Segurança Pública
Golpismo e terrorismo colocam em pauta reforma ou extinção das Forças Armadas
Ações de bolsonaristas militares e civis mantêm a nação sob o risco de ruptura institucional
O ataque terrorista realizado em Brasília em 13 de novembro nas proximidades do Supremo Tribunal Federal (STF) e as revelações da trama golpista liderada pelo então presidente Jair Bolsonaro no fim de 2022 são lembretes do elevado nível de radicalização da direita no Brasil.
Não se trata, porém, de fenômeno circunscrito às fronteiras nacionais. O bolsonarismo, sem dúvida, opera com base em múltiplos ressentimentos, mas é sempre importante lembrar que ideologias extremistas são fomentadas por redes transnacionais e não raramente o discurso delas culmina em atos de violência.
A extrema direita global compartilha táticas, financiamento e um objetivo comum: deslegitimar sistemas democráticos e consolidar o poder autoritário. As instituições políticas e sociais do Brasil estão mal preparadas para conter ou combater essas ameaças.
No centro desse fracasso estão as Forças Armadas — uma instituição cujo papel e existência precisam ser profundamente reavaliados se o Brasil deseja proteger sua democracia. Elas estão no centro da trama golpista que, caso bem-sucedida, teria colocado o Brasil entre os países em que a extrema direita já logrou erodir a confiança nas instituições democráticas, processo que, na atual conjuntura, depende essencialmente da disseminação de desinformação.
Durante seu mandato, por exemplo, Bolsonaro atacou consistentemente normas democráticas, instituições e espalhou teorias da conspiração infundadas sobre fraude eleitoral. Sua retórica de “nós contra eles” não apenas polarizou o país, mas também encorajou seus apoiadores a tomarem medidas extremas.
O fato de a oposição, encabeçada pelo PT, adotar há décadas o mesmo discurso pró-polarização também contribuiu para a radicalização do país, mas o bolsonarismo é sem paralelos no grau de violência discursiva e física empregados.
As plataformas de redes sociais desempenham um papel crucial na amplificação dessa radicalização. Hoje, Elon Musk, proprietário do X (antigo Twitter), é figura crucial na ligação entre extremistas dos EUA e Brasil, promovendo ódio contra instituições, em particular o STF. Os algoritmos das redes priorizam o sensacionalismo e a indignação, empurrando os usuários para bolhas onde a desinformação prospera.
Esse ciclo de retroalimentação entre retórica política e desinformação amplificada pelas redes sociais é evidente em todo o mundo, tal como demonstrado pelo movimento Make America Great Again (MAGA) de Donald Trump nos Estados Unidos e a propaganda nacionalista de Viktor Orbán na Hungria. E tudo sob o olhar plácido do líder russo Vladimir Putin.
O contexto global da violência de extrema direita
A radicalização no Brasil está profundamente interligada a esse movimento transnacional de expansão da extrema direita, haja vista que Bolsonaro alinha-se abertamente a essas figuras e seus ideólogos, sendo o mais notório deles Steve Bannon, ainda bastante ativo por estas bandas, além de supremacistas brancos e conspiracionistas de todo tipo.
Além do alinhamento ideológico, há uma infraestrutura tangível conectando esses movimentos por meio de fontes compartilhadas de financiamento, campanhas de desinformação e apoio logístico que fluem além das fronteiras, criando um ecossistema global de extrema direita.
O ataque em Brasília serve como um lembrete assustador de que o extremismo de direita não reconhece fronteiras nacionais. Para combatê-lo, as democracias devem adotar uma abordagem igualmente global, compartilhando inteligência, regulando plataformas tecnológicas e responsabilizando líderes políticos por incitar a violência.
Para além da necessidade de articulação internacional, cabem reformas nas instituições domésticas. Por décadas, as Forças Armadas brasileiras se posicionaram como guardiãs da nação, mas seu papel muitas vezes foi o oposto. Desde a ditadura militar até seu apoio tácito às ambições autoritárias de Bolsonaro, as Forças Armadas têm repetidamente minado os processos democráticos.
Isso levanta uma questão crítica: o Brasil precisa das Forças Armadas? Em um país onde a intervenção militar historicamente levou à repressão e violência, a própria existência de uma instituição tão poderosa representa uma ameaça à democracia.
Em vez de depender de uma estrutura militar desatualizada e cada vez mais politizada, o Brasil deveria considerar a transição para um aparato de segurança liderado por civis. Uma força civil profissionalizada e responsável, focada na proteção dos direitos constitucionais e não em agendas políticas, poderia proteger melhor a democracia.
Isso exigiria uma reforma completa da arquitetura de segurança do Brasil, incluindo:
- Desmantelar a estrutura militar atual: Transferir responsabilidades militares para agências civis especializadas, como patrulhas de fronteira e unidades de resposta a desastres.
- Desmilitarizar as forças policiais: Garantir que as polícias sejam treinadas em técnicas de desescalada e engajamento comunitário, em vez de táticas militaristas.
- Estabelecer mecanismos de supervisão: Criar órgãos independentes para monitorar as forças de segurança e investigar abusos de poder.
- Investir em educação e engajamento cívico: Abordar as causas profundas da radicalização por meio de campanhas educacionais robustas e apoio a comunidades marginalizadas.
Países como a Costa Rica, que aboliu suas Forças Armadas em 1948, oferecem um modelo de como a segurança liderada por civis pode funcionar. O governo do país centro-americano redirecionou os gastos militares para educação, saúde e infraestrutura, criando uma sociedade estável e próspera. Embora o tamanho e a complexidade do Brasil apresentem desafios únicos, o princípio permanece o mesmo: a segurança deve servir ao povo, e não o contrário.
O ataque em Brasília é um lembrete contundente da fragilidade da democracia diante do extremismo. Mas também é uma oportunidade para o Brasil enfrentar as falhas institucionais que permitiram a radicalização florescer. Isso significa responsabilizar Bolsonaro e seus aliados, regular os ecossistemas de desinformação que alimentam a violência e repensar o papel das Forças Armadas em uma sociedade democrática.
Mais amplamente, a luta do Brasil contra o extremismo de direita reflete uma crise global. Democracias em todo o mundo devem reconhecer a natureza interconectada desses movimentos e agir de forma decisiva para combatê-los. Seja por meio de cooperação internacional, regulamentação mais rigorosa de tecnologia ou reformas como a possível transição do Brasil para uma política de segurança nacional liderada de fato por civis, o momento de agir é agora.
Raphael Tsavkko Garcia
Jornalista publicado pelo MIT Tech Review, Wired, Foreign Policy, Al Jazeera, dentre outros. Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Deusto (Espanha)