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A PEC nº 2/2003 ou PEC dos Cedidos
Examinamos as vantagens da proposta de regra transitória para permitir que servidores públicos concursados optem por transferir sua lotação funcional do órgão cedente para o órgão cessionário
Resumo:
- A PEC dos Cedidos busca regularizar a situação de servidores públicos cedidos, promovendo eficiência administrativa e justiça aos trabalhadores.
- A proposta estabelece regras transitórias para permitir que servidores concursados optem por transferir sua lotação funcional do órgão cedente para o órgão cessionário.
- A PEC não gera impacto financeiro adicional ao orçamento público, sendo uma medida economicamente responsável que promove a gestão eficiente dos recursos humanos no setor público.
A Proposta de Emenda à Constituição nº 2/2003, mais conhecida como a “PEC dos Cedidos”, foi apresentada em 25 de fevereiro de 2003 pelo Deputado Federal Gonzaga Patriota (PSB/PE), com o objetivo de corrigir um dos mais graves problemas enfrentados por servidores públicos cedidos a órgãos cessionários: a precariedade jurídica e a instabilidade que permeiam suas relações funcionais.
Com parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça e de Redação e da Comissão Especial, a PEC encontra-se pronta para votação no plenário da Câmara dos Deputados, aguardando apenas a vontade política para sua aprovação.
Analisaremos a viabilidade da PEC 2/2003 à luz do ordenamento jurídico, dos princípios do Direito Administrativo e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), demonstrando a necessidade de sua aprovação para regularizar a situação de servidores cedidos, promover eficiência administrativa e assegurar justiça aos trabalhadores.
A PEC 2/2003 acrescenta os artigos 90 e 91 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), estabelecendo uma regra transitória para permitir que servidores públicos concursados optem por transferir sua lotação funcional do órgão cedente para o órgão cessionário.
A norma traz consigo pontos fundamentais que destacam sua relevância para a administração pública, mantendo o respeito aos princípios constitucionais e promovendo a segurança jurídica.
Um dos pilares da proposta é a manutenção do concurso público como requisito indispensável para a alteração de lotação. A medida se aplica exclusivamente a servidores aprovados em concurso público ou investidos em cargo público antes da promulgação da Constituição de 1988, reforçando o compromisso com o art. 37, inciso II, da Constituição Federal, e afastando qualquer possibilidade de burla ao princípio do mérito no ingresso no serviço público.
Outro aspecto essencial da PEC é a previsibilidade que ela confere ao processo de regularização. O texto estabelece um prazo de 90 dias, contados a partir de sua aprovação, para que os servidores interessados optem pela transferência de lotação. Essa medida garante segurança jurídica tanto para os servidores quanto para a administração pública, permitindo que todos os envolvidos se adaptem de maneira organizada e transparente às mudanças promovidas.
Além de sua relevância jurídica e administrativa, a PEC nº 2/2003 apresenta um importante diferencial ao não gerar impacto financeiro adicional ao orçamento público, sendo uma medida economicamente responsável. Conforme previsto no art. 93, §§ 1º e 5º, da Lei nº 8.112/1990, e no art. 6º do Decreto nº 4.050/2001, os custos relacionados à remuneração dos servidores cedidos já são assumidos pela União ou pelo órgão cessionário. Isso significa que, na prática, o ônus financeiro da permanência desses servidores em suas funções atuais já está integralmente absorvido, tornando desnecessária qualquer alocação extra de recursos.
A formalização dessa situação, por meio da regularização, representa apenas a consolidação de uma prática já existente, sem implicar aumento de despesas públicas. Essa característica é essencial em um contexto de crescente atenção ao equilíbrio fiscal e ao uso responsável dos recursos públicos.
Diferentemente de outras propostas que poderiam gerar encargos adicionais, a PEC dos cedidos alia justiça administrativa à sustentabilidade financeira, promovendo um avanço significativo sem onerar os cofres públicos. Além disso, ao formalizar a situação funcional desses servidores, a PEC contribui para uma gestão mais eficiente e organizada dos recursos humanos no setor público.
A ausência de impacto orçamentário reforça o caráter técnico da proposta, demonstrando que sua implementação não apenas resolve uma questão de insegurança jurídica, mas também preserva os interesses financeiros do Estado e da sociedade como um todo. Isso evidencia que a regularização desses servidores é uma solução equilibrada, que harmoniza os princípios da economicidade, eficiência e justiça.
Por fim, a PEC dos cedidos busca eliminar a precariedade funcional que afeta esses servidores há anos. Ela assegura estabilidade no órgão cessionário, corrigindo uma situação que, na prática, já ocorre: o desempenho contínuo de funções em um órgão distinto daquele para o qual o servidor originalmente foi lotado. Essa mudança traz dignidade e segurança ao trabalhador, além de eficiência administrativa ao regularizar relações de trabalho que já estão consolidadas no dia a dia da gestão pública.
Atualmente, milhares de servidores públicos concursados encontram-se cedidos a órgãos da administração pública (cessionários), onde quase sempre desempenham atividades distintas daquelas previstas em seus cargos de origem.
Muitas vezes, a cessão de servidores ocorre logo após a conclusão do estágio probatório, o que resulta em uma desconexão quase total com o órgão para o qual originalmente prestaram concurso. Essa desconexão traz impactos significativos tanto para o servidor quanto para a administração pública.
Primeiramente, há uma perda progressiva da afinidade com o cargo de origem. O afastamento prolongado impede o exercício contínuo das funções para as quais o servidor foi treinado e aprovado, fazendo com que ele perca a expertise necessária para desempenhá-las com qualidade. Com o passar do tempo, o retorno ao órgão de origem torna-se não apenas desafiador, mas frequentemente inviável, dado o descompasso entre as competências adquiridas durante a cessão e as demandas do cargo original. Isso, sem mencionar os laços afetivos que foram construídos e solidificados no órgão cessionário.
Além disso, essa situação coloca o servidor em uma posição de precariedade jurídica. Embora a cessão seja formalmente regular, ela não confere estabilidade funcional no órgão cessionário. Isso significa que o servidor permanece vulnerável a um retorno abrupto e indesejado ao órgão de origem, muitas vezes sem aviso ou planejamento adequado. Tal instabilidade cria um ambiente de insegurança que afeta não apenas o servidor, mas também a eficiência do órgão cessionário, que pode perder um colaborador experiente de maneira repentina. Essa condição perpetua um estado de incerteza que mina a motivação e o comprometimento do servidor.
Do ponto de vista administrativo, a manutenção de servidores cedidos nos quadros do órgão de origem bloqueia a abertura de novas vagas, prejudicando o recrutamento de novos talentos. Como esses servidores ainda constam na estrutura funcional do órgão original, as oportunidades de reposição de pessoal ficam limitadas, impedindo a entrada de novos servidores que poderiam suprir as reais necessidades daquela unidade administrativa. Assim, a cessão, tal como é praticada atualmente, gera um círculo vicioso que compromete tanto a eficiência da administração pública quanto a estabilidade jurídica e funcional dos servidores envolvidos. A regularização dessas situações, como a proposta pela PEC nº 2/2003, busca romper esse ciclo, promovendo justiça e eficiência para todos os atores envolvidos.
Ademais, enquanto permanecem cedidos, muitos desses profissionais se qualificam, realizam cursos e adquirem competências específicas para atender às demandas do órgão cessionário, evidenciando sua dedicação e adaptabilidade ao cargo onde exerce as suas funções. Não é justo que, a qualquer momento, possam ser compelidos a retornarem ao órgão de origem.
A situação de precariedade dos servidores cedidos viola o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF). Tratar servidores como peças descartáveis, sujeitas a transferências arbitrárias, tirando-os do meio onde construíram amizades e uma vida funcional já consolidada, é medida que desconsidera sua dedicação e suas necessidades pessoais e familiares, gerando instabilidade emocional e material.
Nesse mesmo sentido, exigir o retorno de servidores após décadas de cessão desconsidera a razoabilidade e a proporcionalidade, princípios fundamentais para a análise de atos administrativos. O vínculo funcional e profissional do servidor, consolidado no órgão cessionário, deve prevalecer em relação à formalidade de lotação no órgão de origem.
Não se está defendendo aqui a efetivação de servidores que não ingressaram no serviço público por meio de concurso, mas sim de assegurar a regularização daqueles que, após aprovados em concurso público para um determinado órgão, foram requisitados por outro e lá têm desempenhado suas atividades por vários anos, ainda que em funções distintas daquelas originalmente previstas no cargo para o qual foram selecionados.
O art. 37, caput, da Constituição Federal, consagra a eficiência e a moralidade como princípios fundamentais que devem nortear todas as atividades da Administração Pública. Nesse contexto, a PEC nº 2/2003 surge como um instrumento poderoso para promover esses valores, especialmente no que diz respeito à eficiência administrativa.
Um dos aspectos mais evidentes dessa contribuição é a valorização do conhecimento e da experiência acumulados pelos servidores cedidos ao longo dos anos. Esses profissionais, já plenamente adaptados às dinâmicas do órgão cessionário, poderão continuar contribuindo de maneira efetiva com suas habilidades específicas, sem a necessidade de reintegração a órgãos de origem onde, muitas vezes, sua atuação pode não ser mais necessária ou estratégica.
Ao formalizar a lotação definitiva desses servidores, a PEC também atua como um mecanismo de racionalização administrativa, eliminando a ociosidade que frequentemente ocorre nos órgãos de origem. A transferência definitiva permitirá a abertura de novas vagas nesses órgãos, ajustando seus quadros de pessoal às reais demandas institucionais.
Esse processo resulta não apenas em uma gestão mais eficiente dos recursos humanos, mas também em uma melhor distribuição de talentos, assegurando que os servidores estejam alocados onde podem gerar maior impacto positivo.
Além disso, a regularização prevista na PEC contribui para o fortalecimento da moralidade na Administração Pública ao trazer transparência e previsibilidade às relações funcionais.
A insegurança jurídica que atualmente paira sobre a situação desses servidores cedidos pode levar a questionamentos éticos e jurídicos, colocando em xeque a própria credibilidade dos órgãos envolvidos. A PEC, ao estabilizar essa relação, elimina quaisquer dúvidas sobre a legitimidade e regularidade das lotações, reafirmando o compromisso da Administração Pública com uma gestão baseada em princípios éticos e em respeito aos servidores e à sociedade.
O Supremo Tribunal Federal se manifestou recentemente sobre tema similar. No julgamento do Agravo de Instrumento nº 746.083/MG, o STF analisou a transformação de função pública em cargo público para servidores estáveis aprovados em concurso interno, desde que respeitados os princípios constitucionais, como o mérito e a eficiência.
Essa decisão abordou o contexto de servidores que, já estáveis nos termos do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), poderiam consolidar sua efetivação mediante concurso interno específico. Assim como no julgamento, a PEC valoriza servidores que, após ingresso regular no serviço público, consolidaram anos de contribuição em órgãos cessionários, promovendo estabilidade e eficiência ao regularizar sua situação funcional.
O STF entendeu que a transformação da função em cargo público não viola os preceitos constitucionais quando é utilizada para regularizar situações consolidadas no serviço público. O Tribunal destacou que tal medida não configura ingresso irregular, mas uma progressão vinculada ao histórico funcional e ao mérito desses servidores. O tempo de serviço foi considerado um título válido para a efetivação, reforçando que a estabilidade no serviço público, por si só, não garante efetividade no cargo, sendo necessário o cumprimento de critérios legais adicionais, como o concurso.
Esse precedente é relevante no debate sobre a PEC nº 2/2003, pois reforça a constitucionalidade de mecanismos que busquem alinhar a eficiência administrativa à segurança jurídica.
Como se vê, a PEC 2/2003 representa uma medida justa, eficiente e necessária para a regularização da situação dos servidores cedidos. Não se trata de promover ascensão funcional ou de burlar a exigência de concurso público, mas de corrigir uma distorção histórica que prejudica tanto os servidores quanto a Administração Pública.
O Congresso Nacional deve priorizar a votação da PEC 2/2003, demonstrando sensibilidade às demandas do funcionalismo público e compromisso com a melhoria da Administração Pública.
Dessa forma, a aprovação da PEC dos cedidos não apenas valoriza os servidores públicos, reconhecendo sua dedicação e especialização ao longo dos anos de serviços prestados, mas também fortalece a eficiência e a moralidade administrativas. É um passo fundamental para promover justiça, segurança jurídica e respeito aos princípios constitucionais que regem o serviço público no Brasil.
Mestre em Regulação e Políticas Públicas (Universidade de Brasília – UNB). Pós-graduado em Direito Público. Graduado em Direito e em Segurança da Informação. Ex- Conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal COPEN/DF. Servidor do Superior Tribunal de Justiça (ex-assessor da Presidência). Advogado licenciado. Autor de livro e diversos artigos publicados em diferentes periódicos e revistas eletrônicas.