democrático, uma vez que houve uma condenação que atribuiu ao ex-presidente a inelegibilidade por ele ter agido de forma abusiva no processo eleitoral. 

Já Ana Laura Barbosa, professora de Direito Constitucional da ESPM, considera ser controversa a aplicação da anistia para infrações eleitorais. Além disso, para ser concedido o benefício a Bolsonaro, deveria haver um questionamento a respeito da pertinência – ou conexão – temática da concessão dessa anistia aos fatos ocorridos. “As condenações do Bolsonaro nas Aijes foram por conta da reunião dos embaixadores, pela participação nos atos de 7 de setembro de 2022. Então, não tem conexão com o 8 de janeiro”,  

A especialista ressalta que a atual redação do PL beneficia apenas indivíduos que participaram do 8 de janeiro e de outros episódios posteriores a esse momento e, por isso, o ex-presidente não poderia ser englobado como beneficiário. “E isso significa que essa anistia, se for aprovada com essa redação, ela só beneficiaria o Bolsonaro em eventuais inquéritos, investigações que conectassem o Bolsonaro com o 8 de janeiro, e as investigações ainda estão em curso”, relembrou. 

Outro ponto que afasta essa provável aprovação da Lei com este efeito seria a possibilidade de estabelecer uma anistia a um único indivíduo. Barbosa ressalta que a anistia, quando concedida, é destinada a temas e não a indivíduos. A especialista menciona, ainda, que o caso em questão guarda semelhanças com o que aconteceu com o ex-deputado Daniel Silveira.

“Eu acredito que poderia ser um precedente que poderia levar uma discussão a respeito da moralidade e a impessoalidade, que é uma discussão constitucional, que traria para o STF esse tipo de discussão com uma alegada inconstitucionalidade por violação à moralidade e impessoalidade por meio dessa lei”, afirmou.

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