Educação & Cultura
Professores temporários vivem desafios dentro e fora da sala de aula
Entre os obstáculos enfrentados por esses educadores estão a falta de estabilidade, a ausência de benefícios trabalhistas e a desigualdade salarial
Haroldo José da Silva é docente em duas escolas da rede pública de São Paulo: a EMEF Osvaldo Quirino Simões e a EE Professor Alfredo Gomes. Em ambas, trabalha como professor contratado temporário. Ele conta que a área da Educação surgiu em sua vida em 2013, quando teve um problema na visão e, posteriormente, decidiu cursar Pedagogia e fazer uma pós-graduação em Educação Especial. Ao iniciar os estágios obrigatórios, o contato com as crianças o encantou e, desde então, optou por dar aulas para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Como professor temporário, ele diz que sua rotina é dar apoio pedagógico aos professores regentes e especialistas. E se um deles faltar, ele assume a aula. Mas isso não é sua maior preocupação. “O que mais me angustia é a dúvida: será que o meu contrato será renovado no próximo ano? Isso me afeta psicológica e financeiramente.”
Assim como o professor Haroldo, milhares de docentes no Brasil possuem contratos temporários nas redes públicas da Educação Básica. O vínculo temporário se constitui quando um professor, que não é concursado pela rede de ensino, é contratado por um determinado período de tempo. A duração desses contratos varia de um mês até seis anos.
Geralmente, a contratação temporária ocorre para substituir professores em licenças variadas, aposentadorias, pedidos de demissão ou por crescimento de demandas nas escolas. Segundo Haroldo Corrêa Rocha, coordenador geral do Movimento Profissão Docente, esse tipo de contratação deveria ser uma exceção, utilizada em casos específicos previstos na legislação. Mas o que vemos é que ela tem se tornado regra nas redes de ensino.
Aumento de contratos temporários
Um levantamento realizado pelo Todos pela Educação apontou que, entre 2020 e 2023, houve um aumento no quadro de professores na rede estadual do país, com um acréscimo de quase 30 mil docentes. Esse crescimento ocorreu, principalmente, devido às contratações temporárias nas redes estaduais.
Nesse período, a quantidade de professores temporários subiu 41%, enquanto o quadro efetivo teve uma queda de 17%. Devido a essas movimentações, em 2022, a quantidade professores temporários das redes estaduais superou, pela primeira vez, o número de efetivos, situação que se manteve em 2023. E essa tendência, que não é de hoje, teve início em 2013. Em uma década, o número de temporários aumentou 55% e o de efetivos diminuiu 36%.
O estudo também mostra que 43,6% dos docentes temporários atuam há pelo menos 11 anos como professores. Isso indica que os contratos temporários são parte da realidade das redes de ensino e estão sendo utilizados para compor o corpo docente fixo.
De acordo com Natália Fregonesi, coordenadora de políticas educacionais do Todos Pela Educação, o aumento no número de professores temporários nas redes estaduais pode ser explicado pela baixa frequência de realização de concursos públicos para docentes. A especialista elenca cinco possíveis causas para isso:
- Pandemia. A Lei Complementar nº 173/2020 proibiu a realização de concursos públicos durante a pandemia. Além disso, o período de 2020 a 2022 marcou a maior redução no número de docentes efetivos desde 2011, provavelmente impulsionada pelas aposentadorias aceleradas devido à Covid-19.
- Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Alguns estados já estão no limite máximo de despesa com pessoal. Por essa lei, seria possível reduzir a contratação de novos professores efetivos.
- Peso dos professores nas previdências estaduais. Os docentes efetivos, ao se aposentarem, recebem seus benefícios diretamente dos cofres estaduais, o que significa que os Estados são responsáveis por garantir a sustentabilidade financeira desse regime. Por outro lado, os temporários estão vinculados ao Regime Geral de Previdência Social, por meio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). É possível considerar, portanto, que o peso desses educadores na previdência dos Estados possa influenciar a decisão de abrir menos concursos para esses profissionais.
- Preferência do gestor da rede por contratar professores temporários. Isso pode ocorrer tanto pela maior facilidade na gestão desse tipo de contratação (como admitir, demitir e realocar), como por questões políticas (indicações, especialmente no caso de redes municipais pequenas).
- Modelos de previsão de demanda futura de professores são frágeis. Por esse motivo, as redes podem optar por não fazer concursos, pois não sabem exatamente quantos professores vão ser necessários futuramente.
Como as contratações temporárias afetam a vida do professor
Um dos grandes impactos desse tipo de contratação na vida dos docentes é na remuneração, que é mais baixa do que a dos professores efetivos. Assim, há duas condições salariais para a realização da mesma atividade.
Segundo Fábio Santos de Moraes, presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), uma das lutas da categoria é para que o governo cumpra a Meta 17 dos Planos Nacional e Estadual de Educação. Ela prevê valorizar os profissionais do magistério das redes públicas de Educação Básica de forma a equiparar seu rendimento médio ao dos demais profissionais com escolaridade equivalente. Outra reivindicação é a aplicação do Piso Nacional Profissional sobre o salário base e não com abono complementar. “Sem a valorização salarial, um plano de carreira atraente e melhores condições de trabalho, não atrairemos os jovens para a profissão de professor”, afirma.
Outro ponto que impacta a carreira dos professores temporários é que eles não têm os mesmos benefícios trabalhistas dos efetivos. “Esse tipo de vínculo não assegura os direitos que os docentes efetivos gozam, como o de ser regido por um Plano de Carreira e Remuneração, que define as possibilidades de progressão na carreira, com rebatimentos na remuneração, e o recebimento de gratificações, férias, etc.”, diz Rosana Maria Gemaque Rolim, professora titular da Universidade Federal do Pará (UFPA), com pós-doutorado em carreira e remuneração de professores da Educação Básica.
O tempo de contrato de um professor temporário é bem curto e isso é outro aspecto preocupante. Quando termina o contrato, há a expectativa de renovação, mas não se sabe se, de fato, isso acontecerá. “Não temos certeza de que no próximo ano seremos atribuídos a algumas salas de aula. Dessa forma, vivemos com a insegurança de estarmos ou não empregados”, lamenta Paula Cristina Penna Ferreira de Souza. Ela é professora tutora dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática na EE Paulo Leivas Macalão Pastor, em São Paulo (SP).
Railma Bezerra Soares, professora temporária do Ensino Fundamental no Colégio Estadual Rio Sono, em Rio Sono (TO), vive a mesma situação. “Meu sonho é conseguir melhorar de vida profissional, ter estabilidade e não precisar ser demitida todo final de ano. [Essa é a] triste realidade do professor temporário.”
- Impactos na sala de aula
A instabilidade e a rotatividade dos professores temporários também trazem desafios significativos ao processo de ensino e aprendizagem. Esses docentes precisam, constantemente, se adaptar a novas turmas. Isso pode prejudicar o vínculo com a comunidade escolar e afetar a continuidade das atividades pedagógicas, que são essenciais para o desenvolvimento emocional e cognitivo dos alunos, especialmente das crianças dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental e o ciclo de alfabetização.
Natália ressalta que ainda são poucos os estudos que abordam essa questão, mas eles têm apontado para os impactos negativos da contratação de docentes temporários no rendimento dos alunos em avaliações externas, tanto em Língua Portuguesa quanto em Matemática.
Na prática, esse problema é bastante comum. “Uma colega minha, professora temporária, foi retirada de sua função de repente. Um professor efetivo estava em uma ocupação na gestão de ensino, não se adaptou e retornou para a unidade escolar. E, assim, ela perdeu aquela turma, que teve seu processo de ensino e aprendizagem paralisado por duas vezes”, conta o professor Haroldo Silva.
Além da rotatividade alta, outro aspecto destacado pela especialista Natália são os processos seletivos utilizados pelas redes de ensino. “Em sua maioria, não mensuram as competências docentes e utilizam critérios de seleção que não são bons preditores da eficácia docente, como a titulação.”
Somado a esses fatores, ainda tem o desafio dos docentes temporários em se adaptarem à realidade de cada região. Rosana, docente da UFPA, destaca as escolas indígenas, quilombolas e ribeirinhas na Amazônia. “Do total de 180.277 professores da Educação Básica de territórios da Amazônia, 78.498 são professores temporários. Destes, 35.019 atuam nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Essa condição de vínculo precário dos professores compromete avanços efetivos e sustentáveis do direito à Educação dessas crianças.”
Valorização da carreira docente no contexto das contratações
Para garantir um maior reconhecimento da carreira docente, especialmente no caso dos professores temporários, é importante que as redes de ensino invistam em diferentes ações. Os especialistas que participaram desta reportagem sugerem algumas medidas:
Aprimoramento das formas de seleção dos temporários e efetivos
“É importante que as redes de ensino aumentem a frequência de realização de concursos para docentes, além de investirem na melhoria da sua qualidade. Por exemplo, incluindo provas teóricas que considerem as competências mais importantes para a prática docente”, sugere Natália, do Todos Pela Educação.
Concursos adaptados de acordo com as regiões
“É essencial considerar a diversidade das escolas, sobretudo as localizadas no campo, nas águas [nas proximidades de rios] e nas florestas. E, com isso, adequar os concursos públicos às diferentes realidades, como a formação específica de professores para atuarem em escolas indígenas, quilombolas e ribeirinhas, como as dos territórios da Amazônia”, propõe Rosana, da UFPA.
Modelos de contratação com melhores condições de trabalho
Natália também recomenda estabelecer um modelo intermediário de contratação. “É essencial instituir políticas públicas de seleção, alocação, remuneração e formação para os temporários. Esse modelo deve ser pensado em múltiplas dimensões, como previsão de contratos mais longos, avaliações periódicas, remuneração competitiva, benefícios similares aos docentes efetivos, etc.”
Haroldo Rocha, do Movimento Professor Docente, anuncia uma boa notícia sobre isso. “O Conselho Nacional de Secretários de Administração dos Estados (Consad) está trabalhando na elaboração de uma proposta de Projeto de Lei Nacional para regulamentar a contratação por tempo determinado para os três níveis federativos.”
Planejamento entre redes e escolas para evitar rotatividade
Uma forma de superar os contratos de curta duração é as redes de ensino fazerem um minucioso planejamento da demanda de professores ao longo do ano, por escola e por componente curricular. “A partir daí, seria possível planejar um número de contratações para suprir todas as necessidades, alocando os temporários de forma planejada. Assim, esses profissionais seriam totalmente integrados à rede, reduzindo os impactos de mudança entre as escolas”, aconselha Haroldo Rocha.
Plano de carreira e remuneração adequados
Rosana sugere a aprovação e a efetivação de Planos de Carreira e Remuneração para todos os professores indistintamente. Esse é um dos sonhos da professora Railma, de Tocantins: “Sou muito valorizada na minha escola, isso me motiva e me deixa feliz. Mas gostaria de equiparação salarial em relação aos demais colegas”, finaliza.
Fonte: Nova Escola