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“Sem anistia!” – A frase é universal ou seletiva?
O bordão “sem anistia!”, revivido com força pela esquerda brasileira após o indiciamento de Jair Bolsonaro e aliados por tentativa de golpe, reacendeu debates intensos no cenário político. Originalmente associado ao período de redemocratização no Brasil, o grito hoje carrega novas nuances e contradições. Enquanto setores progressistas clamam por punições exemplares para os envolvidos nos ataques de 8 de janeiro de 2023, a pergunta que ecoa é: esse apelo pela justiça é realmente universal?
A indagação ganha força quando se observa o tratamento dado ao caso de Luiz Inácio Lula da Silva. Após ter sido condenado a mais de 20 anos de prisão em processos relacionados à Operação Lava Jato, Lula foi beneficiado por uma série de decisões judiciais que, em última análise, anularam suas condenações. Mas será que o desfecho desses casos foi fruto de um sistema jurídico coerente ou resultado de interesses políticos?
Lula foi preso em 2018, mas passou menos de dois anos na cadeia. Suas condenações foram anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com base em questões processuais, como o foro inadequado e a parcialidade de Sergio Moro, juiz responsável por suas sentenças. Essas decisões, no entanto, estão longe de serem consensuais.
O ministro Gilmar Mendes, figura central nessa reviravolta, justificou as decisões como um esforço para “devolver a política aos políticos”, insinuando que a Operação Lava Jato havia usurpado funções institucionais. “Tivemos muita honra em restaurar os direitos políticos do presidente Lula”, disse Mendes, defendendo seu papel na anulação das sentenças. Mas, na prática, essas medidas não apenas restauraram os direitos políticos de Lula, como reacenderam uma polarização que já dividia o país.
Para os críticos, a anulação das condenações consolidou a ideia de que o sistema judiciário brasileiro funciona de forma desigual. Enquanto Lula retomava sua trajetória política, processos de ressarcimento bilionário ao Estado — como os estimados 17 bilhões de reais associados à Lava Jato — foram enfraquecidos ou completamente desmantelados.
A justificativa de que o STF “corrigiu” erros judiciais em prol do equilíbrio institucional tem gerado desconfiança. Afinal, a decisão de liberar Lula, mesmo diante de acusações graves, não foi acompanhada de um novo julgamento que analisasse os méritos dos casos. A solução encontrada foi anular as sentenças, garantindo o retorno político do ex-presidente e silenciando os processos por meio da prescrição.
O ministro Rui Costa, chefe da Casa Civil, sintetizou uma contradição latente ao declarar que “a impunidade é irmã gêmea da criminalidade”. Ele se referia aos atos golpistas de 2023, mas a frase ressoa ironicamente diante das decisões que beneficiaram Lula e outros políticos condenados. Como exigir punições rigorosas para uns, enquanto outros escapam de sanções sob o manto de “ajustes técnicos”?
Essa seletividade parece minar a confiança no sistema de justiça. Para muitos, as decisões recentes demonstram que o peso da lei no Brasil ainda depende da influência e do cargo ocupado pelo réu.
O impacto da Lava Jato foi imenso, mas seu desmonte é igualmente impressionante. Desde a anulação das condenações de Lula, outros casos ligados à operação também sofreram reveses. O ministro Dias Toffoli, por exemplo, reviu decisões que favoreceram mais de 100 condenados, diluindo ainda mais o alcance da força-tarefa.
O sentimento predominante entre os brasileiros é de que a Lava Jato representava um raro momento de combate à corrupção, mas foi desarticulada de forma que deixou um vazio na percepção de justiça. Para os críticos, a impunidade parece ter voltado a imperar, alimentando discursos polarizados e aprofundando o fosso entre o cidadão comum e as elites políticas.
O discurso “sem anistia!” não resiste às contradições de quem o entoa. A exigência por punições exemplares só tem credibilidade quando é aplicada de maneira uniforme. Perdoar aliados e condenar adversários desvirtuam qualquer tentativa de construir um país mais justo e fortalece a narrativa de que, no Brasil, as regras mudam conforme a conveniência política.
A questão que permanece é até onde o Brasil está disposto a ir para enfrentar essas incoerências. Se o bordão for usado apenas como ferramenta política, perderá sua força e se tornará mais uma peça na engrenagem polarizada que trava o progresso do país. O que está em jogo, no final das contas, não é apenas a justiça, mas a capacidade do Brasil de superar ciclos de impunidade que continuam a corroer sua credibilidade institucional.