Internacional
Os desafios de Yamandú Orsi, discípulo de Mujica, no Uruguai
Presidente eleito tem perfil de negociador político, que lhe será útil sem maioria absoluta na Câmara dos Deputados e inúmeros desafios no governo
“Serei o presidente que convocará continuamente o diálogo nacional”, afirmou o presidente eleito do Uruguai, Yamandú Orsi, no breve discurso com o qual festejou sua vitória no segundo turno da eleição de domingo (24/11).
De fato, se há algo que define o passado político de Orsi, é a sua busca pelo entendimento. Durante uma década, Orsi foi governador de Canelones, o segundo departamento mais populoso do país, onde nasceu há 57 anos numa família humilde.
Perfil de negociador político
Algo essencial no cargo de governador uruguaio é a capacidade de negociação – qualidade que até os críticos de Orsi reconhecem nele. “Era necessária uma maioria especial para aprovar determinados empréstimos com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e ele a conseguia negociar com a oposição”, explica Guedes.
“Não estamos falando de um estadista ou de um intelectual. Estamos falando de uma pessoa que foi secretário-geral do governo de Canelones por dois períodos consecutivos e governador duas vezes seguidas”, afirma o cientista político Alejandro Guedes.
Essa bagagem política e seu espírito conciliador lhe serão úteis no futuro, quando tiver que buscar acordos na Câmara dos Deputados, onde não obteve a maioria absoluta por uma diferença de apenas duas cadeiras.
Guedes acrescenta que a origem humilde e a sua forma de se expressar, com um linguajar popular, propiciam a Orsi uma empatia com o eleitorado.
Discípulo de Mujica
Orsi estudou em Montevidéu, onde se tornou professor de história. Foi na capital que ele teve contacto com o Movimento de Participação Popular (MPP), liderado por José “Pepe” Mujica, que viria a governar o país entre 2010 e 2015 e se tornar um dos maiores símbolos da esquerda sul-americana. Tal como o seu mentor, que preferiu morar em sua fazenda durante o mandato, Orsi já afirmou que também não ocupará a residência oficial da Presidência.
Há ainda outras semelhanças entre eles. “Mujica, além de ser uma referência internacional, acabou se tornando um incentivador da moderação na política interna, na negociação. Orsi é muito parecido, mas, pelas suas origens, tem um espírito ainda mais negociador”, diz o historiador e cientista político uruguaio Gerardo Caetano.
A atitude de Mujica mudou significativamente desde a sua época de guerrilheiro, com um posicionamento atual mais próximo da social-democracia. O mesmo ocorre com Orsi. “A referência da esquerda regional é Lula, mas a liderança jovem de Gabriel Boric [presidente do Chile] também reverbera em figuras como Orsi, como nas opiniões bastante críticas aos regimes de Venezuela, Nicarágua ou Cuba”, observa Caetano.
Nicolás Maduro e Javier Milei
O Uruguai teve que retirar todo o seu pessoal diplomático da Venezuela após o governo de centro-direita de Luis Lacalle Pou questionar o processo eleitoral de julho de 2024, que culminou na contestada reeleição do presidente Nicolás Maduro. Orsi foi forçado a se posicionar claramente na campanha contra o regime venezuelano. “Ele vai tentar manter boas relações com a Venezuela, mas com uma prudência cirúrgica”, analisa Guedes.
Quanto à vizinha Argentina, com Javier Milei entre os antípodas ideológicos e pessoais de Orsi, ambos os especialistas preveem a habitual cordialidade. “O Uruguai sabe manter a diplomacia com os países vizinhos porque, obviamente, a economia do Uruguai depende em grande medida não só do Mercosul, mas também da Argentina e do Brasil. Isso está bem claro. Essa ponte nunca foi explodida na campanha de Orsi em relação a Milei”, enfatiza Guedes.
Com uma população de 3 milhões de habitantes e situado entre os dois gigantes econômicos Brasil e Argentina, o Uruguai, seja qual for a ideologia de seu governo, sempre buscará a cordialidade da boa vizinhança. “Orsi conduzirá seu mandato de presidente uruguaio evitando qualquer desentendimento com o presidente argentino”, afirma Caetano. “Ele, igualmente, vem de uma tradição política onde a ideia de autonomia nacional é muito importante: ‘Não me envolvo na política argentina porque, entre outras coisas, não quero que eles se envolvam na minha.'”
Desafios de política interna
Orsi enfrentará numerosos desafios em seu próprio país: salários, subsídios estudantis, aposentadorias, pobreza infantil, segurança social, educação, cuidados de idosos num país envelhecido, a agenda de gênero, entre outros.
Mas, se há um problema que preocupa a população uruguaia é a violência. “O Uruguai ficou inseguro. O país tem indicadores de homicídios por 100 mil habitantes muito elevados, sua taxa é o dobro da argentina. Nos bairros pobres, a insegurança é muito elevada e, num percentual muito alto, ligada ao tráfico de drogas”, explica Caetano.
O historiador e cientista político afirma que o país se tornou um depósito para o tráfico de drogas da região, devido, entre outras razões, à vulnerabilidade da defesa do Uruguai por terra, mar e ar. Isso teria feito com que o porto de Montevidéu se tornasse “o porto de partida de grandes carregamentos de drogas com destino à Europa”.
“É uma questão que o próximo presidente terá de abordar não apenas dentro das fronteiras, mas também em nível regional”, afirma Caetano. Nesse ponto, a liderança de Orsi em negociar será novamente testada.