Internacional
Por que Congo processou Apple por “minerais de conflito”
República Democrática do Congo acusa Apple de usar minerais provenientes de mineração ilegal e fazer propaganda enganosa sobre suas cadeias de suprimentos
Em uma queixa criminal apresentada na terça-feira (17/12), a República Democrática do Congo (RDC) acusa a Apple de fazer uso de minerais provenientes de mineração ilegal no país, sobretudo estanho, tântalo, tungstênio e ouro.
Autoridades da ONU informaram que algumas das minas em questão são operadas por grupos armados envolvidos em massacres da população civil, agressões sexuais generalizadas, saques desenfreados e outros crimes.
“O objetivo é mostrar aos consumidores que o produto que eles têm em suas mãos está contaminado por crimes internacionais”, disse à DW o advogado belga Christophe Marchand, que preparou o processo da RDC contra a Apple.
“Práticas comerciais enganosas”
A RDC acusa mais especificamente as subsidiárias francesa e belga da Apple por contrabando de matérias-primas congolesas via Ruanda. Além da “lavagem de minerais de zonas de conflito”, uma das queixas apresentadas pelos advogados em nome do Ministério da Justiça da RDC acusa a empresa de empregar “práticas comerciais enganosas para garantir aos consumidores que as cadeias de suprimentos são limpas”.
O objetivo da ação judicial é “confrontar indivíduos e empresas envolvidos na cadeia de extração, aquisição e comercialização de recursos naturais e minerais saqueados na RDC”.
A Apple emitiu uma longa declaração em sua defesa: “Contestamos veementemente essas alegações. Mantemos nossos fornecedores nos mais altos padrões do setor. Com a escalada dos conflitos na região no início deste ano, notificamos nossos fornecedores de que suas fundições e refinarias deveriam suspender o fornecimento de estanho, tântalo, tungstênio e ouro da RDC e de Ruanda.
“Tomamos essa medida porque estávamos preocupados com o fato de não ser mais possível que auditores independentes ou mecanismos de certificação do setor realizassem a devida diligência necessária para atender aos nossos altos padrões.”
De acordo com a Apple, a empresa não compra seus minerais primários de forma direta, mas de fornecedores auditados. O Relatório de Minerais de Conflito 2023 da Apple afirma que “nenhuma base razoável” foi encontrada para que as cadeias de suprimentos da empresa tenham financiado ou beneficiado “direta ou indiretamente” grupos armados na RDC ou em um país adjacente.
Questionamento sobre padrões da Apple
Muitas organizações são céticas quanto à eficácia dos mecanismos de controle da Apple. O Grupo de Peritos sobre a RDC, da ONU, revelou que o ouro extraído no país passa ilegalmente por Ruanda e Uganda antes de ser exportado.
“Sabe-se que há refinarias nesses países que são abastecidas com matérias-primas como o ouro da RDC”, disse Emmanuel Umpula, diretor executivo do Observatório Africano de Recursos Naturais (AFREWATCH), que denuncia o papel de Ruanda e Uganda nesse comércio de minerais. “Há relatórios que comprovam isso claramente”.
Embora as autoridades de Ruanda neguem que o país seja cúmplice, os comerciantes de Bukavu dizem que o ouro de Kivu do Sul é frequentemente vendido a compradores baseados em Kigali ou Cyangugu, em Ruanda.
“A extração ilegal de matérias-primas no leste da RDC é uma das razões pelas quais a guerra continua”, disse Umpula. “É um sistema predatório de pessoas que querem que o conflito continue para poderem saquear os recursos minerais.” Umpula disse que os comerciantes geralmente levavam os minerais para países como a China primeiro para encobrir seus rastros. Eles são então processados lá antes de serem entregues a empresas como a Apple.
A gigante da tecnologia dos EUA afirma estar usando cada vez mais recursos reciclados. De acordo com a Apple, 99% do tungstênio e 100% do cobalto para as baterias da série de produtos iPhone 16 são reciclados. A empresa afirma que sua política inclui o financiamento de instituições que se esforçam para melhorar a rastreabilidade das matérias-primas. De acordo com a Apple, o apoio a iniciativas regionais que ajudam as comunidades afetadas pelos conflitos também foi ampliado.
População cética
Hypocrate Marume, membro do Comitê Consultivo da Sociedade Civil da província de Quivu do Sul, disse à DW que o processo contra a Apple é bem-vindo. Ele está otimista de que, a longo prazo, ele ajudará a acabar com as violações dos direitos humanos na RDC.
“Isso é um alívio”, disse Marume. “É por isso que estamos pedindo a todas as organizações da sociedade civil que apoiem nossos advogados. Para que tenhamos acesso a reparações pelos danos que esses grupos já causaram em conluio com os rebeldes.”
Um ativista ambiental que pediu para não ter seu nome divulgado disse à DW que a culpa por esse tipo de comércio não pertence somente às empresas e aos grupos armados. Ele disse que as autoridades da RDC não estavam cumprindo seu dever de proteger a população e controlar os recursos do país. “Foram elas que emitiram as licenças para as empresas”, disse ele. “Mas, se uma autoridade provincial for verificar o que está sendo feito no local, ela pode ser espancada por homens armados. Em que país estamos vivendo?”
Umpula continua esperançoso de que a ação judicial da RDC possa forçar as empresas multinacionais a examinar mais de perto suas cadeias de suprimentos.
Agora cabe à Justiça da França e da Bélgica decidir se as investigações serão iniciadas, o que poderia abrir um precedente.
Esses dois países foram escolhidos por suas regulamentações contábeis mais rígidas para incentivar a responsabilidade corporativa. Por outro lado, em março, nos Estados Unidos, um tribunal federal rejeitou uma tentativa de demandantes privados de responsabilizar a Apple, o Google, a Tesla, a Dell e a Microsoft por sua dependência do trabalho infantil nas minas de cobalto da RDC.
Marchand, o advogado que entrou com a ação, disse que foi provado, sem sombra de dúvida, que os fornecedores da Apple obtêm matérias-primas de áreas de conflito. “O próximo passo é provar que a Apple sabe disso”, disse ele.