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Judiciário

Os limites da imunidade parlamentar

1. O caso:

Muito se discute nos dias de hoje quais são os limites da imunidade parlamentar. Isso, com efeito, acabou por ganhar relevância pelo fato de um deputado federal, Marcel Van Hattem, ter lançado ofensas pessoais a um delegado de Polícia Federal condutor do notório inquérito do 8 de janeiro. Na tribuna da Câmara dos Deputados, o parlamentar chamou-o de “bandido” e, no momento em que proferia as ofensas, expôs uma foto do delegado. Desse fato, foi instaurado inquérito policial no Supremo Tribunal Federal, cuja relatoria foi designada ao ministro Flávio Dino.

Eis, então, que o deputado federal, buscando angariar capital político, passou a tecer críticas efusivas à referida instauração do procedimento policial, dizendo se tratar de perseguição levada a cabo pelo núcleo político que lhe é antagonista (uma vez que o ministro Dino fora indicado pela situação) e, em sessão pública, chegou a desafiar o diretor da Polícia Federal (também indicado pelo Executivo) a prendê-lo, naquele instante, em flagrante delito. Para não deixar passar em branco: desafiar uma autoridade policial a prendê-lo em flagrante delito por crime condicionado à representação e processado mediante queixa em ação penal privada, por certo, somente aos incautos poderia representar um ato de coragem.

Desse contexto, o objetivo desse texto, em essência, é promover um choque entre o debate político e a realidade. É demonstrar como esse tipo de discurso paranoide, de perseguição política e desafio às autoridades policiais, não passa de mera bravata cujo objetivo único é inflamar as massas a acreditarem em um universo paralelo.

2. A imunidade parlamentar:

Não nos cabe, nessas breves linhas, perpassar por toda a história da imunidade parlamentar que, como se sabe, já constava do bill of rights e, no Brasil, constou primeiramente na Lei Orgânica do Governo Provisório de Pernambuco, em 1817, no texto constitucional propriamente dito veio a ser inserida na Constituição Política do Império do Brasil de 1824 [1] e, nos dias de hoje, tem assento no artigo 53 da Constituição Federal de 1988. A sua relevância, portanto, é indiscutível. A inviolabilidade é uma prerrogativa do parlamentar que se demonstra como elementar para o livre exercício do mandato. Mas há de se ter limites.

O ponto é trazer o que o Supremo, na atual composição, entende por imunidade parlamentar. Claro que a jurisprudência já discutiu várias nuances sobre a temática, como: a) inviolabilidade absoluta, isto é, que estaria adstrita a toda e qualquer fala do parlamentar, dentro ou fora da tribuna; b) a relativa (ou concepção funcional), de que a inviolabilidade se restringiria às falas proferidas com nexo de causalidade com a atuação parlamentar, independentemente de onde o deputado estiver e; c) da inviolabilidade absoluta, mesmo que não relacionada com o exercício do cargo, na tribuna, sendo, portanto, um critério eminentemente espacial (STF, Inquérito 1.710-8/SP).

Veja, assim, que concepção funcional da imunidade parlamentar é, pacificamente, aquela que os tribunais compreendem como a mais acertada. Mas há um problema dentro do problema: o que necessariamente caracterizaria o nexo de causalidade entre a atividade política e o exercício do mandato. Ainda, há o fato de estando dentro da casa legislativa também asseguraria ao parlamentar uma proteção mais ampla. Evidentemente, é defeso a um deputado usar da tribuna para incitar a população a cometer crimes, a praticar xenofobia, homofobia, racismo ou para proferir discursos de cunho nazista. Certo? Ninguém discorda, nesse sentido, que a inviolabilidade, nesses casos, não se aplica. Não há qualquer nexo de causalidade com a atividade política, senão unicamente o propósito de praticar crimes e promover um discurso que, em sua essência, é antidemocrático. O que acresce, portanto, ao debate público a utilização da tribuna da Câmara dos Deputados para ofender, acusar e expor um agente público?

O Supremo Tribunal Federal, na PET nº 8242/DF, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, assentou um entendimento de que a imunidade parlamentar tutela o uso da liberdade de expressão e não o seu abuso. O direito do parlamentar, dentro de uma estrutura constitucional baseada no princípio da isonomia, não pode servir como um privilégio e como um salvo conduto para a prática de crimes contra a honra. O referido leading case é uma ligeira guinada na jurisprudência do Pretório Excelso que tem limitado os casos em que a inviolabilidade pode ser aplicada.

3. A realidade que constrange:

E esse é o momento em que a realidade constrange o discurso político-partidário: baseado nesse entendimento, o Supremo Tribunal Federal, na PET 11.204/DF, determinou o processamento de queixa-crime ofertada por Jair Bolsonaro (do mesmo núcleo político do deputado) contra André Janones (vinculado à situação). O julgamento não foi por unanimidade, mas um voto foi de especial relevância: o ministro Flávio Dino julgou por não aplicar a inviolabilidade parlamentar ao deputado Janones, justamente porque compreende que argumentos ad hominem não se vinculam com o exercício da atividade política e com as funções que são inerentes a um deputado federal.

Naquele julgado, ademais, o ministro Dino argumentou que as palavras grotescas e agressões pessoais na política, antes raras e espantosas, estão se tornado banais e corriqueiras. Por isso, sustentou que esse tipo de agir é incompatível com o princípio da moralidade, com o pluralismo político e com os direitos fundamentais. O que em verdade sustentou o ministro é que as posições ideológicas, discussões sobre políticas públicas, críticas a governos e afins presumem-se amparadas pelo manto da imunidade parlamentar e que o fim social desta consiste em “possibilitar que o parlamentar exerça sua função de veiculador de ideias e de agente competente para exercer o controle sobre demais poderes”. Uma vez mais: esse entendimento foi veiculado em uma ação proposta por Bolsonaro contra Janones.

4. Como interpretamos o artigo 53 da Constituição:

Dessa decisão do ministro, exsurge outro questionamento deveras relevante: qual o objetivo da imunidade parlamentar? Como, à luz da hermenêutica, devemos sopesar a inviolabilidade? Reconstruir a história institucional do fenômeno é suficiente para compreender que o seu uso está relacionado à garantia da liberdade de expressão como uma ferramenta para assegurar o contraditório e manter a democracia hígida e forte, promovendo o desenvolvimento de um debate plural e evitando censuras que, em grande parte da história do Brasil, foi levada a cabo por regimes militares. Sob todos os ângulos, não é salvaguarda para a prática de crimes. Dizer que o parlamentar é inviolável por suas palavras, opiniões e votos não significa que, da tribuna ou fora dela, este poderá deliberadamente cometer crimes.

Isso me parece óbvio, inclusive, e esse estado de coisas me faz lembrar de Wittgenstein e dos “jogos de linguagem” e o que isso representa no direito, como desenvolveu Streck. Há certas coisas que, por sua obviedade e por estarem inseridas, desde sempre, na linguagem pública, sequer precisam ser ditas. Se eu digo que o parlamentar tem imunidade parlamentar, isso não importa dizer que ele pode usá-la com o pretexto de praticar crimes. No exemplo de Wittgenstein, se eu digo “mostre um jogo para as crianças”, preciso dizer que eu não tenho em mente que aquele para o qual dei a ordem não deva ensinar elas a jogar dados valendo dinheiro [2]?

A situação hipotética trazida pelo filósofo austríaco e a sua relação com o direito foi cirurgicamente abordada no parecer do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil que se posicionou de modo contrário ao indulto concedido ao ex-deputado federal Daniel Silveira. O parecer, lavrado por Lenio Streck (ver aqui), em certo momento discorre o seguinte: a obviedade da resposta conferida ao exemplo de Wittgenstein revela, por si só, a força do contexto e, com Lon Fuller, esse tipo de problema é absolutamente comum no direito, à exceção dos momentos em que Fuller tem como desvios ou “escorregões literalistas”. Streck, portanto, menciona que a concessão do indulto, àquela altura, foi um típico caso de “escorregão literalista” e daí advém a resposta do direito: “é óbvio que não era esse o tipo de jogo, e é óbvio que sua exclusão não precisaria já estar na mente do pai que fez o pedido. Porque o contexto já constrange” [3]. Quer dizer, o próprio jogo de linguagem já traz implicitamente esse limite. Com Streck, é relevante mencionar que “um dispositivo legal ou constitucional que confere uma prerrogativa a um indivíduo em posição de poder traz limites que não estão necessariamente explícitos. Porque o próprio direito, enquanto fenômeno de limitação do arbítrio, estabelece esses limites” [4].

O artigo 53 do texto constitucional diz que os parlamentares são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras ou votos. Em sua literalidade, poder-se-ia dizer que se trata de uma imunidade absoluta, mesmo que tais manifestações não contenham vínculo com a atividade política. O Supremo Tribunal Federal já impôs, de há muito, limites (mormente depois da Emenda Constitucional nº 35/2001). O primeiro e mais relevante: há imunidade enquanto houver nexo com o desempenho do cargo. E o que muda se o parlamentar estiver dentro da casa legislativa? Nos dias de hoje, absolutamente nada. Em poucos minutos ou mesmo instantaneamente, o discurso do parlamentar estará em todas as suas mídias sociais.

Nesse cenário, não se pode tratar todos os conceitos jurídicos como se estivessem estagnados no tempo. Oportuno, nesse passo, o exemplo de Streck: um conceito de flagrante em 1943 não é o mesmo que em 2024 [5]. Afinal, a ideia de imunidade parlamentar, positivada no texto constitucional, não pode ser interpretada sem a consideração da historicidade. Daquilo que ela representa no contexto do Estado Democrático de Direito. Dos princípios institucionalizados que visa a assegurar, dentre os mais importantes a liberdade de expressão do parlamentar para exercer livremente o seu mandato, seja criticando o governo ou a postura de opositores. No Brasil, é extremamente relevante, inclusive, máxime porque em pouco mais de 130 tivemos – entre tentativas e consumações – ao menos seis golpes de Estado perpetrados, em sua maioria, por militares. Isso sem contar este último, cujo um dos conspiradores era, casualmente, aquele que o parlamentar defendia da tribuna enquanto ofendia o delegado.

Mesmo assim, o deputado está em sua razão de criticar eventual investigação, conquanto não cometa crimes para isso. Aliás, o Judiciário, dia sim, dia também, comete erros. Talvez seria interessante o deputado, da tribuna, denunciar a grande seletividade da Justiça Criminal, o recrudescimento da jurisprudência defensiva que transforma os tribunais em máquinas de moer gente ou, mesmo, na sua função de parlamentar, ajudar a barrar projetos de leis punitivistas que, na ponta, somente atingem aqueles que estão no andar de baixo do sistema. Claro. Sempre com lhaneza.


[1] AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Inviolabilidade parlamentar, São Paulo: Quartier Latin, 2020.

[2] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda., 1999.

[3] P. 18 do parecer, disponível em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/graca-silveira-inconstitucional.pdf.

[4] P. 19 do parecer, disponível em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/graca-silveira-inconstitucional.pdf.

[5] A propósito, veja-se a relevante aproximação desta estagnação de conceitos com o positivismo jurídico: “Comecemos daí – e o faço com toda a lhaneza com que venho tratando dos debates jurídicos. O aguilhão semântico é uni presente: vemos isso acontecer no exemplo do conceito de ‘flagrante’. Ora, o que é um flagrante em 2021? É o mesmo flagrante de, digamos, 1943? Ou 1964? Por que digo que isso é um problema tipicamente positivista? Porque o positivismo – e aqui está o ponto –, ainda que não se saiba (ou se reconheça) positivismo, trata todos os conceitos jurídicos como se fossem criteriais, isto é, como se tivessem seus significados previamente fixados por critérios de convenção semântica. Com todo o respeito acadêmico, permito-me dizer que, sem compreender esse fenômeno, o Direito andará em círculos”. STRECK, Lenio Luiz. Obstáculos epistemológicos e construção de tese em Habeas Corpus. Consultor Jurídico, 26 out. 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-out-26/senso-incomum-obstaculos-epistemologicos-construcao-tese-hc/>. Acesso em: 10 dez. 2023.

  • Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos é doutor em Direito (Unisinos-RS), mestre em Ciências Criminais (PUC-RS), membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado criminalista.
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